terça-feira, 30 de abril de 2013


KHIRBET QUMRAN – Nathan, o Zelote 
MILTON   MACIEL

   Do alto, à entrada da caverna, a velha contemplava a paisagem de Khirbet Qumran. A noite caia rápida e a visão da praia e da grande extensão de água à sua frente ia se fazendo mais e mais enevoada, aumentando a falta de nitidez com que as cataratas crescentes em seus olhos a castigavam. Mas nem toda a névoa deste mundo seria capaz de esconder dela o vulto odioso, inconfundível, que se aproximava do penhasco. Puxando um jumento, Shlomo, o publicano, caminhava lentamente pela praia, com seu passo oscilante de bêbado. Uma vertigem tomou conta da velha - quarenta anos de humilhação e maus tratos nas mãos daquele maldito marido assomaram à sua lembrança, enchendo de tristeza e revolta sua mente, até então envolta pela enorme paz do ambiente.

Ali, judiciosamente, a velha se dedicava a colocar os manuscritos dentro dos grandes vasos de argila. Os romanos avançavam cada vez mais e os líderes da comunidade essênia, receosos da destruição de seu grande legado, haviam decidido escondê-lo nas grandes cavernas de Qumran.

   Lágrimas assomavam aos olhos baços da pobre mulher quando algo lá embaixo despertou sua atenção. Da escuridão já quase plena, assomou um vulto por trás de Shlomo e o atacou com um enorme remo de barco. Um único golpe certeiro no alto do crânio, um ruído de pote quebrando, e o velho tombou pesadamente sobre os joelhos. O agressor agiu célere: arrastou o corpo para junto de um grupo de barcos distribuídos entre a areia e a água e o escondeu rapidamente, cobrindo-o com um grande monte de redes de pesca.

A velha passou da surpresa e do susto para uma sensação de alívio e euforia. Ninguém precisaria lhe contar, havia presenciado tudo: o pesadelo chegara ao fim! Décadas de martírio estavam agora encerradas pelas mãos de um Anjo Vingador. Sempre tivera essa convicção: um dia o Senhor haveria de enviar um anjo para punir todas as incontáveis maldades de Shlomo. Por que tardara tanto?

   A velha então deixou-se cair de joelhos, suas lágrimas rolando abundantes agora, enquanto murmurava um rosário de preces e frases ininteligíveis, deixando sair do fundo do peito toda a emoção de que estava tomada. Toda ela parecia estremecer em convulsões, mas seus olhos, quando se abriam, revelavam toda a enorme, toda a indizível alegria de que se via inundada. Nessa situação ficou por longos minutos, até que sua atenção foi de novo chamada por movimentos de pessoas lá embaixo. 

Viu que um pequeno grupo de pescadores se encaminhava para os barcos. E notou que um deles ia direto para o tufo de redes empilhadas, formando um monte estranho à prática comum daqueles homens, o que lhes havia chamado a atenção ao chegarem.  A mulher se ergueu, alarmada. A violenta emoção de euforia deu lugar a um momento de preocupação. Logo os pescadores descobririam o corpo de Shlomo. E, pouco depois, perceberiam que um dos seus barcos havia desaparecido. Nele, o Anjo Vingador se evadira rapidamente da cena do crime.

A velha sentia–se tão imensamente grata a seu redentor que a última coisa que queria é que os homens saíssem à sua caça em seus pequenos veleiros. Acalmou-se um pouco ao lembrar que agora já era noite fechada e que, talvez, os homens custassem a perceber o furto do barco. Mas o que havia por baixo do estranho monte de redes estava para ser descoberto no instante seguinte: o homem já havia começado a remover as redes de cima e chamava, excitado e aos gritos, os seus companheiros.

Aquele a quem a velha chamara seu Anjo Vingador era Nathan da Galiléia. Um Zelote dos mais ativos e dos mais procurados por romanos e judeus, com cabeça a prêmio. Solitário por vocação, Nathan quase sempre agia sozinho. Por isso suas emboscadas e ataques não eram espetaculares. Ao contrário, resumiam-se a cuidadosos e bem planejados raides contra um único indivíduo. Passara, desta vez, quase uma semana à caça do velho publicano Shlomo, um cruel explorador do seu próprio povo, de quem arrancava escorchantes tributos que, depois, sonegava em parte aos romanos.

Shlomo fora a causa da desgraça de muitos homens e de suas famílias, nesse rol incluído o pai de Nathan. O velho Shaul, expropriado da maior parte dos seus bens, não havia resistido à tristeza e à humilhação. Embora a família contasse que ele caíra do penhasco, seus filhos perceberam que ele havia saltado para o fim, em desespero. Agora Nathan lhe fizera justiça.

Sem saber do drama da velha mulher do abutre publicano, via a si mesmo como um Anjo Vingador. Mas não apenas de seu pai, senão que de todo um povo massacrado e vilipendiado pelos invasores romanos e seu asseclas judeus, estes ainda mais odiosos por se locupletarem com as escassas sobras arrancadas a pulso de seus compatriotas. Justiçado Shlomo, escondera-lhe o corpo sob redes de pesca e fugira tomando um dos barcos a vela que estavam ali fundeados.

Agora seu olhar perscrutava o grande lago de Asfaltitus, ao qual os romanos preferiam chamar de Mar Morto.  Navegava na noite fechada, sem lua, na escuridão quase completa. Mas seus olhos habituados às longas espreitas nas noites de emboscada, seu passado de menino marinheiro e pescador no Lago de Genesaré, à beira do qual nascera em Cafarnaum, lhe permitiam navegar com segurança mesmo nessas condições. Os mistérios do lago, suas correntes, sua água espessa de sal, não lhe eram estranhos. Por ali já se deslocara em outras missões. Agora, deixando Khirbet Qumran, velejaria toda a noite e pelos dias seguintes, até alcançar o extremo sul do Asfaltitus, saindo dele na altura de Masada. Dali se esgueiraria mais uma vez pelas montanhas, chegando a Hebron e de lá, devidamente disfarçado, haveria de achar caminho para Jerusalém, onde esperava encetar um novo ataque, agora dirigido a um funcionário romano, cúmplice de muitos dos achaques de Shlomo.

