quinta-feira, 29 de maio de 2014

HYDNA DE SCIONE  
MILTON MACIEL

O sacerdote abaixou o braço e os seis auxiliares puxaram as cordas ao mesmo tempo. De sob os panos brancos que as cobriam, surgiram duas verdadeiras obras-primas, as estátuas de Hydna e Scylias, de Scione – os maiores nadadores e mergulhadores de toda a história grega. Era o ano de 480 AC e eles estavam no grande templo de Apolo, em Delphos, para receberem a mais do que merecida homenagem.

Orgulhoso, o pai passou o braço musculoso pela cintura de sua bela e atlética filha de 18 anos e falou, sorridente:

– Um magnífico trabalho, sem dúvida, minha filha. Mas não faz justiça à sua beleza. Você é dez vezes mais bonita do que esse mármore formidável, digno de um Fídias. Acho que só ele teria sido capaz de representar você em todo o seu esplendor.

– Ora, pai, que importância tem isso, quando nosso feito recebe dos Anfictiões uma homenagem de tal envergadura? Por mim, podia ser apenas uma coluna de pedra e eu já estaria mais do que feliz e glorificada.

E, enquanto ali, em frente ao Górgias, sacerdotes e sacerdotisas entoavam hinos e moviam-se ritualisticamente, fazendo a consagração das grandes estátuas, Hydna voltou rapidamente ao passado recente, àquele dia da tempestade destruidora, a bordo de um dos trirremes da frota do rei persa Xerxes. Quando os ventos começaram a fustigar as embarcações e todos os grandes barcos da frota foram rapidamente ancorados à costas do Monte Pélion, Scylias comentou com a filha:

– Xerxes é um louco, mandando fazer esta manobra para o sul, ao longo desta perigosa costa da Eubeia. Era mais do que certo que nos defrontaríamos com alguma grande tempestade como esta que está vindo aí.

– Muito grande, pai?

– Sim, minha filha, arrasadora.

– Então pode ser a nossa grande chance.

– Sim, podemos fugir aos nossos captores durante a tempestade. Eles jamais pensariam que nós somos mais loucos que Xerxes e que podemos pular num mar tão revolto como vai ficar este em mais alguns minutos.

– Ah, mas nós somos, sim, pai. Nós podemos enfrentar qualquer mar, o senhor me ensinou isso desde que eu era criancinha. Não foi à toa que eu passei mais de dez anos de minha vida mergulhando em grandes profundidades e nadando mais de 5 furlongs (12 quilômetros) por dia, sempre em sua companhia.

– Minha menina, minha grande companheira, você é o orgulho do seu pai, a maior nadadora e mergulhadora de toda a Hélade. Agora mesmo, dias atrás, quando mergulhamos para recuperar o tesouro afundado de Xerxes, você demonstrou uma perícia e uma coragem que deixou todos os persas estupefatos.

– Nós DOIS fizemos um trabalho magnífico, pai. E recebemos uma boa parte do ouro recuperado.

– Que não vai nos valer de nada, porque agora somos prisioneiros neste navio. E permaneceremos nessa condição enquanto esta guerra não terminar. E o pior é que tudo indica que vai terminar com Xerxes esmagando toda a Hélade. Só nesta frota existem mais de 200 navios. Como os gregos poderão resistir?

– E pior ainda é que eles já se preparam para a grande invasão por terra, estão concentrados nas Termópilas, depois de terem arrasado o pequeno exército grego que lhes opunha resistência ali e matado o grande Leônidas de Esparta, com seus 300 heróicos espartanos.

– Eram mil e quatrocentos homens, filha, nunca esqueça que também heróicos foram os téspios e os tebanos, que se ofereceram para ficar com os de Esparta, sabendo que teriam morte certa, o preço que pagariam por retardar o avanço dos cem mil persas de Xerxes.

–  Tem razão, pai. Espero que a História não os esqueça. Graças ao sacrifício de todos eles, os gregos tiveram tempo de reunir seus exércitos e preparar a resistência. Mas com a chegada desta frota colossal, como será possível resistir aos persas, meu pai?

– Será totalmente impossível, Hydna. Temos que rezar aos deuses para que esta tempestade provoque danos muito sérios nestes navios deles. Veja, olhe só o tamanho das ondas que estão se aproximando. O dia está virando noite. Ah, que pena que eles tiveram tempo de ancorar solidamente seus trirremes antes da tempestade!

 – Se não estivessem ancorados...

– Ah, filha, se chocariam uns com os outros às dezenas, afundariam em grande número. E os que sobrassem ficariam danificados demais para combater. Ah, se os deuses nos ajudassem!

– Pai: e se nós ajudássemos os deuses?

– Como assim, minha filha?

– Bem. Nós já estamos decididos a pular no mar daqui a um instante e nadar até Artemísia, uns 6 furlongs, mergulhando primeiro, para ficarmos ocultos aos persas e nadando depois. Isso significa deixar todo o nosso ouro aqui, o que não nos importa, não é?

– Certo que não, filha. Mais importante é a liberdade. E a honra: somos gregos e, se logramos escapar, podemos revelar a nossos generais todos os planos dos persas. Só não estou entendendo o que você quer dizer com “ajudarmos os deuses”. Como isso seria possível, se nós é que precisamos de ajuda deles.?

– Ora pai, já que vamos pular nesse mar de agonia, não precisamos ter pressa dentro dele. Não vamos levar nenhum ouro certamente. Mas podemos levar nossas grandes facas de mergulho.

– Por Posseidon, minha menina! Você é um gênio! Sim, nós podemos mergulhar a cortar as cordas de amarra, de âncora, de um grande número desses grandes barcos.

– Nem precisa ser de tantos, pai. Cada um deles que ficar solto neste estreito vai parecer um touro furioso, batendo impiedosamente em muitos outros navios ancorados. E os persas nada poderão fazer. Veja, as primeiras ondas já estão começando a cobrir o convés. É hora de saltar! Vamos pegar as facas longas.

E agora, contemplando sua própria estátua em Delphos, a linda mergulhadora grega pegou carinhosamente a mão de seu pai e mestre. Ante seus olhos semicerrados desfilaram os minutos aparentemente infindáveis em que ela e Scylias mergulhavam e voltavam à tona para respirar, em meio ao mais terrível mar que já haviam enfrentado na vida. E a cada novo mergulho, em meio a uma escuridão quase total, no limite de suas capacidades respiratórias privilegiadas, mais uma grossa corda era cortada por ambos em conjunto.

Os persas, em pânico, não conseguiam entender porque tantos trirremes se soltaram, mas mais de trinta desses enormes barcos estavam agora à deriva, provocando violentos choques estrondosos, esfacelando-se e esfacelando um grande número de outros barcos. Um deles quase apanhou os mergulhadores, esmagando-os contra um barco ancorado. Não fosse a grande experiência de Scylias e ele não teria conseguido avisar Hydna a tempo de mergulharem os dois muito fundo, para escapar do choque iminente.

