sábado, 11 de maio de 2013

RITINHA - 17  
MILTON MACIEL

Final da parte 16

   Sim, agora ele podia reconhecer, aquela femeazinha era tão Timbó como qualquer dos seus filhos machos matadores. Nunca nenhum deles tivera a coragem de erguer a voz contra o pai. Bastião ainda há pouco mostrara coragem, ao se por contra a opinião dele, mas mesmo assim se desmanchando em desculpas, com medo de ser forçado a calar-se. Mas essa menina era corajosa por demais. Faltava-lhe com o respeito e, ainda por cima, deitava-lhe aquele olhar que nunca ninguém, em toda sua longa vida de mais de sessenta anos, tivera alguma vez coragem de deitar. 

PARTE 17   
Para completar, algo tão desconcertante como aquele olhar para ele incompreensível, foi o movimento da menina. Com o rabo do olho, Dito chegou a ver que Marta e Manoela se abraçavam, amedrontadas. Mas Ritinha, ao ver o pai se aproximar de braço erguido, não mostrou medo. Ao contrário, deu um passo em direção a ele e ergueu o rosto para receber o tapa, enquanto o encarava com aquele olhar de desprezo.

   Sim, era isso: desprezo, desafio, e não medo! Isso ficou ainda mais patente quando vieram as palavras da menina:

– Bata! Seja valente, bata em mulher! Pode vir, que eu não lhe tenho medo. Depois que apanhei daquele vagabundo, eu jurei pra mim mesma que não ia mais ter medo de agressão. Pode vir. Eu não tenho medo. E também não lhe tenho respeito porque não lhe aceito como pai. Bata, vamos! Seja homem! Homem covarde, que bate em mulher. Porque eu não lhe dou o direito de bater em mim como filha, não lhe reconheço como pai. Um pai sem alma, que não reconhece as filhas, não merece respeito! Quantas das suas filhas deixadas por aí não tiveram que virar quengas, hein? Quantas filhas quengas a sua maldade já não espalhou por aí? Quantas quengas Dito Timbó gerou e espalhou pelo mundo?

   Aquilo foi demais para o homem. Era desaforo demais, voltou a erguer o braço e ia soltar o tapa com toda raiva. Mas, nesse instante, duas mãos se agarraram ao seu braço e unhas de mulher se cravaram na sua carne. Era Gabi!

– O senhor bata em mim, também! Se for bater nela, vai ter que bater em mim também! E eu lhe juro que não saio da frente enquanto o senhor não me matar. Me matar, entendeu?! Já que o senhor é matador, então mate logo nós duas, fique com essa glória na sua ficha de matador famoso. Eu não vou deixar o senhor fazer nada contra ela enquanto eu estiver com vida. Eu dou minha vida por ela, quantas vezes for preciso!

   Outra vez Dito Timbó estacou atônito. Outra vez o braço tombou inerte ao lado do corpo. Para piorar, viu nesse momento que seu três filhos tinham chegado ao grupo e observavam a tudo calados, sem conseguir entender o que significava aquilo.  Gabi voltou à carga:

– Eu não lhe quero mal e lhe respeito muito, seu Dito. Primeiro, porque é pai da minha amiga, ainda que ela agora diga que não. Depois porque acho que o que o senhor fez com o amaldiçoado do João Boto foi uma coisa muito bem feita. E também porque reconheço que o senhor tem bom coração, que está adotando como seus os filhos de Dona Marta. É preciso ser um homem muito decente para fazer uma coisa dessas. Pode deixar que eu vou procurar convencer Ritinha a ir com o senhor e o resto da família dela. Não é justo que ela deixe de ser uma de vocês por causa de uma reles quenga que nem eu.

– EU NÃO VOU, IRACEMA!!! – berrou Ritinha, revelando indiscretamente o verdadeiro nome da amiga, sem sequer percebê-lo – Eu já disse que não vou! Eu vou ficar com você. Vou seguir você para onde você for, não importa o lugar, não importa a vida que a gente tenha que levar. Eu vou embora é com você, não com eles.