   Na noite densa, de poucas estrelas escurecidas pela névoa, Nathan olhava seu Lago Asfaltitus com amor e gratidão. Outros talvez nada pudessem ver, mas para o galileu, ele era totalmente perceptível: via suas águas serenas e escuras, os bancos de areia e os rochedos às margens, as raras fogueiras acesas, uma ou outra escassa casa ou grupo de casas iluminadas pelas lamparinas, nos quase inexistentes vilarejos situados sobre as escarpas. Mar Morto? Não. Mar cheio de esperança de vida enquanto por ali passassem, tudo arriscando, guerrilheiros patrióticos e corajosos como Nathan, o galileu - Nathan Zelote.
RITINHA - 6    
MILTON  MACIEL

Final da parte 5:
– Iracema. Eu já lhe falei, mas acho que você ainda estava muito grogue da anestesia que a doutora lhe deu. Mas todos me chamam de Gabi. Olhe, deixa eu lhe dizer, ou melhor, prevenir: eu sou quenga, entendeu? Puta. Não é bom para você ser vista com gente como eu. Por isso, assim que você ficar melhor, eu vou sumir daqui e da sua vida, fique tranqüila. Mas enquanto você não estiver bem, eu não pretendo arredar pé deste quarto aqui. A doutora não só deixou, mas até me pediu para passar esta noite aqui, cuidando de você. Mas depois, ela lhe dando alta, eu vou sumir, tá?

   Fazendo um enorme esforço, Ritinha balançou a cabeça para os lados, querendo dizer que não. Mais uma vez forçou-se a falar:

– Não... vá... por ... fav...  – e adormeceu de novo.

PARTE 6
   Só despertou no dia seguinte, de tarde. Abriu os olhos procurando por Gabi. Ela continuava ali, sentada na cama, com carinha de sono e cansaço. Segurava o braço de Ritinha, procurando lhe dar uma posição mais confortável para aliviar a área ofendida pela agulha por onde a garota recebia soro continuamente. Gabi a recebeu com um sorriso exultante:

– Bem vinda, amiga. De volta à vida!

– Iracema... – balbuciou Ritinha – Você está aqui! Obrigada...

– Eu não falei que ficava? E tenho boas notícias. A doutora disse que fez você dormir com sedativos, fez você apagar para se recuperar e não pensar em nada. Você está dormindo faz um dia.

– Um dia?! Puxa, mas... Ai!

– Calma, menina, não tente se virar assim. Deixe que eu ajudo. Aposto que você quer fazer xixi, não é?

– É. Mas e a dor? Será que vai doer muito? Estou com medo...

– Espere aí que eu vou buscar a doutora. Ela me pediu para ir correndo atrás dela, assim que você acordasse. Mas, antes, deixe eu dizer uma coisa: você vai comigo, quando puder sair daqui. Eu fiquei sabendo de toda a sua história esta manhã. Não se fala outra coisa por aqui. Sei que você não tem para onde ir. Pois então vai comigo. Eu tenho um quartinho pequeno, a gente se ajeita por lá.

   Dias depois, quando Ritinha teve alta, Gabi a levou consigo para o seu pequeno quarto com banheiro, alugado nos fundos de uma casa de comércio, já à beira da rodovia. Como Ritinha não podia andar toda aquela distância, do Posto de Saúde até o quarto de Gabi, esta acertou uma corrida de táxi com um motorista. Quando chegaram, Gabi abriu a porta e ajudou a amiga a entrar. Pediu que sentasse na cama de casal, a única no aposento, e aguardasse um pouco, enquanto ela ia pagar a corrida. Ritinha lamentou-se:

– Puxa, Iracema, você vai gastar o seu dinheiro por minha causa, essa corrida deve ser tão cara!...

– Não, bobinha. Até que ficou barata, eu já vou dar um jeito. Fique tranqüila que eu não demoro.

   Demorou uns dez minutos, no entanto. Voltou com cara de contrariada:

– Ô velho difícil de gozar! Pensei que eu ia ter que ficar pagando a tarde inteira.

– Gozar?! Que dizer que você... Você teve que dar pra ele? Lá no táxi? Que horror!

– Dar coisa nenhuma, bobinha. Foi um outro negócio que eu fiz nele..

– Um o que?

– É, você ainda não sabe nada, mesmo. Mas vai aprender, eu explico tudo para você, pode deixar. É uma coisa que a gente faz no homem com a boca, outra hora eu explico. Agora vamos ver como a gente faz para se acomodar as duas na cama. E vamos ver alguma roupa para você.

– Ai, Iracema, eu não tenho nada, fugi com a roupa do corpo e ela estava toda rasgada e suja.

– E eu não sei? Eu mesma botei tudo no lixo, lá no posto. Eu não queria que você tivesse que ver uma só daquelas peças, iam ser uma péssima lembrança para você. Então eu saí pelo Posto de Saúde e pelas lojas do centro e pedi roupas para você. Mas foi a doutora quem mais ajudou. Trouxe esta sandália bonita e roupas que eram da filha dela, diz que regula com você em tamanho. As sandálias ela comprou. E eu consegui o que está nessa sacola, olha aqui!

– Meu Deus, Iracema! Quanta roupa! Você é demais! Obrigada.

– Ah, os filhos de uma égua não queriam dar, não. Mas algumas lojas acabaram colaborando. E estas peças melhores aqui – estas mais caras – bem, adivinhe como eu consegui? Dou um doce!

– Não vá me dizer que...  você teve que dar também?

– Adivinhou! Fui para dentro do provador com o dono da loja, ajoelhei e paguei o preço.

– Céus!... eu nem sei o que dizer. Você foi tão boa pra mim. Que seria de mim se você não tivesse me achado caída, me socorrido? E aí você me levou para o Posto, ficou lá todo o tempo comigo. Agora me trouxe pra sua casa. E ainda pagou táxi e roupas com... com... com esse tal de... como é mesmo o nome?
CONTINUA

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Honi soit qui mal y pense  
MILTON  MACIEL  (Contos Eróticos)

Sabe, amigo, eu era um executivo de finanças, assessor de diretoria, considerado o mais jovem e mais promissor da multinacional em que trabalhava. Pois veja você, meu caro, como uma brilhante carreira pode ser destruída em coisa de minutos, sem que você tenha a menor culpa de nada. Deixe que eu lhe conte com calma, enquanto a gente pede mais uma rodada de absinto ao garçom.

Pois bem, na noite daquele dia fatídico haveria uma festa na empresa. E, durante essa festa, meu diretor iria fazer o anúncio de qual de seus assessores seria o escolhido para a grande promoção. Seria eu, ele já me havia confidenciado. Tinha total confiança em mim. 

Além do mais, minha esposa se fizera amiga da esposa dele. Então, na tarde daquele dia, as duas resolveram ir juntas ao Shopping Morumbi, procurar sei eu que raio de complementos e adereços para usarem à noite.