Mas escaparam. Não só escaparam das vistas dos persas, percorrendo uma grande distância sempre mergulhando, como nadaram na tempestade por mais cinco furlongs até chegarem a Artemísia. Ali a população os recebeu como heróis. Os planos dos persas foram revelados, dando tempo aos gregos de saberem que iam cair numa armadilha, pois outra frota persa avançava do norte para o sul. E Xerxes contava com espremer os navios atenienses entre suas duas frotas.

Mas frota do sul estava agora arrasada! Um único homem e uma única mulher, uma menina de dezoito anos apenas, haviam dado cabo de dezenas e dezenas de trirremes que foram a pique. E os que sobraram flutuando estavam tão danificados que levariam meses para serem recuperados.

Foi somente graças a essa intervenção dessa filha e desse pai heróicos, que a frota grega foi capaz, pouco tempo depois,  de derrotar a armada Norte de Xerxes na grande batalha final de Salamina.

Scylias olhou com ternura para sua menina, tão mais bonita que aquela estátua maravilhosa ali à frente deles, em Delphos. Sim, ela tinha razão. Eles é que tinham ajudado os deuses a ajudarem a Hélade inteira.






quarta-feira, 28 de maio de 2014

PHENOMENAL WOMAN 
Maya Angelou 
MARAVILHOSA MAYA! Deixou-nos hoje. Deixou-nos órfãos de sua presença, ricos de sua poesia, gratos por sua bondade, inundados por sua luz. Vá. Vá ser feliz, Maya Angelou. You deserve it!

Pretty women wonder where my secret lies.
I'm not cute or built to suit a fashion model's size
But when I start to tell them,
They think I'm telling lies.
I say,
It's in the reach of my arms
The span of my hips,
The stride of my step,
The curl of my lips.
I'm a woman
Phenomenally.
Phenomenal woman,
That's me.

I walk into a room
Just as cool as you please,
And to a man,
The fellows stand or
Fall down on their knees.
Then they swarm around me,
A hive of honey bees.
I say,
It's the fire in my eyes,
And the flash of my teeth,
The swing in my waist,
And the joy in my feet.
I'm a woman
Phenomenally.
Phenomenal woman,
That's me.

Men themselves have wondered
What they see in me.
They try so much
But they can't touch
My inner mystery.
When I try to show them
They say they still can't see.
I say,
It's in the arch of my back,
The sun of my smile,
The ride of my breasts,
The grace of my style.
I'm a woman

Phenomenally.
Phenomenal woman,
That's me.

Now you understand
Just why my head's not bowed.
I don't shout or jump about
Or have to talk real loud.
When you see me passing
It ought to make you proud.
I say,
It's in the click of my heels,
The bend of my hair,
the palm of my hand,
The need of my care,
'Cause I'm a woman
Phenomenally.
Phenomenal woman,
That's me.
Maya Angelou



Grande site de poesias em inglês: Poemhunter 
http://www.poemhunter.com/poem/phenomenal-woman/

segunda-feira, 26 de maio de 2014

A SORTE GRANDE  
MILTON  MACIEL  

– Pois é, esta aconteceu com o Conrado, meu primo, que você conhece.

– O marido da Yvone?

– Esse mesmo. Você conhece a mulher dele?

– Quem não conhece? Bom, me desculpe, ele é seu primo, mas... Que mulher gostosa que ele tem! Que coisa mais linda!

– Não tem nada que se desculpar. Eu, que sou primo, também acho! Ela é linda demais! Mas não é só isso. Você precisa ver o caráter dessa mulher. É coisa muito séria, amigo. Se o Conrado hoje está bem de vida, agradeça a ela, que tem pulso firme nos negócios. Mas isso é outro assunto, eu estou querendo contar é a experiência paranormal do Conrado.

– Paranormal? Puxa, eu gosto disso. Como foi?

– Foi coisa de uns 9 anos atrás.. O Conrado estava dormindo, era ainda estudante de administração. De repente ele acordou sentindo um nítido puxão no pé. E aí levou o maior susto da vida dele. Ao pé da cama estava o Tio Cirilo, o falecido irmão do pai dele e do meu pai. Ele sorria para o Conrado e lhe mostrava um livro bem velho que ele tinha na mão. O nome do autor era Guerra Junqueiro, o do livro não dava para ver.

– Um Morto! Papagaio, eu saia correndo, acho que aos berros.

– É, mas o Conrado agüentou firme. Começa que ele é meio lento pra reagir a qualquer coisa. E depois, ele ficou foi contente, porque a gente adorava o Tio Cirilo.  Então ele não teve medo e chegou a sentar na cama pra puxar conversa. Mas o tio só apontou para a estante de livros da sala, bem pra parte de cima, e logo desapareceu.  Aí o Conrado achou que era um sonho, que ele estava fazendo era confusão e se espichou pra dormir de novo. Horas depois, quando ele acordou, lembrou imediatamente do sonho e foi até à sala ver a estante. Pois não é que, na prateleira de cima, onde havia vários livros velhos que foram do papai e do tio Cirilo, ele encontra o tal livro do Guerra Junqueiro!

– Caramba, mas que sonho mais estranho!

– Pois isso não é nada. O Conrado conta que, quando ele pegou o livro, de dentrosaltou um papel. Era um volante de loteria, de Mega Sena. O tio era um apostador inveterado, nunca ganhou nada, mas apostava toda semana. Pois o volante estava todo marcado! Aí o Conrado pirou. Na certa o tio tinha vindo mesmo, em espírito ou em sonho, dar a dica pro sobrinho. Na certa, aqueles eram os seis números que iam sair.
E o sorteio era naquela quarta-feira mesmo. Ele correu para a lotérica do bairro e fez uma aposta simples, não precisava gastar mais nada. E aí ele passou o resto da tarde e o começo da noite no maior nervosismo. Até que conseguiu saber do resultado.

– E ele ganhou?

– Que nada, não acertou nenhum número!

– Puxa, mas que coisa mais sem graça! De que adiantou essa palhaçada, então?

 – De que adiantou? Pois eu já lhe digo. A lotérica era num shopping, ficava aberta até às 10 da noite. O sorteio era às 8. Então ele ficou pelo shopping mesmo, agitado, tremendo, fazendo as contas do que ia comprar com o dinheiro. A toda hora ele ia à lotérica e infernizava a vida da mocinha que fez o jogo dele, para ver se já tinha o resultado do sorteio. Quando chegou e a moça mostrou pra ele, o Conrado começou a passar mal.
A moça o socorreu, abanou, trouxe copa d’água, até que ele conseguiu falar. Aí ele contou pra ela a história do sonho com o tio, da certeza que ia ganhar, da tremenda decepção que estava amargando. De repente não se agüentou mais e caiu num choro sentido. A mocinha ficou firme ali, tratando de acalmar o rapaz, até conseguir com que ele se conformasse.