– Mas, meu amor, pense bem! Que vida que você vai levar comigo? Eu sou sozinha no mundo, sou marcada como puta, sou mulher da vida. Meu futuro é só esse. Não venha comigo, por favor. Pense bem. Pense em sua mãe, em Manoela que lhe ama tanto. Tente se entender com seu pai, eu sei que vocês podem se entender ainda. Não faça essa besteira, eu não valho a pena, Ritinha. Eu sou só uma quenga... Só uma quenga que não tem valor nenhum...

   E a fisionomia de Gabi/Iracema foi mudando da guerreira de instantes atrás para a de uma pessoa cansada e entristecida ao extremo. Em que pese o enorme esforço que fazia, seus olhos começaram a derramar lágrimas e todo o seu peito tremia ritmicamente com os soluços engolidos.

– Todo o valor do mundo, Iracema... Gabi! Todo o valor do mundo, isso é que você tem. Você vale mais do que todo mudo junto pra mim. Você me salvou, cuidou de mim, me deu amor, amor de verdade. Esse homem aí me rejeitou; mesmo sem saber que me rejeitava, não deixou de me largar no mundo como uma coisa qualquer. Mas você cuidou de mim. Você está agora mesmo me defendendo e me defendendo contra a agressão de um matador. Você foi a única pessoa que teve coragem de me proteger e cuidar de mim, a única que não teve medo de João Boto, outro matador. Você é a pessoa mais corajosa que eu já vi, Gabi. Você acha que você não tem valor? Mas como? Você é a pessoa mais preciosa do mundo, Iracema. A mais bondosa, a melhor alma que eu já conheci. Me deixe ir com você, se eu tiver que me separar de você, então eu não quero viver mais. Meu lugar é com você.

– Minha filha! Minha filha! Não diga uma coisa dessas. Sua mãinha não merece ouvir isso. Seu lugar é com sua família. Eu compreendo o que você sente por Gabi... É Iracema, não é? Pois eu sei o que você sente por ela. É gratidão, reconhecimento. É amor, eu sei, porque essa menina é mesmo a coisa mais querida e mostrou um monte de vezes que ama você a ponto de se arriscar por você, de trabalhar por você. Eu também acho que é uma coisa muito cruel separar duas pessoas que aprenderam a se gostar tanto assim. Mas Dito pensa diferente e eu não consegui fazer que ele mudasse de opinião. O que é que eu posso fazer, filhinha? Se ponha no meu lugar. Pense também na sua irmãzinha, Manoela passou dias e dias chorando, chegou a adoecer feio quando você sumiu. Ela também lhe ama tanto! Todos nós amamos você demais, minha filha.

   Quando tudo estava no maior impasse e nenhuma solução parecia possível, a luz se fez subitamente. E ela veio da mente simples e do coração generoso de Bastião. Foi ele que caminhou até o centro da roda formada e, postando-se entre Dito e as duas meninas, ofereceu:

– Dá licença, gentes! Deixa eu falá, mi iscuta cum atenção. Eu tenho cá uma idéia pra ocês. Painho num acha certo tê minina Gabi, qui é Iracema também, na casa dele, em Missão Velha. I mana Ritinha num qué si separá di minina Gabi, o qui eu também acho certo. Marta i Manoela num qué qui Ritinha si afaste delas, o qui também tá certo. Pois intão, ara, eu tenho a solução: Ocês vão tudo pra Missão Velha cum painho, como tava cumbinado. I eu levo mana Ritinha i minina Gabi cumigo pra Juazero, qui é ali bem pertinho di Missão Velha. Pronto. Aí ocês pode si visitá à vontade!

– Êita idéia porreta, mano véio! – exclamou Osmar, entusiasmado – Idéia di gênio, meu irmão! Dispois ocês diz qui eu é qui sô intiligente. Óia só qui idéia mais pai-d’égua di mano Bastião!

– Porreta, sim sinhô!... – falou até o calado Jeremias
CONTINUA

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