Eu fui escalado para acompanhá-las, a pedido do meu chefe, que me deu a tarde livre. Ele queria, também, que eu relaxasse e me preparasse para o meu grande triunfo daquela noite. Então fomos para o Shopping, minha esposa e eu, e lá nos encontramos com a esposa do diretor. Mas ela não estava sozinha, Junto com ela, estava sua filha de dezessete anos, belíssima adolescente que, assim que me viu, tratou de deixar bem claro que iria atormentar minha vida.

Como? Já lhe digo, camarada. Vai mais uma? Pra mim também. Como me atormentar? Bem a garota me lançava olhares devoradores, sorrisos marotos, ia para trás das outras duas para fazer gestos com a boca, passando a língua entre os lábios. Eu não sabia o que fazer, comecei a entrar em pânico. 

Veja bem: minha mulher tem o ciúme doentio de dez Otelos, o gênio furibundo de Mike Tyson, a menina era menor de idade e, para piorar, era filha do meu chefe. É claro que eu não ia querer nada com ela, por mais tentadora que fosse aquela boca carnuda, aquele rosto perfeito, aquele corpo enlouquecedor. A sacana sabia que era irresistível, estava era tirando uma com a minha cara, foi o que eu logo percebi.

Tentei me manter distante, mas minha mulher exigia minha presença, pois tem a mania de me mostrar cada coisa que escolhe e de pedir sempre a minha opinião. Pois a safada da menina começou a fazer o mesmo. E a coisa ficou preta – literalmente preta, você já vai ver – quando elas foram todas para os provadores de uma loja de roupas. 

Pois a garota esperou que as outras duas entrassem em seus respectivos provadores e aí, de uma arara bem próxima, retirou algumas calcinhas, tanguinhas minúsculas e veio me mostrar. Eu tremi na base quando ela me perguntou, na maior cara de pau, com qual delas eu gostaria que ela estivesse no nosso primeiro encontro. Fiquei mudo, estático, de olhos arregalados, sem saber o que falar.

Nesse momento exato, a mãe dela abriu a cortina do provador. A menina, muito esperta e ágil, virou de frente para a mãe, levou a mão com uma tanguinha preta rapidamente para trás do corpo e a arremessou, ainda mais para trás.

Só que nesse ainda mais para trás estava eu, meu chapa. A calcinha veio aterrissar diretamente no meu rosto. Acho que não teria tido maior problema se eu não fosse um indivíduo de reações muito lentas. Mas, infelizmente, eu o sou

.
O que tem isso? Ah, camarada, você não sabe o quanto eu desejei sempre ser um indivíduo de respostas rápidas. Pois o raio da calcinha preta deixou tudo escuro na minha frente e eu levei um tempo enorme para entender o que estava acontecendo, demorei para levar as duas mãos à face e começar a afastar aquele estranho objeto que me envolvia o rosto. Lembro de ter levado um tempo a mais, aspirando o cheiro bom de tecido novo, nunca usado, daquela peça de roupa. 

Pois foi exatamente nessa hora que minha mulher tinha que abrir a cortina do provador dela. E aí deu de cara comigo, com uma calcinha preta no rosto, segurando-a ali com as duas mãos, com uma gesticulação de quem está aspirando um perfume. Quando minha visão foi restaurada, escapando ao nylon preto, dei de cara com a expressão furibunda da minha esposa.

Ah, companheiro, aquela ali não se controla. Vi que ela ia aprontar o maior escândalo, como de hábito. E aí ia ser o fim para a minha carreira, imagine a esposa do chefe contando tudo para ele. Não tive dúvida, dei meia volta e saí dali quase correndo. Por um espelho de coluna vi que minha mulher tinha ficado parada no mesmo lugar – eu tinha ganhado uma sobrevida. Curta, somente até encontrá-la de novo. 

É, você está certo, foi isso mesmo, eu precisava me esconder, não tinha outro jeito. Assim dava tempo para ela, ao menos, perceber que não podia armar um barraco em plena loja, junto à esposa do meu chefe e à sua filhinha.

Filhinha! Pois sim, uma capeta escolada é o que era aquela menina. O fato é que eu consegui me escafeder por entre prateleiras e colunas e – ó, visão salvadora – um bendito conjunto de provadores na ala de roupas masculinas. Pois foi ali mesmo, no primeiro deles, que eu me enrusti, fechando a cortina. Aí abri uma frestinha e fiquei espiando a loja. Minha mulher e a esposa do chefe passaram duas vezes por ali. Na segunda, eu tive certeza que à minha procura. 

Pois é, amigo, pois é, você tem razão. Que situação! As duas sumiram do meu campo de visão, mas outra mulher se aproximou do meu esconderijo. Era ela, camarada. Ela!
Ela tinha conseguido me seguir pela loja, veja só. Pois a danada abriu e fechou rapidamente a cortina do provador, jogando-se para dentro dele, com dois sutiãs na mão. E aí, rindo o tempo todo para mim, tirou a blusa, o sutiã que usava e, com aqueles dois monumentos de fora, teve a cara dura de perguntar qual dos dois sutiãs que ela tinha numa das mãos eu ia querer na nossa primeira noite. E fez isso posicionando-se de uma tal forma que não me permitia sair do provador. 

E eu, você pergunta? Ah, eu em pânico total, meu amigo. Total! Meus hormônios me faziam querer partir pra cima daquela deusa, meus neurônios me avisando do risco, do ilógico, do absurdo daquela situação. E os neurônios predominaram. Você pode não acreditar, mas eu, em cinco anos de casado, nunca traí minha mulher. E, logicamente, não haveria de ser ali, naquela hora, dentro daquele provador que eu ia começar. Até porque, você sabe, trair e coçar é só começar.

Então, com minha lentidão habitual, fiquei procurando as melhores palavras para convencer aquela maluca a me deixar em paz, botar o sutiã e a blusa e se mandar dali. Pensei em pedir para que me deixasse em paz, que tivesse só um pouquinho de juízo. Mas eu estava tremendo e gaguejava demais. Mesmo assim falei, de forma entrecortada, mas bem alto:

 – Por favor... Me deixa... Deixa... Só um pouquinho...

Falei alto demais, companheiro! Minha mulher e a mulher do chefe vinham passando, minha voz foi reconhecida, a cortina do provador puxada com violência e...

 – Marcelo!!! Desgraçado! Tarado! Ah, eu te mato, infeliz. E começou a bater ali mesmo.