– Pomba, que decepção, mesmo. Que sonho mais idiota! Tanta expectativa e no fim ele não ganhou nada! 

– Engano seu. Ele ganhou sim, ganhou a Sorte Grande naquela noite!

– Ué, mas, como assim, ganhou a Sorte Grande? Pois se você mesmo disse que ele não acertou nenhum número.

– Ah, mas você já vai entender. Sabe a mocinha que cuidou dele, que tinha 18 aninhos e estava fazendo bico pra ajudar a pagar a faculdade? Pois é, o nome dela era Yvone!

– A Yvone?!!!

– Pois é, ela mesma! E então? Ele ganhou ou não ganhou a Sorte Grande? Mas se segure, que agora vem o mais impressionante: Quando tudo já estava mais calmo, quando a lotérica fechou e a moça ia pegar condução pra casa, o Conrado quis retribuir a atenção dela e convidou-a para jantarem ali mesmo na Praça de Alimentação, disse que a levaria para casa de carro, que ele já tinha um Chevette velho meio descascado, mas que andava direitinho. Aí, enquanto esperavam que os pratos ficassem prontos, o Conrado lembrou que ainda tinha o volante do livro no bolso. Tirou e mostrou pra a moça. Aí foi ela que estranhou:

– Ué, você já sabia o meu nome, é? Você escreveu ele aqui, na parte de trás. Sua caneta está ruinzinha, está um pouco apagado, mas é meu nome.

 -  E o Conrado levou o maior susto de novo! De fato, no anverso do volante estava gravado, com caneta de tinta roxa, bem grande: YVONE.  Pois sabe da maior? Acredite se quiser. Lá em casa só quem usava tinta roxa era o Tio Cirilo. E o Conrado não teve a menor dúvida em reconhecer aquela caligrafia tão sua conhecida: a letra era DO TIO! O resto você já sabe ou pode imaginar. Eles interpretaram aquilo como um sinal, não se largaram nunca mais. Hoje estão aí, formados, casados, com filhos. E o Conrado, graças ao Tio Cirilo, não importa saber de que jeito, naquela noite tirou a Sorte Grande!

domingo, 25 de maio de 2014

PERDI MEUS FANTÁSTICOS CASTELOS
FLORBELA ESPANCA

Perdi meus fantásticos castelos
Como névoa distante que se esfuma...
Quis vencer, quis lutar, quis defendê-los:
Quebrei as minhas lanças uma a uma!

Perdi minhas galeras entre os gelos
Que se afundaram sobre um mar de bruma...
- Tantos escolhos! Quem podia vê-los? –
Deitei-me ao mar e não salvei nenhuma!

Perdi a minha taça, o meu anel,
A minha cota de aço, o meu corcel,
Perdi meu elmo de ouro e pedrarias...

Sobem-me aos lábios súplicas estranhas...
Sobre o meu coração pesam montanhas...
Olho assombrada as minhas mãos vazias...

Florbela Espanca, in "A Mensageira das Violetas"




sexta-feira, 23 de maio de 2014

SUA  BONDADE, SEU AMOR, FORAM TAMANHOS!
MILTON MACIEL

Ergui-me a custo, escarnecido, da poalha
Onde tombei, completamente derrotado.
Aprisionou-me aquele olhar agateado,
Não resisti, vencido fui, joguei a toalha.

Ao dar por mim, já estava atado em suas amarras
E só então me descobri preso à ilusão:
Suas suaves mãos eram de fato duras garras,
Com que a felina agatanhou meu coração.

Então penei,
De amor sofri.
Dentro morri,
Em vão me dei.

Enfim compreendi:
Somente eu amei!

E, ao dar por mim, já era um lasso peregrino,
Que tateava, em vão, em busca de um caminho.
Por muito tempo pelo mundo andei sozinho,
Como se fosse só um joguete do destino.

Até que um dia, por meus caminhos estranhos,
Aconteceu-me algo notável de verdade:
Eu renasci, ao ver um par de olhos castanhos
E foi com eles que encontrei felicidade.
Sua bondade, seu amor, foram tamanhos,
Que outra vez voltei a crer na humanidade!

Então eu cresci, no Amor me encontrei.
E quando me entreguei,
RENASCI.
Puro encanto. Alegria.
Com ela é feliz... QUALQUER DIA !



quinta-feira, 22 de maio de 2014

ME ENGANA QUE EU GOSTO - 1 
AS GORDURAS ANIMAIS QUE VOCÊ COME
 SEM SABER: OS EMBUTIDOS
MILTON  MACIEL

Vou começar esta matéria exemplificando com os embutidos. Depois, vamos à caça DA origem do problema em si, a CARNE GORDA – deixando bem claro, desde o início, que este não é um texto de vegetarianismo. Nem contra ele.

Você consome esses embutidos e carnes gordas com satisfação, acostumado que está com eles desde criancinha (Tá certo, você não está sabendo, eles não contam para você - senão você não compra! E espere até você saber O RESTO do que eles colocam DENTRO dos embutidos! Em breve vamos contar).

A grande maioria das gorduras nas carnes de animais que foram de propósito ENGORDADOS antes do abate é formada por gorduras SATURADAS. Que, em termos de prejuízo para a saúde, só perdem para as piores de todas, as gorduras TRANS, estas de origem VEGETAL, das quais vamos tratar depois.

Coma bastante destas fontes de gorduras saturadas de animais ENGORDADOS de propósito, se possível todos os dias, e você vai fazer a alegria do seu endocrinologista, do seu cardiologista, do seu anestesista, da academia, do hospital, da farmácia, da funerária. E a tristeza da mulher que o ama – que nem sempre é a viúva que vai sobrar por aí, para gastar a grana do seu seguro de vida com o Ricardão.

Aqui embaixo estão os percentuais de GORDURAS (FAT) e proteínas em cada carne ou embutido. Como você não pode VER a gordura dentro desses ‘alimentos’, você não fica sabendo o risco que corre. Quer dizer, não ficou até HOJE, até ver a figura abaixo desta matéria.

A origem do problema é engorda dos animais de criação

A origem do problema do grande excesso de gorduras saturadas nos embutidos está no processo fundamentalmente DESONESTO de engordar artificialmente os animais antes do abate. Com isso o produtor ganha mais, mas vende gordura no lugar de carne magra.

As carnes dos animais de caça, únicas comidas pelos humanos durante os 2 milhões e meio de anos do Paleolítico, quando nosso genoma foi formado, têm BAIXÍSSIMO teor de gordura. Isso porque esses animais estão em constante movimentação na natureza, procurando alimento e fugindo de seus predadores. A pouca gordura que acumulam no corpo durante a época das chuvas, é rapidamente consumida durante a seca ou o inverno com geada/neve.

