sexta-feira, 3 de maio de 2013

RITINHA - 9  A saga de duas meninas na prostituição infantil  
MILTON MACIEL

FINAL DA PARTE 8

– Ah, Ritinha... Você foi a melhor coisa que aconteceu nesta minha vida desgraçada, sabe? Há quanto tempo, quanto anos, que ninguém pede pela minha companhia! Fui escorraçada e mal tratada em tantos lugares. Minha companhia só foi procurada por homens querendo sexo. Nunca ninguém quis saber de mim, de mim como pessoa, entende? Como você está fazendo agora! – e Gabi se desmanchava em lágrimas mais do que sentidas.

PARTE 9
   Naquele momento, anos e anos de abandono e desprezo, de maus tratos, de uso como máquina de satisfação dos desejos dos homens, explodiam e saltavam de dentro do peito da menina. Apesar da aparência precocemente amadurecida, Gabi era apenas Iracema, uma criança de quatorze anos somente, lutando absurdamente sozinha num mundo atroz e desumano. Uma criança dona de um coração de ouro, tomando conta de uma outra criança, igualmente sofrida e igualmente sozinha, com onze anos ainda incompletos. Ritinha tinha idade para ser a irmã mais nova que ela não tivera, mas ela a sentia como se fosse sua filha, uma filha querida, que precisava de todo o seu cuidado, de toda a sua dedicação.

   As duas meninas ficaram assim abraçadas por um longo tempo, deixando as emoções fluírem através das lágrimas, consolidando o enorme, o imenso amor que começava a se desenhar entre elas. Eram apenas duas pobres crianças, maltratadas tão precocemente pela vida, vítimas de violência, maus tratos e preconceitos. Mas haviam encontrado uma à outra. Uma na outra, acharam fortalecimento. Não estavam mais sozinhas no mundo. E isso fazia agora toda a diferença!...

   Abraçadinhas como estavam, as duas crianças foram escorregando até o chão, sentaram-se nele ainda abraçadas e deixaram-se ficar ali por um tempo enorme, um tempo de paz absoluta, um tempo de tranqüilidade sem limites, um tempo – porque não reconhecê-lo? – de amor. Ritinha tinha a cabeça enterrada no pescoço e entre os cabelos de Iracema. Esta apertava suavemente a cabeça da amiga contra si, sentindo a maciez dos cabelos e da pele dela.

   Ritinha foi a primeira que falou, rompendo o silêncio daquele momento mágico:

– Sabe, Iracema, eu tenho uma irmã um ano mais velha que eu, um pouquinho mais moça do que você. Eu acho que perdi essa irmã, junto com o resto da minha família, acho que nunca mais vou ver a Manoela.

   Iracema respirou fundo, sua reação automática de defensora de Ritinha a fez negar com veemência:

– Não diga uma bobagem dessas. Assim que a poeira baixar, sua família aparece. Se não aparecer, eu juro que levo você até o fim do mundo, mas encontro sua gente para você!

– Pois eu acho que não vou mais ver minha gente. Mas, se isso acontecer assim, eu lhe digo uma coisa: eu não vou ficar mal, eu não vou ficar perdida, enquanto eu tiver você, quer dizer, enquanto você deixar que eu fique com você, enquanto você me quiser com você. Enquanto você deixar, você vai ser a minha irmã, Iracema. A minha irmã mais querida, mais querida...

– Bobinha... E você acha que eu não vou querer você comigo alguma vez, é? Eu que gosto tanto de você, eu que era sozinha como uma cachorra de rua, sem ninguém? Não, se você diz isso, estão eu digo também: você já é a minha irmãzinha mais do que querida, a irmãzinha que eu nunca tive e sempre sonhava ter. É isso, Ritinha: você é minha irmã e eu sou sua irmã. É isso!

– É isso, Iracema. Nós somos irmãs. Sabe, eu acho que nós somos muito mais do que irmãs, porque a gente é mais unida que qualquer par de irmãs que eu tenha conhecido. Eu não tenho vergonha de dizer que eu gosto de você muito mais do que jamais gostei de minha irmã Manoela. E olhe que eu sempre gostei bastante dela.