A mulher do chefe nem me olhou, encarava a filha com olhos de reprovação e horror:

– Helena!!! Sua vaquinha, sua ninfo! Só pode ter sido você, não é?

Pois a Heleninha nem se perturbou. Vestiu-se calmamente, calmamente ficou a olhar a cena magnífica da perseguição que minha mulher, enlouquecida, empreendia no meu encalço, jogando tudo o que ela pudesse apanhar pela loja, em cima de mim. Roupas, frascos de perfume, relógios, sapatos, até um manequim. Imagine, meu chapa, imagine só o vexame, o quebra-quebra. E todo mundo, é claro, a dar razão para ela. 

Quando enfim eu consegui chegar à porta de saída da loja, a esposa do chefe já estava conseguindo conter a fera furiosa, usando toda a sua força muscular. Mas, é claro, não conseguiu conter a gritaria, o berreiro infernal, a chuva de palavrões mais variegada que aquele Shopping conheceu até hoje.

Bom, foi assim, camarada. A minha carreira acabou naquela tarde. Nada de festa, nada de nomeação para mim. Tudo acabado. Imagine só, eu dando escândalo sexual, atracado com uma menor de idade, que eu tinha acabado de conhecer, ainda por cima filha do meu chefe, no provador de uma loja, conseguindo que ela já tivesse tirado o sutiã e pedindo para ela deixar, deixar só um pouquinho. Cara, eu estava acabado.

A última coisa que eu lembro, daquele inferno de Dante, foi que, quando eu ia transpor a porta de saída, uma gerente velhusca me encarou com nojo e falou:
– Sim senhor! Que vergonha! Como se explica...

Não a deixei concluir. Do fundo da minha desgraça, do alto da minha total inocência, do alvor da minha pureza, emergiu um brado terrível, colérico, que deixou todo mundo imóvel e assustado. Olhei para todos com raiva e desprezo e gritei, muito alto e em bom francês, algo que brotou do fundo do meu cérebro, do meu inconsciente, talvez:

Honi soit qui mal y pense!!!   


E fui embora para nunca mais.

Ah, o que isso significa? Você não entende? Ora, também ninguém naquela loja entendeu. Quer dizer, eu acho que a esposa do meu chefe sabia o que eu estava dizendo, pois eu a vi sacudir a cabeça concordando, enquanto dava um beliscão fenomenal em sua filha, que soltou um berro de dor. Nesse momento minha mulher se aproximou por trás dela e desferiu-lhe um sonoro tapa na cara. E, enquanto as duas embolavam no chão a puxar-se os cabelos e a gastar estoques inteiros de xingamentos, com todo mundo – menos a mãe da garota, que olhava tudo com um sorriso, veja só – tentando a apartar a briga, eu tomei calmamente um elevador, paguei o estacionamento e, pegando meu carro, comecei minha viagem sem rumo para o interior de São Paulo. E hoje estou aqui com você, neste bar da sua cidadezinha.

Ah, sim ia esquecendo. “Honi soit qui mal y pense” quer dizer mais ou menos o seguinte: “Maldito seja quem pensar mal disso!”  Ou: “Vergonha para quem pensar mal disso”.
Afinal, camarada, eu era completamente inocente, eu era a única virgem pura ali. Ou, se eu não era a única, certamente a Heleninha é que não era outra.

Pois veja, amigo, como as aparências podem de fato enganar. Honi soit qui mal y pense!  É assim mesmo, é francês, você pronuncia assim:  oní soá qui mal i panse. Mais um absinto? Certo, a saideira então. 

RITINHA - 5  
MILTON  MACIEL  

Final da parte 4
Mas, com o passar dos meses, o corpo de Ritinha foi se alterando e despertou a atenção e o desejo lúbrico do padrasto. Então ele abusava de Manoela até que Ritinha começasse a gritar com ele. Aí voltava-se para ela, procurava agarrá-la à força e tentava arrancar a roupa dela. Manoela, sempre covarde, não fazia nada em defesa da irmã, ficava estática e chorava baixinho. Não abria a boca para nada, tal era o seu medo de ser agredida. Já Ritinha mordia e esperneava, dava chutes, berrava. Mas, com o tempo, isso parecia excitar o homem ainda mais, estimulava os seus impulsos sádicos mais primitivos.

PARTE V

   Até que um dia ele não se conteve. Agarrou e empurrou Manoela para a porta da rua, que estava entreaberta. De propósito afrouxou o arrocho e se dirigiu para Rita, que o insultava. Como ele esperava, desta vez Manoela teve forças para destravar e correr porta afora. Aí João Boto, com um salto, fechou a porta com a chave e saltou sobre Ritinha, agora de punhal na mão. A garota ficou apavorada quando o padrasto encostou a lâmina no seu peito e ameaçou cortar os bicos dos seus seios se ela não fizesse tudo o que ele ordenasse. A menina começou a chorar e deixou-se despir, tremendo de medo. Mas, quando viu que o homem havia largado o punhal para poder ter as duas mãos livres para mexer nela e nele, recomeçou a chutar e morder, gritando. João Boto endoideceu de vez e começou a bater na menina com toda a força, desferindo-lhe uma saraivada de socos e pontapés.

  Quando ela estava quase desacordada, travou-lhe os braços, abriu-lhe as pernas sem encontrar mais resistência e fez tudo o que quis com ela. Por fim deixou-a abandonada no chão, toda machucada da cabeça aos pés, sangrando em várias partes do corpo. A selvageria e a explosão de primitivismo serviram para arrancá-lo da bebedeira e ele saiu, de volta para o bar, em busca de mais álcool. Queria, também, contar para todo o mundo o que tinha acabado de fazer.

   Ao chegar à porta viu que a menina não estava desmaiada. Voltou à sala e começou a ameaçá-la de morte. E disse que, se ela o evitasse dali em diante, então ele a mataria com o punhal. De agora em diante ela também ia ser mulher dele, tanto quanto sua mãe. Ele a tinha inaugurado, então, por direito ela passava a ser dele e de mais ninguém. Se ela tivesse a audácia de se recusar, ele a mataria, cortando-lhe os bicos dos peitos primeiro. E ainda mais, nesse caso ia fazer a mesma coisa com Manoela, obrigando-a a ser sua mulher também.