Porém com o advento da agricultura e da criação animal há cerca de 10000 anos, dando origem ao Neolítico, os animais passaram a ter movimentação mínima, proteção contra predadores e alimentação relativamente constante durante o ano todo. Rapidamente estabeleceu-se o sistema usado hoje na pecuária: cria, recria, engorda.

Esta última fase, a engorda, tende cada vez mais a ser feita por meio de CONFINAMENTOS, nos quais os bovinos, além dos volumosos normais de sua alimentação (gramíneas) passam a receber rações de CONCENTRADOS, de elevado teor protéico e de origem vegetal – normalmente o binômio milho-soja. Ou seja, animais herbívoros passam a ser alimentados também com grãos, para cuja digestão seus sistemas digestivos não foram desenvolvidos na natureza. Isso, entre outros problemas, vai acarretar na entrada das famigeradas LECTINAS dos grãos nas carnes e leites animais. Mas isso é assunto para outra hora.

Mesmo quando o confinamento não é usado e o animal é mantido somente a pasto durante a fase de acabamento, a engorda, de qualquer forma ele passa a acumular MASSA GORDA para ganhar mais peso e poder ser vendido com mais renda para o criador. E é nessa transformação que a sua saúde começa a correr perigo, já que a gordura acumulada para ser vendida a você é basicamente gordura SATURADA.

Você acaba de ver onde essa gordura foi parar no caso dos embutidos. Como o nome já diz, as carnes originais (extremamente gordas) foram trituradas, misturadas com vários aditivos de que vamos tratar mais adiante e, depois, embutidas dentro de um envoltório natural ou sintético, escapando à sua visão. Na figura ao lado, você pode ver o que acontece 
com a carne de um ovino acabado em confinamento.

O consumidor compra essa carne e, via de regra, é obrigado depois a descartar enormes porções que são gordura praticamente pura, botando dinheiro fora. Mas, na carne vermelha restante, ainda há enormes quantidades de gordura saturada nos interstícios das fibras musculares, constituindo a carne “marmorizada”, tão visada pelos produtores hoje em dia. (CONTINUA)


quarta-feira, 21 de maio de 2014

BEIJO TUAS MÃOS AMADAS  
MILTON  MACIEL

Ó, minha amada, quanta beleza há em tuas mãos!
Fecho os olhos e as beijo, com saudade e respeito,
“Mesmo que o tempo e a distância digam Nãos”,
Muitos Nãos. E “guardar do lado esquerdo do peito”(*)
Seja muito pouco para tua onipresença envolvente,
Que me cerca e penetra, ainda que estejas ausente.

Ó, minha amada, quanta nobreza há em tuas mãos!
Quando, ordeiras, digitam teclados, servem pratos,
Passam roupas, sobraçam flores, protegem gatos,
Acarinham filhos, abrem livros ou esfregam chãos.
E, em tua profissão, são ainda mais maravilhosas,
Quando cuidam, pacientes, da saúde das idosas.

Ó, amada, quanta leveza em tuas mãos presentes
Quando, suaves e sábias, tecem carícias de amor,
Tornando em ternura e afeto o mundo ao seu redor.
Beijo, sim, essas mãos suaves, bondosas, amantes,
Que, acima do falso-belo dos esmaltes cintilantes,
Têm a beleza humilde das coisas transcendentes.

E quando, um dia, rugas e manchas o Tempo lhes trouxer,
Beijarei as mais belas mãos que pode ter uma Mulher.           (MM)

Miami, Fev, 1º. 2012
(*) CANÇÃO DA AMÉRICA - Fernando Brant e Milton Nascimento

segunda-feira, 19 de maio de 2014

JOINVILLE, 2014 (miniconto)
MILTON MACIEL

– Você é louco Marcel! Parece que você nunca sente frio.

– Ora, 8 graus num 5 de Fevereiro não é nada mau, aqui em Joinville.

–Mas isso não é razão para ficar com os pés dentro da água do rio. Deve estar um gelo!

– Que nada! Exagero seu. Ah, eu adoro este rio de águas límpidas que corta Joinville! Sou capaz até de dar um mergulho agora mesmo, quer ver?

– Não, seu louco. Você está de roupa! Pare de se exibir. Isso não me impressiona mais, sabia? Já me convenci: você, só internando.

– No Hospital Local de Joinville?

– Não, num sanatório psiquiátrico no Pólo Norte, seu maluco.

– Aline, Aline! Você fala isso da boca pra fora. Aliás, por falar em boca...

E Marcel, inclinando-se, beijou Aline demoradamente na boca. Ela ficou imóvel por um instante; depois, correspondeu ao beijo timidamente. Mas falou:

– Está vendo como você é louco mesmo! De onde saiu isso? Esse beijo... por quê?

– Ora, você já disse: porque eu sou louco. Louco por você, sua tonta!

– Marcel... Não brinque com isso. No fim, você acaba com a nossa amizade que vem desde a infância e pra quê?

– Mas eu quero acabar com a nossa amizade, Aline. É o que eu mais quero, na minha loucura.

– Marcel, por favor, pare com isso, está me assustando! Por que terminar a nossa amizade? Eu não quero!...

– Mas, Aline, me entenda: eu quero que a nossa amizade acabe aqui e agora, para deixar nascer o nosso AMOR!

– Amor, Marcel? Você disse amor? Tem certeza?

– Toda a certeza do mundo, Aline. Cansei de enganar a mim mesmo. O que eu sinto por você é amor, amor de verdade. E desde menino já era assim.

Aline tomou as duas mãos do rapaz entre as suas, levou-as a seu rosto e, de repente, desatou a chorar. Chorava e ria ao mesmo tempo, os belos olhos azuis derramando lágrimas abundantes, os dentes perfeitos brilhando num sorriso de pura felicidade.

– Você me ama, Marcel? Me ama?

– Sim, eu sempre amei a menininha e amo agora a mulher maravilhosa em que você se transformou.

Aline apertou-se contra ele e o beijou – apaixonadamente, desta vez. Depois sussurrou:

– Eu sempre amei você, Marcel. Sempre!

Então saíram de mãos dadas, montaram na motoneta e subiram até o espaço do antigo castelo demolido pela Revolução.  Lá de cima, era possível ver toda Joinville, seus belos canais do rio Marne brilhando ao sol, o Bief resplandecente, o Poncelot, o cais de Peceaux, o Château du Jardin mais distante... E Marcel, enlaçando Aline, lhe propôs:

– Aline, seja minha princesa. Um dia saiu aqui de França um príncipe de Joinville e ele foi casar com uma princesa lá no distante Brasil. E dizem que, por causa deles, outras pessoas fundaram uma cidade com o mesmo nome da nossa. E que esta cidade existe até hoje e que é enorme, não é como esta nossa cidadezinha de 4000 habitantes. Eu serei o seu príncipe de Joinville e você será minha princesa do Brasil. E será minha esposa querida. Você aceita?