   As duas meninas por fim se levantaram e, com enorme tranqüilidade, encetaram a caminhada em direção à sua modestíssima vivenda, andando o tempo todo de mãos dadas. Evitaram a proximidade da rodovia, não queriam ser perturbadas por nenhum homem a fim de programa. Naquela noite não haveria mais função. Bastava a estréia de Ritinha. A generosidade do caminhoneiro lhes havia comprado essa noite especial, essa noite em que descobriram a felicidade juntas, através do imenso amor que reconheciam entre elas.

  Caminhando na noite morna e perfumada, de mãos dadas com Iracema, Ritinha voltou a sorrir, voltou a confiar na vida. A todo instante voltava os olhos para a amiga e via no olhar dela toda a meiguice, toda a doçura da aceitação total. Muitas desgraças lhe haviam acontecido, mas, agora, ela sabia que ia sobreviver a todas elas. E sabia mais: aquelas desgraças haviam lhe dado a melhor coisa de sua vida: o amor de Iracema. Iracema, sua irmã! Iracema, sua protetora, sua mestra, seu amor...

   Caminhando na noite morna e perfumada, de mãos dadas com Ritinha, Iracema sorria e suspirava. Estava feliz. Feliz e comovida. Feliz e agradecida. Não sabia a quem devia agradecer. Será que Deus existia mesmo? Aprendera a descrer disso, tanto havia apanhado da vida, tanto esta a havia maltratado. Acostumara-se ao sofrimento, à humilhação, à solidão extrema. Cedo aprendera a descrer de tudo e de todos. Sentia-se amarga por dentro, vivia por viver – ou melhor, sobrevivia apenas. Nem sabia por que teimava em sobreviver. Não tinha objetivo algum na vida.

  Não tinha. Mas isso só até aquele dia em que recolhera Ritinha desacordada do acostamento. Desde então, sua vida passara a ter um objetivo: cuidar daquela criança maltratada. Pois agora, tendo em sua mão a mãozinha delicada da amiga, Iracema caminhava e sorria com encantamento. Olhava os olhinhos doces e súplices de Ritinha e neles reconhecia algo por que tanto ansiara na vida: amor! Sim, agora Iracema entendia com clareza qual seria o seu objetivo maior de vida: cuidar de Ritinha e amar aquela menina como uma irmã, como mais do que uma irmã, como uma alma adorada.

  E Iracema marchava contente, no seu passo lento e tranqüilo, com o qual procurava retardar ao máximo a chegada em casa. Desde que Ritinha lhe passara aquela nota de dinheiro e lhe falara aquelas surpreendentes palavras, Iracema passara a viver um momento de puro encantamento. Não se lembrava de nada assim em toda sua vida. Desde que as duas se haviam abraçado por um tempo que parecera infinito, e agora que caminhavam devagar na noite morna do Cariri, Iracema se sentia flutuar, como que em transe. Amava aquela criança, não havia a menor dúvida. E sentia que era amada também, profundamente. Um amor puro, um amor que vem da alma, uma coisa que faz a gente feliz!... Na morna noite, a pureza das almas puras declarara seu amor infinito e eterno...

   Depois daquela noite mágica, as duas amigas fizeram-se irmãs, fizeram-se cúmplices, não se largavam por nada. Ritinha agora tinha de novo confiança na vida, porque tinha confiança em uma pessoa. Por isso, quando se apresentou a ocasião, depois que haviam consumido o dinheiro inesperado do caminhoneiro ­– o que acabou proporcionando a Iracema uma semana de férias e a Gabi uma semana de ausência do posto de gasolina – Ritinha se apresentou para o serviço com toda a serenidade. Dessa vez, não iria falhar. Faria tudo o que sua professora lhe havia ensinado. Iria buscar mais dinheiro para as duas, junto com sua amada.
CONTINUA

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