   Quando o monstro saiu, Ritinha teve forças para se levantar e caminhar, em passos trôpegos, para a rua, pedindo socorro nas casas vizinhas. Todas as portas estavam fechadas e ninguém abriu nenhuma delas. Então a menina saiu ao Deus dará, caminhava sentindo dores horríveis, seu vestido manchado de sangue vivo, sangue vivo a lhe escorrer pelas pernas; e do rosto, e do pescoço, e dos lábios feridos. Caminhou lentamente até à rodovia asfaltada, que passava a dois quarteirões de distância de sua casa. Precisa fugir, fugir, ir para bem longe, tinha que escapar daquela besta fera que a agredira daquele jeito. Nunca seria mulher dele, nunca! Preferia morrer. Mas amava demais a vida para se deixar liquidar sem luta. Ao chegar à estrada ainda lhe veio à cabeça a idéia de se jogar na frente de um caminhão, acabar com tudo aquilo. Mas acabou decidindo que não, não poderia morrer sem antes ver o crime daquele homem castigado. Não sabia como, mas tinha certeza que isso aconteceria logo, tinha certeza e essa certeza a manteve viva, com vontade de lutar.

   Ritinha andou mais um pouco, agora pelo acostamento da rodovia. Caminhar ficava cada vez mais difícil, as dores eram cada vez mais cruéis, o sangue ainda pingava dela, a vista ia ficando turva, as pernas pareciam não ter mais peso. Mais alguns passos hesitantes e Ritinha, tentando apoiar-se em uma parede que não existia, desabou pesadamente no chão.

   Acordou horas depois, no posto de saúde da cidade. Ao seu lado uma menina bem nova a olhava com um sorriso lindo, mas tendo os olhos vermelhos de chorar. Identificou-se como Iracema.

– Mas me chamam de Gabi, é o meu nome de guerra. Sabe, eu sou quenga e estava num caminhão, voltando para o posto onde eu me viro, de carona com um cliente antigo. Foi quando eu vi você caindo, bem na nossa frente. A gente parou e recolheu você. Pelo seu estado, a gente viu que você tinha apanhado muito. O motorista ficou horrorizado, nunca tinha visto nada assim. Eu já entendo mais dessas coisas, já apanhei muito também e fui logo desconfiando que outra coisa é que tinha lhe acontecido. Levantei a sua roupa e tive certeza. Aí exigi que o homem entrasse na cidade e que a gente trouxesse você para um hospital. Acabamos neste posto de saúde. A doutora até que foi bem legal, largou tudo o que estava fazendo e só cuidou de você o resto da tarde. Houve uma hora que ela não agüentou e começou a chorar, olhando o seu estado, quando conseguiu terminar de tirar toda a sua roupa. Aí eu também não agüentei e me abracei nela, as duas chorando de ver o que tinham feito com você. Só uma mulher pode entender o que você deve ter sofrido nesta tarde. E acredite, menina, o pior ainda está por vir. Eu sei porque eu já passei por isso também, embora não tenham me judiado tanto como fizeram com você. O pior não é a dor nas pancadas, não é a dor lá embaixo, não é o horror dos ferimentos e das cicatrizes. O pior é a dor que a gente sente por dentro, a sensação de impotência, o desespero de se sentir suja por dentro. Ah, quando eu entendi o que tinha se passado com você, eu jurei para mim mesma que ia cuidar de você enquanto você precisasse.

   Ritinha olhava para a outra menina com os olhos cheios de lágrimas, já começara a sentir aquilo tudo que ela dizia. Mas o núcleo lutador dentro de si ainda mantinha acesa uma chama heróica. Fazendo um enorme esforço para entreabrir os lábios cortados, tentou sorrir para a jovem. O sorriso virou uma careta de dor, mas, ainda assim, ela se forçou a falar:

– Ritinha... Vo... você é...?

– Iracema. Eu já lhe falei, mas acho que você ainda estava muito grogue da anestesia que a doutora lhe deu. Mas todos me chamam de Gabi. Olhe, deixa eu lhe dizer, ou melhor, prevenir: eu sou quenga, entendeu? Puta. Não é bom para você ser vista com gente como eu. Por isso, assim que você ficar melhor, eu vou sumir daqui e da sua vida, fique tranqüila. Mas enquanto você não estiver bem, eu não pretendo arredar pé deste quarto aqui. A doutora não só deixou, mas até me pediu para passar esta noite aqui, cuidando de você. Mas depois, ela lhe dando alta, eu vou sumir, tá?

   Fazendo um enorme esforço, Ritinha balançou a cabeça para os lados, querendo dizer que não. Mais uma vez forçou-se a falar:

– Não... vá... por ... fav...  – e adormeceu de novo.
CONTINUA

domingo, 28 de abril de 2013


¡TE  PERDI!    
MILTON  MACIEL 

Se hizo invierno
De repente
En mi alma.
Y se paró el tiempo.
Y se afondó mi vida…

Machazas  heladas
Han caído sobre
Nuestro amor.
Y en el hielo del ayer…
¡Te perdí!

¡Y me perdí!
No supe vivir
Sin ti.
No lo pude…
¡Me perdí!

He andado en círculos.
Ni sé mas por donde.
En murmullos
Y suspiros.
Y gemidos…
¡Me perdí!

Quantos años?
¡No lo sé!
Se me paró el tiempo,
Se me acabó la vida…
¡Te perdí!

No sé por donde anduve.
Por acá. Y por allá.
Quien sabe?
Yo no sé:
¡Me perdí!

Y el tipo que ahora veo,
Al espejo…
¿Quien será?
No lo sé.
El que yo era…
¡Lo perdí!

La pureza,
La alegría,
La esperanza
Que yo tenia
¿Donde estarán?
Yo no sé.
La vida que yo vivía…
¡La perdí!

Entonces vago solito,
La luz es oscuridad.
Y de todo que yo supe,
No resta nada, al final,
Si no la dura verdad:
¡T  E    P  E  R  D  I !...




QUE SABIO QUE ES EN EL OTOÑO NO QUERER  
MILTON  MACIEL   (poesias en español)  

¡Que sabio que es, en el otoño, no querer
Buscar aún... flores de primavera!
Con el tiempo, logra usted se conocer
Y deja entonces de seguir quimeras.

Eso es testigo que usted tiene madurez,
Porque a esto ya lo entendió deveras:
Cuando el tiempo se acorta a cada més,
Si uno falla… ¡Ya no habrá mas otra vez! 

Photo: Lush Green Park in Chamrande, France.


GAÚCHO  UAI-FAI   
MILTON  MACIEL  

Bueno, é que hoje é domingo
E eu me toco pro bolicho.
Não que eu goste de bochicho,
Por isso encilho meu pingo,
Agarro meu computador
E vô pra venda do Antenor.

Que lá no meio dos pasto
Duma estradita de terra,
Ainda bem longe da serra,
Além de um belo respasto
O Antenor tem um uai-fai
De um sinal que nunca cai.