– Oui, monsieur le Prince de Joinville!

– Mais oui, mademoiselle la Princesse du Brésil!


(Este miniconto, publicado na Miniantologia No. 5 da Associação Confraria das Letras, de Joinville, SC, Brasil, foi uma pegadinha para meus amigos da Joinville brasileira, que, em Fevereiro, vinham de amargar um calor absurdo de 52 graus no fim de Janeiro. Eles devem ter estranhado muito a temperatura de 8 graus e o rio de águas LÍMPIDAS que corta o centro da cidade. É, eles sabem que o Rio Cachoeira deles.... arre! Só no fim eles vão entender de que Joinville eu estou falando).




Canalisée ou en liberté, l’eau de la Marne se coupe en quatre pour magnifier Joinville et, par des chemins de rivages d’une douceur empreinte de distinction, conduire le promeneur jusqu’au château du Grand Jardin.

domingo, 18 de maio de 2014

JOÃO RAMALHO NO PARAÍSO   
MILTON MACIEL 
Extraído de “DE FRANÇA E BRASIL, o Pau de Tinta Vai à França”, VOL 1. Publicado, com adaptações, em SAGANOSSA (edição Associação Confraria das Letras - Joinville, 2014)

Os ventos chegaram rápidos e muito rápidos cresceram, surpreendendo até os mais experientes marinheiros e comandantes. Com eles vieram as nuvens carregadas e das nuvens carregadas desabou o dilúvio. Relâmpagos iluminaram a escuridão que se fez em pleno dia e as ondas subiram, agigantando-se muito mais altas que as caravelas. E justamente aquela em que João Ramalho estava foi a única que não resistiu ao empuxo das ondas. A caravela foi a pique e afundou já às vistas da costa brasileira.

Então João Ramalho teve certeza que a praga de Catarina de Balbode se cumpria: "Filho desobediente e cabeçudo, bicho da terra, o mar castiga!" Ainda assim decidiu que não entregaria a carcaça facilmente à morte. Agarrado a um pequeno pedaço de trave, conseguiu manter-se boiando e foi nadando com um esforço sobre-humano em direção à costa que avistava, iluminada pelos coriscos. Quando estava quase chegando, no entanto, as forças se lhe esvaíram e João Ramalho aceitou o inevitável. Era o fim. Não conseguia mais manter os olhos abertos, os músculos lhe doíam como se tivessem agulhas por toda a extensão do corpo. João largou a trave e fez uma última arremetida desesperada em direção à areia branca. Tarde demais, no entanto: a exaustão dominou-o e ele começou a afundar, engolindo água e não conseguindo mais respirar. Tudo ficou totalmente escuro. A praga de sua mãe voltou-lhe uma última uma vez à memória:

– Como engajar-te, ó gajo sem juízo?! Tu nunca entraste num navio, o dia que fizeres isso vais dar-te muito mal. Não foste talhado para ser homem do mar, criatura. Tu és bicho da terra como teu pai e meu pai. E bichos da terra o mar não aceita de bom alvitre. Eu t’o proíbo, ouviste bem? t’o proíbo! E, se um dia me desobedeceres, então hás de encontrar que o mar vai engolir-te, perecerás numa tempestade. É assim que o mar castiga filhos desobedientes e cabeçudos como tu. Se me desobedeceres, perecerás numa tempestade!

O último lampejo de vida lhe trouxe à lembrança os eventos daquele final do ano de 1512, em sua cidadezinha natal de Vouzela, Portugal:

– Não vais, não vais e não vais! Está decidido! Eu sou tua mãe e tu me deves obediência. Não vais! Eu não t’o permitirei ou não me chamo Catarina Afonso de Balbode. E não se fala mais nisso!

Catarina de Balbode estava realmente furiosa. Ora, ir-se o seu filhote para Lisboa! Ainda mais com aquela estúpida ideia de engajar-se num navio que demandasse a América. Onde já se viu! Aquele filho era mesmo cabeçudo como o pai. Na certa, se ela deixasse, iria meter os pés pelas mãos. Ah, que dois gajos mais parecidos aqueles! Não havia dois mais parecidos em Portugal, não podia haver! Tinha-se-lhes que trazer de rédea curta.

O marido, o velho João Vieira de Maldonado, até que tinha aprendido a se comportar, com o passar dos anos. Dera-lhe muito trabalho, é verdade. Mais moço, era dado a correr atrás das cachopas e a enrabichar-se por elas. Não que Catarina se importasse, os homens eram todos iguais, conhecia-se um, conhecia-se todos. João Maldonado não era nem um pouco diferente daquele bode velho sempre no cio – seu pai, Joaquim Balbode, que tantos bastardos tinha espalhado pelos arredores todos de Vouzela.

Já temendo por isso num filho tão parecido com o pai – e que, ainda por cima, poderia sair ao avô mulherengo – decidira casá-lo bem moço com uma rapariga séria e de boa família. E, acima de tudo, de cuja virgindade ninguém duvidasse por ali. Ora, essa Catarina Fernandes, baixota e gorducha, com um belo buço preto maior que o da própria futura sogra, como esta de respeitável feiúra também, não era exatamente o sonho dos rapazes do lugar. Muito menos de João Maldonado Filho. A penúltima coisa que um rapaz podia querer era casar aos dezoito anos. A última, é que fosse com Catarina Fernandes.

Mas acabou tendo que casar. Quando Catarina Afonso de Balbode botava uma coisa na cabeça, não havia cristo que conseguisse tirar. Pressionou o marido e o filho por mais de seis meses. Por fim recorreu ao velho artifício de sempre: as pontadas! Caiu de cama com as célebres pontadas no coração, tão fortes que, às vezes, ela chegava a se enganar de lado, acusando-as do lado direito do peito. Queixava-se em altos brados, para que toda a vizinhança pudesse ouvir:

– Ai, que me morro! Que me morro! Mata-me este filho ingrato. Vou-me desta sem ter o gosto de segurar um netinho ao colo. Ai, que morro de pesar!

E redobrava os gritos, os ais, os gemidos. O velho Maldonado, por mais que soubesse que aquilo era manha, era teatro, acabava cedendo. Uma, porque não suportava escândalos e gritarias. Outra porque, por mais que desacreditasse das cenas de Catarina, acabava sempre ficando na dúvida: E se dessa vez fosse verdade? E se a mulher morresse mesmo, se o ataque desta vez fosse verdadeiro? Sempre havia uma primeira vez. E o pobre João Maldonado acabava cedendo.

