MILTON MACIEL
FINAL DA PARTE 8
– Ah,
Ritinha... Você foi a melhor coisa que aconteceu nesta minha vida desgraçada,
sabe? Há quanto tempo, quanto anos, que ninguém pede pela minha companhia! Fui
escorraçada e mal tratada em tantos lugares. Minha
companhia só foi procurada por homens querendo sexo. Nunca ninguém quis saber
de mim, de mim como pessoa, entende? Como você está fazendo agora! – e Gabi
se desmanchava em lágrimas mais do que sentidas.
PARTE 9
Naquele momento, anos e anos de abandono e
desprezo, de maus tratos, de uso como máquina de satisfação dos desejos dos
homens, explodiam e saltavam de dentro do peito da menina. Apesar da aparência
precocemente amadurecida, Gabi era apenas Iracema, uma criança de quatorze anos
somente, lutando absurdamente sozinha num mundo atroz e desumano. Uma criança
dona de um coração de ouro, tomando conta de uma outra criança, igualmente
sofrida e igualmente sozinha, com onze anos ainda incompletos. Ritinha tinha
idade para ser a irmã mais nova que ela não tivera, mas ela a sentia como se
fosse sua filha, uma filha querida, que precisava de todo o seu cuidado, de
toda a sua dedicação.
As duas meninas ficaram assim abraçadas por
um longo tempo, deixando as emoções fluírem através das lágrimas, consolidando
o enorme, o imenso amor que começava a se desenhar entre elas. Eram apenas duas
pobres crianças, maltratadas tão precocemente pela vida, vítimas de violência,
maus tratos e preconceitos. Mas haviam encontrado uma à outra. Uma na outra,
acharam fortalecimento. Não estavam mais sozinhas no mundo. E isso fazia agora
toda a diferença!...
Abraçadinhas como estavam, as duas crianças
foram escorregando até o chão, sentaram-se nele ainda abraçadas e deixaram-se
ficar ali por um tempo enorme, um tempo de paz absoluta, um tempo de
tranqüilidade sem limites, um tempo – porque não reconhecê-lo? – de amor.
Ritinha tinha a cabeça enterrada no pescoço e entre os cabelos de Iracema. Esta
apertava suavemente a cabeça da amiga contra si, sentindo a maciez dos cabelos
e da pele dela.
Ritinha foi a primeira que falou, rompendo o
silêncio daquele momento mágico:
– Sabe,
Iracema, eu tenho uma irmã um ano mais velha que eu, um pouquinho mais moça do
que você. Eu acho que perdi essa irmã, junto com o resto da minha família, acho
que nunca mais vou ver a Manoela.
Iracema respirou fundo, sua reação
automática de defensora de Ritinha a fez negar com veemência:
– Não diga
uma bobagem dessas. Assim que a poeira baixar, sua família aparece. Se não
aparecer, eu juro que levo você até o fim do mundo, mas encontro sua gente para
você!
– Pois eu
acho que não vou mais ver minha gente. Mas, se isso acontecer assim, eu lhe
digo uma coisa: eu não vou ficar mal, eu não vou ficar perdida, enquanto eu
tiver você, quer dizer, enquanto você deixar que eu fique com você, enquanto
você me quiser com você. Enquanto você deixar, você vai ser a minha irmã,
Iracema. A minha irmã mais querida, mais querida...
– Bobinha...
E você acha que eu não vou querer você comigo alguma vez, é? Eu que gosto tanto
de você, eu que era sozinha como uma cachorra de rua, sem ninguém? Não, se você
diz isso, estão eu digo também: você já é a minha irmãzinha mais do que
querida, a irmãzinha que eu nunca tive e sempre sonhava ter. É isso, Ritinha:
você é minha irmã e eu sou sua irmã. É isso!
– É isso,
Iracema. Nós somos irmãs. Sabe, eu acho que nós somos muito mais do que irmãs,
porque a gente é mais unida que qualquer par de irmãs que eu tenha conhecido.