Meu netebuque tem carga
De bateria onze hora.
Até a hora de ir embora,
Ninguém a descarga amarga.
Que a cosa por lá é tétrica:
Não hay energia elétrica!

Eu monto co’o netebuque
Bem seguro nos pelego.
Aí eu ligo assim que chego
E vô vê meu Feicebuque.
Mas não fico de bobage:
Eu vô lê minhas mensage.

Aí vai chegando a peonada,
Tudo guasca da campanha,
Se começa a tomá canha,
Mas não bebo quase nada.
(Eu não posso ficá grogue:
Tenho que postá no blogue!)

Já em casa é diferente
A rotina é que me atraca:
Já tô ordenhando as vaca
Quando o sol nem é nascente!
Aí vô pro campo, o gado,
Até meio-dia chegado.

O netebuque eu só ligo
Quando chego no galpão,
Pra tomá meu chimarrão.
Me comunicá, eu consigo,
Enquanto fico a esperá
Que a costela venha a assá.

Tenho uai-fai no meu galpão
Nos meus potrero também.
Só acho que não fica bem
Ter em casa o sinalzão.
Pois pra mim é a hora boa,
Só com as criança e a patroa.

Tio Juvêncio só me xinga,
E, brabo barbaridade,
É contra a modernidade:
Pior que cobra boicininga!”
Diz que "macho não se mete
Com essa droga de Internete."
  
Tio, tu qué é que eu me enrasque
E que fique atrapalhado?
Se precisá dá um recado,
Tu inda qué que eu mande um chasque?
E se o troço é longe ou feio,
Vá à cidade, ao correio?

E por falá em cidade,
Quero que saiba vosmicê:
Pois tem uai-fai no CTG!
Cosa de modernidade,
Ali que é o templo guascão
Que honra toda a Tradição!

Mas tu é uma cavalgadura,
Tio Juvêncio; o que te impede
De comprá teu próprio Aipede
É a tua cabeça dura!
Afinal tu tens a plata.
Vais deixá pra alguma ingrata?

Internete não é luxo,
Agora é necessidade.
E podes crer que é verdade:
Eu sigo o mesmo gaúcho.
E com Internete ou não
Sigo honrando a Tradição!

E para os meus companhero
Do bolicho do Antenor:
Pode usá meu computador!
E o favor eu faço intero:
Minha senha de acesso é isso:
“picanhacostelaexixo”.

E desta vez não esqueço,
De lhes dá o endereço
Do meu blogue na Internete:
É um Agá Te Te Pe,
Mais dois ponto e duas barra.
Aí tu segue e tu agarra
A escrevê o meu nome,
miltonmaciel, tu bem sabe.
Mas tudo junto, não erre.
Aí é ponto blogspot
E no fim, pra completá,
Ponto Com ponto Be Erre.



sábado, 27 de abril de 2013


LIVROS  DE MILTON MACIEL 2013
CINCO NOVOS LANÇAMENTOS – TRÊS RE-EDIÇÕES
(Ver figura no final)

Lançamentos:
O CERCO – Novela histórica – 400 pgs – Invasão dos hunos à Gália em 451 A. D. Três sacerdotisas celtas e um eunuco levam à vitória dos aliados sobre os invasores. Um vibrante relato desenvolvido como roteiro cinematográfico.
HELLO, TCHÊ – CONTOS do Norte e do Sul – 240 pgs – 42 contos que vão do humor ao erótico, do feminismo ao regionalismo gaúcho.
HELLÔ, TCHÊ – POEMAS do Norte e do Sul – 160 pgs – 90 poemas em português e 10 poemas em espanhol – Os temas são idênticos aos dos CONTOS.
A PRINCESINHA QUER DANÇAR – Poema Infantil – 52 pgs – Um longo poema sobre a arte nobre da dança e uma princesa rebelde.
DO SUL AL SUR – DEL SUR AO SUL – 140 pgs – Bilíngüe – Contos e poemas em português e espanhol, ambientados na fronteira do Brasil com o Uruguai. É um livro extremamente gaúcho. Es un libro completamente gáucho.
Reedições:
A SOPA QUÍMICA, Nossa Alimentação Suicida – Retorna nosso best seller sobre os desequilíbrios da alimentação contemporânea e sobre a Dieta Paleolítica, que estava esgotado pela segunda vez.
LOLITA DE ARACAJU, a Mais Jovem Dona de Bordel do Mundo – 320 pgs – Nosso mais conhecido romance, dos que têm como fundo a prostituição infantil. Humor e erotismo usados para introduzir um tema para lá de sério.
A ESPERA E A NOIVINHA – Romance em Contos – 240 pgs – 4 grandes capítulos narrando a saga de duas meninas de 11 e 14 anos, que lutam contra a vida que quer arrastá-las e  mantê-las na prostituição, nas estradas e postos de gasolina do Nordeste. Tem também humor e erotismo como iscas para atrair o leitor. Baseado em casos reais. O autor o considera sua obra-prima. Tem capítulos e trechos em nordestinês puro.
A BELA MORDE A FERA – Autodefesa Feminina – 320 pgs – de Ellen Snortland (Beauty Bites Beast) e Milton Maciel (O Machismo Oculto) – Ensaio em português, tradução do original em inglês, que discute como a mulher pode se defender de agressões masculinas: psicológicas, físicas, sexuais, profissionais e midiáticas. Um best seller sobre o assunto nos EUA.
Livros de Agricultura Orgânica:
Disponíveis:
AGRICULTURA URBANA – Manual Prático – 60 pgs
NUTRIÇÃO DE RUMINANTES NA SECA – Manual Prático – 40 pgs
SUBSTRATOS E VIVEIROS – Livro – 80 pgs
Seguem esgotados (serão publicados como e-books):
COMO TORNAR SEU SÍTIO LUCRATIVO – 80 pgs – Nosso best seller absoluto de todos tempos, esgotado mais uma vez.
A HORTA ORGÂNICA PROFISSIONAL – 152 pgs
COMO PRODUZIR AÇÚCARES ORGÂNICOS – 140 pgs
Em Inglês:
USA IS NOT BRAZIL – Ensaio sobre a inviabilidade econômica do etanol de milho nos Estados Unidos, comparado ao etanol de cana no Brasil. Cana, açúcar e álcool orgânicos no Brasil. Recuperação de solos degradados. Limites concretos dos biocombustíveis. (Publicado originalmente em Biofuels Now, Energy Bulletin, Energy Resources e Anals of ASPO-USA - Universidade de Boston, 2006)

Contatos com as editoras e o autor: delphos09@terra.com.br


sexta-feira, 26 de abril de 2013

O POETA E O GUASCA - 5  
MILTON MACIEL

Ultima estrofe da parte 4:

Não chorar, nem escondido,
E engolir toda sua mágoa;
Não ter olhos rasos d’água
Se o coração foi partido.
O que é que temos aqui?
Um Alfred de Vigny?”