Quando a pressão do pai veio somar-se à da mãe, já por si irresistível, João Maldonado Filho capitulou. Estava bem, casava-se com aquela moça sem graça, pela qual não sentia nada, absolutamente nada. Ao menos, também não lhe tinha antipatia. E quando soube o valor do dote da moça, ficou entusiasmadíssimo. Valia a pena, sem dúvida. Deitava-se com a rapariga, fazia-lhe o filho que a mãe tanto queria para neto e ficava livre. Inventava uma viagem ou um trabalho bem longe, em Lisboa, se conseguisse. E aí ia ficando por lá, gozando a vida. Ou embarcava, resoluto, para os brasis!

A vida de casado não caiu nada bem ao rapaz. Não só perdeu sua liberdade de ir e vir à hora que quisesse, como também ganhou uma segunda Catarina em tudo igual à primeira. A esposa era uma cópia perfeita de Catarina de Balbode. Sempre de cara fechada, sempre reclamando de algo, sempre achando defeitos para colocar em tudo e em todos. E mandona! Mandona como Catarina velha! Que desastre, onde fora amarrar seu burro!

Na cama era uma verdadeira negação. Não no sentido de que se negasse. Mas não participava de nada. Era como um pedaço de pau. Logo o rapaz perdeu o pouco de desejo que, nessa idade, um homem sente até por buraco de fechadura. Foi parando de procurá-la e ela nunca se queixou disso. Talvez por isso, ou talvez por outra causa, nunca tinha engravidado. A velha Catarina vivia atormentando o filho por esse motivo:

– Me sais um frouxo, nem trepar em cima de uma mulher sabes, para emprenhá-la. Que negação! Me fazes morrer sem ter um neto. Me fazes morrer! Aí, as pontadas!

Mas, num certo dia de sábado, as duas mulheres foram cedo para a missa das seis. Então pai e filho tiveram um conversa decisiva:

– Meu pai, dize-me tu, como aguentas viver com uma esposa como essa, por todos esses anos? Eu estou começando a ver as mesmas coisas na minha e já não suporto mais. Decidi: vou-me embora de Vouzela!

Para sua grande surpresa, o pai não só apoiou sua decisão, como deu-lhe todo o dinheiro que vinha escondendo de Catarina mãe, há muitos e muitos anos, na esperança de um dia ter coragem de fugir, ele também, do seu martírio.

Dois meses tinham-se passado desde aquele sábado memorável para João Maldonado filho. Ou João Ramalho, como o próprio pai passara a chamá-lo daquele dia em diante. Até que era bom, se as pessoas se acostumassem com esse nome, nunca iriam confundi-lo com o do pai. Gostava: João Ramalho, João barbudo, João da barba crespa e arreganhada, da barba ramalhuda!

Pois agora Catarina mãe estava tendo um dos seus velhos ataques de pontada, entremeado de terríveis momentos de falta de ar e dor de estômago. Com se tonta estivesse, a gorda mulher se escorava nas paredes e gritava:

– Ah, mais tu não vais, não, senhor João Ramalho! Então porque tens uma barba ramalhuda já te consideras um homem capaz de desobedecer tua mãe? Ah, mas deixa que, antes que me mates do coração, dou-te eu mesma o corretivo, filho ingrato!

E Catarina mãe arrancou o avental da grossa cintura e ameaçou bater com ele, enrolado, na cabeça do filho, que saiu de casa rindo. Passou por Catarina esposa, que assistia a tudo atentamente da entrada da casa. João encarou-a com um sorriso estranho e ela o olhou com deboche, dando toda razão à sogra, evidentemente.

João voltou-se para a casa e encarou as duas Catarinas. A moça, roliça e feia, do lado de fora; a velha, feia e roliça, na soleira da porta. E João, o ramalhudo, sentindo-se um grande homem, falou bem baixinho para si:

– Até nunca mais, suas rolhas-de-poço de maus bofes! Quedem-se por aí a retorcer seus bigodes! Adeus!

Mas agora, três meses depois disso, a praga da mãe tinha se cumprido: filho desobediente, o mar castiga! Bicho da terra, o mar engolia-o, impiedoso, inclemente, frio, escuro. Morria...

Depois de um longo tempo, João Ramalho teve a sensação de estar como que despertando de um sonho. Então aquilo é que era morrer! Havia morrido afogado e agora estava deitado de barriga para cima em algum lugar que não sabia o que fosse. Estava completamente seco e um calor agradável tomava conta de todo seu corpo. Que delícia para quem, momentos antes, lutava como um louco contra aquela água gelada. Um calor gostoso, que chegava a lhe dar quentura até nos ossos! E uma ardência diferente na pele. Ah, se morrer era assim, então morrer era bom! A praga de sua mãe se cumprira, mas ele não estava infeliz. De olhos fechados, continuou desfrutando daquele calor amigo, que parecia vir de algum sol que existia também no outro mundo.

Então pareceu-lhe ouvir algo como cochichos e risadas leves de pessoas e uma sombra toldou-lhe a visão de luz avermelhada, que se infiltrava através de suas pálpebras fechadas. João Ramalho abriu os olhos e o que viu deixou-o extasiado. Sim senhor, estava morto e bem morto! Mas estava no Paraíso! Pois além daquele calor maravilhoso, além daquele sol dourado, o que ele viu logo acima de sua cabeça lhe deu essa certeza:

Uma ratinha!!!

Sim, não havia dúvida! Era mesmo uma ratinha, aquela mimosa rachinha que as mulheres têm no meio das pernas, só que essa não tinha aquele tufo de pelos negros e crespos, tão ramalhudos quanto sua própria barba. Era uma ratinha sem pelos. Aí mesmo é que João Ramalho teve certeza que estava no Paraíso. Pois essa era sua concepção de Paraíso há muito tempo: um lugar onde um homem chega e encontra uma mulher maravilhosa e jovem a esperá-lo. Uma só? Não, o que João via agora, a pairar sobre ele, era uma nuvem de ratinhas, todas peladinhas, todas do Paraíso. Muitas mulheres muito jovens andavam ao redor dele, conversavam e riam.

Uma delas, mais decidida, ajoelhou-se ao lado dele e começou a puxar a sua barba. Logo muitas outras fizeram a mesma coisa. E João viu que elas estavam todas entusiasmadas com sua barba ramalhuda.

Que sorte que tivera de morrer! Será que era verdadeira a história que o Tio Xavier lhes havia contado, numa noite de chuva e bebedeira? Era uma história que dizia que os árabes que morrem em batalha vão direto para o paraíso e lá recebem pelo menos vinte jovens virgens para amar, mulheres que nunca envelhecem, nunca engordam e não têm umbigo.

Mas as donas daquelas lindas ratinhas sem pelos tinham umbigo! Então, o que queria dizer aquilo tudo?