Eu não tenho vergonha de dizer que eu gosto de você muito mais do que jamais
gostei de minha irmã Manoela. E olhe que eu sempre gostei bastante dela.
As duas meninas por fim se levantaram e, com
enorme tranqüilidade, encetaram a caminhada em direção à sua modestíssima
vivenda, andando o tempo todo de mãos dadas. Evitaram a proximidade da rodovia,
não queriam ser perturbadas por nenhum homem a fim de programa. Naquela noite
não haveria mais função. Bastava a estréia de Ritinha. A generosidade do
caminhoneiro lhes havia comprado essa noite especial, essa noite em que
descobriram a felicidade juntas, através do imenso amor que reconheciam entre
elas.
Caminhando na noite morna e perfumada, de
mãos dadas com Iracema, Ritinha voltou a sorrir, voltou a confiar na vida. A
todo instante voltava os olhos para a amiga e via no olhar dela toda a
meiguice, toda a doçura da aceitação total. Muitas desgraças lhe haviam
acontecido, mas, agora, ela sabia que ia sobreviver a todas elas. E sabia mais:
aquelas desgraças haviam lhe dado a melhor coisa de sua vida: o amor de Iracema. Iracema, sua irmã!
Iracema, sua protetora, sua mestra, seu amor...
Caminhando na noite morna e perfumada, de
mãos dadas com Ritinha, Iracema sorria e suspirava. Estava feliz. Feliz e
comovida. Feliz e agradecida. Não sabia a quem devia agradecer. Será que Deus
existia mesmo? Aprendera a descrer disso, tanto havia apanhado da vida, tanto
esta a havia maltratado. Acostumara-se ao sofrimento, à humilhação, à solidão
extrema. Cedo aprendera a descrer de tudo e de todos. Sentia-se amarga por
dentro, vivia por viver – ou melhor, sobrevivia apenas. Nem sabia por que
teimava em sobreviver.
Não tinha objetivo algum na vida.
Não tinha. Mas isso só até aquele dia em que
recolhera Ritinha desacordada do acostamento. Desde então, sua vida passara a
ter um objetivo: cuidar daquela criança maltratada. Pois agora, tendo em sua
mão a mãozinha delicada da amiga, Iracema caminhava e sorria com encantamento.
Olhava os olhinhos doces e súplices de Ritinha e neles reconhecia algo por que
tanto ansiara na vida: amor! Sim, agora Iracema entendia com clareza qual seria
o seu objetivo maior de vida: cuidar de Ritinha e amar aquela menina como uma
irmã, como mais do que uma irmã, como uma alma adorada.
E Iracema marchava contente, no seu passo
lento e tranqüilo, com o qual procurava retardar ao máximo a chegada em casa. Desde que
Ritinha lhe passara aquela nota de dinheiro e lhe falara aquelas surpreendentes
palavras, Iracema passara a viver um momento de puro encantamento. Não se
lembrava de nada assim em toda sua vida. Desde que as duas se haviam abraçado
por um tempo que parecera infinito, e agora que caminhavam devagar na noite
morna do Cariri, Iracema se sentia flutuar, como que em transe. Amava aquela
criança, não havia a menor dúvida. E sentia que era amada também, profundamente.
Um amor puro, um amor que vem da alma, uma coisa que faz a gente feliz!... Na
morna noite, a pureza das almas puras declarara seu amor infinito e eterno...
Depois
daquela noite mágica, as duas amigas fizeram-se irmãs, fizeram-se cúmplices,
não se largavam por nada. Ritinha agora tinha de novo confiança na vida, porque
tinha confiança em uma pessoa. Por isso, quando se apresentou a ocasião, depois
que haviam consumido o dinheiro inesperado do caminhoneiro – o que acabou
proporcionando a Iracema uma semana de férias e a Gabi uma semana de ausência
do posto de gasolina – Ritinha se apresentou para o serviço com toda a
serenidade. Dessa vez, não iria falhar. Faria tudo o que sua professora lhe
havia ensinado. Iria buscar mais dinheiro para as duas, junto com sua amada.
CONTINUA
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