PARTE   V

Ué, meu patrão, quem é esse,
O tal de Alfredo Devinhí?
Que ele nunca veio aqui,
Não é alguém que eu conhecesse.
Pelo nome é estrangeiro,
Nem parece brasileiro.”

“E tem razão, meu amigo
É da França e um grande poeta.
Tenho sua obra completa
Que trago sempre comigo.
Veja só este livro aqui:
É de Alfred de Vigny.

Veja aqui estes dois versos:
Parece você quem os fez.
Primeiro eu leio em francês
Depois traduzo de vez :

Quand on voit ce qu'on fut sur terre et ce qu'on laisse,
Seul le silence est grand; tout le reste est faiblesse.

Quando vemos o que fomos na terra e o que se deixa,
Só o silêncio é grande; todo o restante é fraqueza.”

“Cuepucha, patrão, que lindo!
Bonito barbaridade...
E o que ele diz é verdade.
Não se deve andar caindo
Pelos cantos, como um fraco,
Que é mais embaixo o buraco.

Pois é: ‘o silêncio é grande
E todo o resto é fraqueza!’
Pra mim isso é fortaleza
De um macho que se garante.
Esse tal francês De Vigny
Seria mui bem-vindo aqui.”

“Pena que o homem nasceu
Há mais de duzentos anos.
Viveu sérios desenganos,
De um brabo câncer morreu.
Porém nunca se queixou,
Tudo firme ele aguentou.

Hoje, ouvindo o seu cantar
Foi dele que me lembrei.
E foi também o que achei
Por seu modo de falar:
Nós temos no pampa, aqui,
Outro Alfred de Vigny.”

“Quem me dera, meu bom patrão
Ser poeta como esse aí!
Desse Alfred de Vigny,
Só tenho a disposição.
E o senhor, na sua poesia
Tem a mesma valentia?”

“Que nada, meu companheiro,
Eu sou é um grande chorão!
E a dor no meu coração
Eu berro pro mundo inteiro.
Eu confesso pra você:
Sou um Alfred de Musset!”
CONTINUA                          (Figura: Alfred de Vigny) 
RITINHA - 4   
MILTON MACIEL

FINAL DA PARTE 3
 A menina estava em estado de choque. Tudo aquilo havia acontecido de uma maneira tão rápida que a deixara tonta. Então aquele rapaz que a estava defendendo era filho de Dito Timbó?! Ela ficara sabendo que este homem, famoso e respeitado matador, havia justiçado João Boto e que o desgraçado estava na cadeia, devidamente capado, servindo de repasto aos outros presos.  

PARTE 4 

  Dito Timbó era o homem que Marta, sua mãe, afirmara sempre ser o seu pai. Desde pequeninha Rita sonhava com ter um pai, mas um pai que estivesse ali, presente, cuidando dela, da mãe e dos irmãos, não permitindo que tivessem passado tanta necessidade e tanta fome, não permitindo que a desgraça maior de sua curta vida de criança tivesse se abatido sobre ela, na figura amaldiçoada de João Boto.

   Inúmeras vezes Ritinha pedira à mãe que lhe contasse sobre o pai. Marta pintava-o então como um herói, carregando nas tintas, para criar na filha uma espécie de orgulho por aquele pai distante, uma forma, talvez, de compensar pelo imaginário o peso de sua ausência.

  Com Ritinha, isso não tinha funcionado. A mágoa pelo abandono crescera maior que o orgulho pelo pretenso heroísmo do pai. Marta tentava impedir esses sentimentos negativos na menina, assumindo toda a culpa por ter ficado grávida, por ter querido ter a filha e, principalmente, por nunca ter revelado a existência de Ritinha ao pai.

   Mas por quê?!! – Ritinha voltava inúmeras vezes ao assunto. Marta tentava fazê-la entender que os homens são diferentes, não são sentimentais como as mulheres. Procurava justificar Timbó, dizendo que, por ser um pistoleiro, nunca quisera ter família, que não ligava para as filhas mulheres, só gostava dos meninos machos, e ainda mais dos que haviam seguido sua mesma profissão de matador. Coisa de homem, Ritinha tinha que entender!

   Mas Ritinha não entendia. Não entendia e não aceitava. Para ela, Dito Timbó não era um nome que evocasse nada de bom. Era um bandido e, acima de tudo, era um homem frio e indiferente, que jamais ficara sabendo de sua existência porque, se soubesse, não daria a mínima importância, não ia nem mesmo querer olhar para ela, ainda que fosse uma única vez na vida. Para Ritinha, a idéia de pai era associada com maldade e rejeição, com mágoa e privações. Culpava-o pela vida de penúria que levavam com a mãe, culpava-o por Marta ter sido obrigada a aceitar um homem tão perverso e violento como João Boto, como única forma de garantir um pouco de comida e abrigo para si e para os filhos.

   Agora, quando ficara sabendo da ação vingadora de Dito Timbó, a única alegria que sentiu foi pelo tipo de castigo degradante dado ao padrasto, justiçado na mesma moeda que usara para desgraçar a enteada. Mas, mesmo assim, não sentia gratidão ao pai por ter agido em desagravo à filha.

   Ela não tinha experiência, é certo, mas algo lhe dizia que aquilo que aquele pai ausente fizera era mais uma coisa dele, mais uma coisa para mostrar sua força, do que propriamente para favorecer ou vingar a filha. Afinal, fora preciso acontecer toda essa desgraceira para aquele homem aparecer. Por mais que soubesse que ele nunca viera antes por que sua mãe nunca lhe falara sobre essa filha, enjeitada como todas as outras, não podia pensar nele com nenhum sentimento bom.

   Ao contrário, agora que sabia que ele estava na cidade, ali perto, passara a viver momentos de puro pavor. Não queria ver aquele homem nem pintado de ouro. Não o desculpava pelo abandono, causado por sua insensibilidade extrema, capaz de enjeitar todas as filhas e só reconhecer os filhos. Não o perdoaria jamais por essa monstruosidade, para ela ele era isso mesmo: um monstro, um criminoso.