No instante seguinte, quando as mocinhas o tomaram pelos braços e o fizeram erguer-se, João Ramalho compreendeu a verdade: ele não tinha morrido, estava vivo, vivíssimo! E no meio de um grupo de indiazinhas tagarelas e totalmente peladas. Que raparigas formosas! Que cor maravilhosa de gente saudável, sem aquelas brancuras flácidas de sua mulher Catarina. E sem aquele monte despropositado de pentelhos a tudo atrapalhar. Estas aqui andavam nuinhas em pelo, quer dizer, nuinhas sem pelo, coisas mais formosas nunca lhe fora dado observar em vida. E como, vistas e sentidas tão de perto, delas não se exalavam aqueles cheiros azedos que vinham de sua mulher descuidosa e pouco dada às higienes?

As indígenas cheiravam a pele!  Exalavam um aroma sutil e adocicado de pele limpa e saudável, de jovens fêmeas em cio. E hom’essa, que gente mais bem humorada, pois se é! Onde, em todo Portugal, poderia ele imaginar gente assim tão amistosa, sorridente, e dada por demais ao rir e ao brincar?

As moças o foram puxando pelas duas mãos e o empurrando suavemente pelos ombros, até que ele entendeu que queriam que caminhasse com elas numa certa direção. João seguiu com elas, enquanto as comia com os olhos, vendo aquele festival de corpos perfeitos e desnudos, algo com que jamais tinha sequer sonhado na vida. As indiazinhas percebiam claramente a excitação do português e o atiçavam ainda mais, parecendo divertir-se muito com aquilo tudo. Conversavam e riam às gargalhadas. Com a breca, estavam completamente à vontade, nuas daquele jeito na frente de um homem!

João compreendeu claramente que havia sobrevivido ao naufrágio. Mas, se isso tinha acontecido, fora por um verdadeiro milagre, pois a última lembrança que tinha é que havia desistido de lutar e começara a afundar e a beber daquela água salgada e fria. Então havia perdido os sentidos. Ora, isso tudo só podia ter acontecido no exato momento em que seu corpo havia dado à areia. A própria água o havia jogado na praia e depois, com o recuo da maré, ficara ele ali exposto ao sol, que devia ter surgido logo depois da tempestade. Esta devia ter sumido tão rápido quanto aparecera. E ele tinha acordado seco e com aquela sensação maravilhosa de estar aquecido até à medula dos ossos.

Então aquele grupo de adolescentes índias o havia encontrado, puxado sua barba ramalhuda e, fazendo-o levantar-se, elas o tangiam agora em direção a algum lugar, talvez à aldeia em que viviam. E foi exatamente isso o que se confirmou, quando, minutos depois, mais indígenas, mulheres de todas as idades, homens e crianças, começaram a aparecer e a cercar o pequeno grupo jovem em marcha. Eram, todos eles, simpáticos, sorridentes e amistosos.

E foi assim que João Ramalho começou a sua longa história por esses brasis de Nosso Senhor, onde haveria de ser o fundador de Santo André, de São Vicente, com Martim Afonso e de São Paulo, com Manoel da Nóbrega.

MILTON MACIEL é escritor profissional, com 29 obras publicadas em três idiomas. É conferencista internacional, ghost writer e criador dos cursos THE PUBLISHABLE WRITER, nos Estados Unidos, e O ESCRITOR PUBLICÁVEL, no Brasil, cursos que formam escritores auto-editores independentes, nas áreas de ficção, não-ficção e marketing de livros. Vive em Miami (USA) e Joinville (SC).

sexta-feira, 16 de maio de 2014

A  PEQUENA WANG LI  丽  
MILTON MACIEL

A pequena Wang Li empunhou com coragem o carrinho de mão. Pai tinha que trabalhar na lavoura de arroz. Mãe ainda tinha que ordenhar mais cabras. Mas o leite para entregar ao caminhão de Zhang Wei já estava ali no latão, quente dentro do carrinho.

Muito pesado para os seis anos de Wang Li! Muito longe para seus pezinhos, mais de um quilômetro empurrando aquele tambor de leite, a roda do carro de mão chafurdando no barro do caminho, época de chuvas. E de frio, muito frio. A pequena Wang Li largou o carrinho, soprou bafo quente em suas mãos duras de frio. Depois retomou a marcha, com o típico estoicismo que as crianças do campo aprendem com seus pais na China. 

Com as chuvas, o caminhão de Zhang Wei só podia chegar até aquele ponto tão distante. E ninguém mais podia levar o leite de Pai e Mãe para Zhang Wei vender. Só a pequena Wang Li. Consciente de sua importância no processo de ganha-pão da família, a garotinha apressou o passo e ainda conseguiu sorrir, apesar do esforço enorme que fazia. Pai ia ficar feliz com sua filha!

Foi quando passou pela beira do pequeno lago que viu a libélula. O animalzinho se debatia dentro d’água, batia as asas e as patinhas, de borco sobre a superfície. O coração de Wang Li apertou. A libélula parecia estar muito cansada. Ia morrer. Que dó! Tão bonita...

Não, o pequeno inseto não ia morrer! Não enquanto ela, Wang Li, estivesse ali. Apanhou um graveto, o maior que encontrou por perto, e se aproximou da água. Não, muito longe! A distância era três vezes maior que a altura dela. Já contando o graveto.

Então ela viu o pedaço de tronco boiando ali na beira. Wang Li não sabia nadar. Colocou os pés na água e ela estava gelo puro. Mas Wang Li achou que aprenderia a boiar com o pedaço de tronco. O lago era fundo. Mãe sempre dizia para ela ficar longe da beira. Mas agora ela não podia obedecer Mãe. O animalzinho ia morrer. E, assim como só ela podia levar o leite para Zhang Wei, só ela podia salvar a libélula agora.

E a pequena Wang Li entrou resoluta na água gelada. Perdeu o fôlego, se assustou porque afundava, mas agarrou-se com força no tronco que boiava. O tronco não afundou. Wang Li era muito pequena e muito magra, o tronco nem se deu conta que ela estava agarrada nele. E ela, intuitivamente, começou a mover suas pernas e o braço livre, precisava chegar na libélula antes que ela desistisse de viver.

Mas a pequena Wang Li não tinha muita força nas pernas e nos braços. E não sabia o que fazer com eles, por isso demorou muito tempo até conseguir chegar onde estava o inseto. A pequena Wang Li não tinha força, mas era muito forte. Sua vontade era uma só e isso a fazia lutar sem parar: ela ia salvar a libélula!

E conseguiu chegar até ela, com o corpo todo quase congelando. Ela sentia muito frio, seus dentinhos batiam. Mas ela sabia que a libélula também sentia muito frio. E que a libélula só podia contar com Wang Li.

Os lábios roxos se abriram num sorriso, a mão direita mergulhou por baixo da libélula e a ergueu triunfante. Levou a mão perto da boca e começou a soprar bafo quente no bichinho. E a libélula começou a dar sinais que reagia, começou a mover suas asinhas com mais intensidade.

Wang Li pousou o inseto no tronco e começou a duríssima jornada de volta à margem. Não sentia mais as pontas do pés, as mãos estavam duras, o corpo todo tremia. E ainda tinha que cuidar para que o tronco não girasse, para não levar a libélula para a água de novo.