   Mas o seu pavor era ainda maior, ia às raias do pânico, quando pensava que ele poderia aparecer de repente. E então iria flagrá-la na situação de uma puta qualquer. Puta! Dez anos de rejeição e agora, quando o pai a visse, iria vê-la como uma reles quenga!

  Quenga! Quenga! Quenga não entra! Quenga não presta! Sua ordinária! Abre essas pernas, desgraçada! Se não botar dentro, não pago é nada! Vai pra puta que te pariu, sua merdinha! Tá pensando o que? Que eu me contento com punheta, é? Cai fora, desce do caminhão, desgraçada!

   Quenga! Quenga! Puta! E essa era ela. Ela era uma puta agora. Um mês atrás era só uma menina como todas as outras da sua idade. Era Ritinha, a menina mais querida da escola, a mais boazinha, a mais bonitinha. Era também – e isso a enchia de satisfação – a mais inteligente. As professoras gostavam dela por demais. Boa de gênio, alegre, comunicativa, uma criança encantadora. Primeiro lugar da classe, em todos os anos, adorava estudar, adorava ler, adorava ensinar.

   Seu bom humor inteligente, sua alegria simples, sua confiança evidente na vida e no futuro, não deixavam transparecer a grande dificuldade que era sua vida em casa. Ali fazia de um tudo, ajudando a mãe ao assumir quase todo o serviço de casa. A mãe precisava trabalhar na única fábrica do lugar, um antigo curtume de cheiro nauseabundo. Ritinha fazia o seu serviço e fazia o de Manoela, a irmã que tinha um ano a mais do que ela. Ritinha, quando chegou a hora de sua desgraça, contava ansiosa os dias que faltavam para o seu aniversário de onze anos, que aconteceria dali a dois meses. A mãe tinha jurado que, desta vez, ela teria enfim um bolo de aniversário e uma quase festinha, só com a família, é claro.

   João Boto, o homem que sua mãe tinha conseguido há pouco mais de um ano, havia concordado em dar uns escassos trocados para ajudar com a festinha. Ritinha morria de medo dele. Era agressivo, batia nos filhos de Marta quase todos os dias, era evidente que não gostava dos dois meninos, gêmeos de oito anos de idade. Com Manoela e com ela, João Boto era menos severo, às vezes falava com elas até que com modos. Já a vida de Marta com ele era um verdadeiro inferno. Era mais do que comum que ele chegasse bêbado em casa e, nessas ocasiões, ou a mulher ou os dois meninos iam apanhar na certa. Como mãe e filhos fugiam de casa assim que o percebiam embriagado, sobrava para as meninas maiores.

   Nessas ocasiões o homem ficava diferente, falava com elas com voz pastosa, se insinuava, tentava passar a mão em Manoela, que já tinha corpo de mocinha. Ritinha, ainda que morrendo de medo, corria em defesa da irmã, que ficava travada, morta de pavor, com medo de apanhar, deixando-se tocar. O homem, bêbado, erguia-lhe o vestidinho, apalpava sua calcinha entre as coxas, falava coisas indecentes.

   Ritinha começava a gritar, corria para a frente da casa, chamava por socorro, alertava os vizinhos. Mas estes, é claro, se trancavam em casa e se faziam de mortos, morriam de medo de João Boto, que tinha crimes de morte nas costas. O homem então perdia a paciência, corria para cima de Ritinha, para lhe dar uns bons tapas. Mas a menina corria como um azougue, nunca ela pôde alcançá-la. Essa era a dica para Manoela encontrar coragem, destravar, correr e buscar abrigo em algum quintal bem distante. Dessa maneira, vinham conseguindo evitar que o homem fizesse mais do que aquilo. Ajudava o fato que a bebedeira sempre era muito grande – ele acabava desistindo e tombando em alguma cama ou sofá, roncando emborcado, de roupa e tudo, até o meio-dia seguinte.

   Mas, com o passar dos meses, o corpo de Ritinha foi se alterando e despertou a atenção e o desejo lúbrico do padrasto. Então ele abusava de Manoela até que Ritinha começasse a gritar com ele. Aí voltava-se para ela, procurava agarrá-la à força e tentava arrancar a roupa dela. Manoela, sempre covarde, não fazia nada em defesa da irmã, ficava estática e chorava baixinho. Não abria a boca para nada, tal era o seu medo de ser agredida. Já Ritinha mordia e esperneava, dava chutes, berrava. Mas, com o tempo, isso parecia excitar o homem ainda mais, estimulava os seus impulsos sádicos mais primitivos.

   Até que um dia ele não se conteve. Agarrou e empurrou... 
CONTINUA

quinta-feira, 25 de abril de 2013


O POETA E O GUASCA - 4a. parte  
MILTON MACIEL
(vamos compondo, 
vamos postando)

ÚLTIMA ESTROFE DA PARTE 3

“Bueno, poeta não tem não,
Que é verso de índio xucro.
Mas tô saindo no lucro
Se lhe agrada à compreensão,
Já que o autor desse embrulhado
É aqui este seu criado.”

     IV

"Não seja modesto, amigo
Que eu conheço bem do assunto
E com você aqui junto
Fica mais sério o que digo.
Sou Álvaro Souza Dutra,
Doutor em Literatura."

O gaiteiro estende a mão
A do outro tomando inteira:
“Sou um guasca da fronteira
Pra lhe servir, meu patrão.
Um campeiro de boa paz,
Desta fazenda capataz.”

“Mas me diga, por favor,
O que é que você cantava
Enquanto sua dor tocava:
Eram seus males de amor?
Se achar que sou indiscreto,
Nada diga de concreto.”

“Bueno, eu lhe peço perdão,
De normal sou reservado.
Eu sou um tipo calado,
Não mostro a minha emoção,
E quando eu cantei aquilo,
Pensei que estava solito.”

Se sofro, eu sofro comigo,
A minha dor não divido.
Tento não soltar gemido
E isso eu sempre consigo.
Pode doer, que sigo em frente,
Calado, firme, silente.

E o sofrimento que trago
Não logra me derrubar
E tendo que continuar,
A própria dor eu esmago.
É assim, patrão, que eu acho
Que deve sofrer um macho.”

“Meu caro amigo gaúcho
Eu estou impressionado.
Como um poeta apaixonado
Consegue se dar ao luxo:
Não expor seu sofrimento
No mais agudo lamento?

Não chorar, nem escondido,
E engolir toda sua mágoa;
Não ter olhos rasos d’água
Se o coração foi partido.
O que é que temos aqui?
Um Alfred de Vigny?”

CONTINUA