Quanto tempo ela persistiu no seu esforço sobre-humano, a pequena Wang Li não podia saber. Mas Wang Li era uma lutadora. E ela e sua libélula chegaram à margem. E saíram as duas da água! Ficaram ambas sobre a relva, exaustas, enregeladas, o tímido sol que ameaçava sair não as podia aquecer. Foi quando a pequena Wang Li ouviu o barulho do caminhão de Zhang Wei, lá longe na estrada. O caminhão parou, esperou um minuto e foi embora!

Não, Pai não ia ficar contente com sua filha. A pequena Wang Li tinha fracassado! O leite estava perdido, Zhang Wei só passaria ali depois de dois dias. Os lábios roxos da menina se abriram para deixar sair muitos soluços. Wang Li chorava. Pai ia ficar triste. Mãe ia ficar brava. Wang Li merecia castigo. Ficou com medo. Mãe ia castigar Wang Li. Se pudesse, não voltaria mais para casa.

Mas não podia. Tinha que voltar e contar a verdade. Suportar o castigo. Que Mãe batesse não importava tanto. Que Pai ficasse triste por causa do leite perdido, por causa do dinheiro que ia faltar... isso deixava Wang Li desesperada.

Colheu a libélula outra vez na mão direita, encobriu-a com a esquerda, fez uma concha, voltou a soprar bafo quente nela. Achou que ao menos a libélula devia estar contente. Wang Li ficaria muito contente também, se não tivesse que voltar para casa levando a terrível notícia.

Fez um esforço inacreditável, ergueu-se do chão. Então lembrou que o leite no latão ainda devia estar um tanto quente, saia fumegante das tetas das cabras. Tirou a tampa do latão com enorme dificuldade, muito dura para a pequena Wang Li. Mas ela não desistia nunca e acabou conseguindo girar a grande tampa. O vapor fumegante saiu de dentro do latão.

Wang Li mergulhou ali suas duas mãozinhas enregeladas e sentiu o calor maravilhoso a lhe devolver os movimentos. Depois fez concha com as mãos e começou a beber o leite morno. Achou que isso lhe daria mais forças.

Abaixou-se, apanhou a libélula que ainda não tinha forças para voar e a afastou do carrinho mais um pouco. Não queria molhá-la. Então voltou ao latão e começou a tirar com as mãos em concha o leite morno e a jogar sobre seu corpo gelado e sobre seus pés endurecidos. Ah, que sensação maravilhosa!

Quando achou que havia esvaziado muito mais da metade do latão, experimentou erguê-lo. Não tinha forças para isso mas tinha que tentar... Conseguiu! E, então, começou a verter vagarosamente o resto do conteúdo do latão sobre o resto do seu pequeno corpo sofrido,a começar pelo alto da cabeça.

Minutos depois, a pequena Wang Li caminhava vagarosamente empurrando o carrinho de mão. Agora estava leve, todo o leite tinha sido derramado!

Toda molhada, suja de barro e leite da cabeça aos pés, o cabelinho liso de leite empastado, os pezinhos nus sem os chinelos perdidos no lago, a pequena Wang Li chegou em casa. Chorava muito.

Mãe a viu primeiro. Entendeu que o leite havia caído do carrinho de mão, que a filha havia feito algo muito errado. Mãe começou a gritar com a pequena Wang Li, que chorou ainda mais. Mãe pegou a fina vara de bater, a garotinha tremeu ainda mais.

Mas Pai chegou por causa dos gritos. Mandou Mãe parar. O que tinha acontecido?

A pequena Wang Li contou a verdade. Mãe tinha lhe ensinado que não se deve mentir, mesmo quando a gente fica com medo. Então Wang Li não mentiu. Mostrou o monte de folhas que havia juntado no carrinho, ali dentro delas a libélula estava protegida, ainda não queria voar.

Mãe ficou mais furiosa ainda. Filha desobediente, tinha entrado no lago perigoso! E tinha perdido todo o leite por causa de um mísero inseto. Pegou de novo a fina vara de surrar.

Pai arrancou a vara da mão de Mãe. Quebrou a vara. Abraçou a pequena Wang Li. Pai tinha lágrimas nos olhos. Sua filha podia ter morrido, isso o deixava agoniado. Mas sua filha tinha feito tudo aquilo para poder salvar uma vida, a vida de um serzinho indefeso que sofria e ia morrer. Isso o deixava emocionado. E orgulhoso, muito orgulhoso.

Sua pequena Wang Li era uma mulher de coragem e de compaixão! E de grande inteligência também. Pai mandou Mãe aquecer um monte de água, sua Wang Li agora ia ficar por muito tempo dentro da água morna, se limpar, se aquecer, parar de tremer para não ficar doente.

Mãe compreendeu que estava errada. Pela primeira vez na vida pediu perdão à pequena Wang Li. Correu para juntar a água e a lenha, ia ferver muitas panelas para sua filha. Pai pegou Wang Li no colo, pegou coberta, envolveu a menina colada nele, aqueceu-a com seu próprio calor, beijava-lhe os cabelos sujos de leite.

Wang Li estava feliz: Pai não estava triste! Pai não se importara com o leite perdido. Pai não deixara Mãe castigar Wang Li. Pai protegia e aquecia sua filha. Pai bom, Wang Li gostava muito de Pai. De Mãe também. Menos, porque Mãe muito gritona e nervosa, Mãe batia muito em Wang Li.

Mas Mãe veio e tirou Wang Li do colo de Pai. Levou-a para a grande tina de água quentinha. E lavou-a cuidadosamente. E desenredou seus longos cabelos negros e lisos. E abraçou sua filha, porque sabia agora que ela podia ter morrido no lago, afogada ou por causa da água gelada.

Mãe agradeceu em sua mente que Pai tivesse quebrado a vara. Não, sua Wang Li não merecia apanhar! Nem agora, nem nunca mais. Mãe tinha apanhado muito, muito, na infância, achava que era assim que se educava filha. Mas o sorriso surpreso de Wang Li, ali dentro da tina de água quente, lhe dizia que estivera errada. Ainda era tempo, tudo haveria de corrigir dentro de si mesma. Pai era um homem bom. Carinhoso, como mãe dele. Ela, Mãe, não sabia dar carinho, não tinha aprendido. Mas não ia mais ser bruta com sua menina.

Nesse momento, enquanto Mãe abraçava o corpinho de Wang Li dentro da tina, algo entrou pela fresta da janela.

Era a libélula, que tinha voado enfim. E voou ao encontro de sua salvadora. Pousou na beira da tina, depois no braço da menina. Ficou ali muito tempo, mexendo as asas lenta e ritmadamente.

E, enquanto duraram seus curtos dias de inseto, a libélula nunca mais se afastou daquela casa. Nunca mais se afastou de Wang Li.