segunda-feira, 19 de outubro de 2020

 KHIRBET KUMRAN – Nathan, o Zelote 

MILTON   MACIEL

   Do alto, à entrada da caverna, a velha contemplava a paisagem de Khirbet Qumran. A noite caia rápida e a visão da praia e da grande extensão de água à sua frente ia se fazendo mais e mais enevoada, aumentando a falta de nitidez com que as cataratas crescentes em seus olhos a castigavam. Mas nem toda a névoa deste mundo seria capaz de esconder dela o vulto odioso, inconfundível, que se aproximava do penhasco. Puxando um jumento, Shlomo, o publicano, caminhava lentamente pela praia, com seu passo oscilante de bêbado. Uma vertigem tomou conta da velha - quarenta anos de humilhação e maus tratos nas mãos daquele maldito marido assomaram à sua lembrança, enchendo de tristeza e revolta sua mente, até então envolta pela enorme paz do ambiente.

Ali, judiciosamente, a velha se dedicava a colocar os manuscritos dentro dos grandes vasos de argila. Os romanos avançavam cada vez mais e os líderes da comunidade essênia, receosos da destruição de seu grande legado, haviam decidido escondê-lo nas grandes cavernas de Qumran.

   Lágrimas assomavam aos olhos baços da pobre mulher quando algo lá embaixo despertou sua atenção. Da escuridão já quase plena, assomou um vulto por trás de Shlomo e o atacou com um enorme remo de barco. Um único golpe certeiro no alto do crânio, um ruído de pote quebrando, e o velho tombou pesadamente sobre os joelhos. O agressor agiu célere: arrastou o corpo para junto de um grupo de barcos distribuídos entre a areia e a água e o escondeu rapidamente, cobrindo-o com um grande monte de redes de pesca.

A velha passou da surpresa e do susto para uma sensação de alívio e euforia. Ninguém precisaria lhe contar, havia presenciado tudo: o pesadelo chegara ao fim! Décadas de martírio estavam agora encerradas pelas mãos de um Anjo Vingador. Sempre tivera essa convicção: um dia o Senhor haveria de enviar um anjo para punir todas as incontáveis maldades de Shlomo. Por que tardara tanto?

   A velha então deixou-se cair de joelhos, suas lágrimas rolando abundantes agora, enquanto murmurava um rosário de preces e frases ininteligíveis, deixando sair do fundo do peito toda a emoção de que estava tomada. Toda ela parecia estremecer em convulsões, mas seus olhos, quando se abriam, revelavam toda a enorme, toda a indizível alegria de que se via inundada. Nessa situação ficou por longos minutos, até que sua atenção foi de novo chamada por movimentos de pessoas lá embaixo. 

Viu que um pequeno grupo de pescadores se encaminhava para os barcos. E notou que um deles ia direto para o tufo de redes empilhadas, formando um monte estranho à prática comum daqueles homens, o que lhes havia chamado a atenção ao chegarem.  A mulher se ergueu, alarmada. A violenta emoção de euforia deu lugar a um momento de preocupação. Logo os pescadores descobririam o corpo de Shlomo. E, pouco depois, perceberiam que um dos seus barcos havia desaparecido. Nele, o Anjo Vingador se evadira rapidamente da cena do crime.

A velha sentia–se tão imensamente grata a seu redentor que a última coisa que queria é que os homens saíssem à sua caça em seus pequenos veleiros. Acalmou-se um pouco ao lembrar que agora já era noite fechada e que, talvez, os homens custassem a perceber o furto do barco. Mas o que havia por baixo do estranho monte de redes estava para ser descoberto no instante seguinte: o homem já havia começado a remover as redes de cima e chamava, excitado e aos gritos, os seus companheiros.

Aquele a quem a velha chamara seu Anjo Vingador era Nathan da Galiléia. Um Zelote dos mais ativos e dos mais procurados por romanos e judeus, com cabeça a prêmio. Solitário por vocação, Nathan quase sempre agia sozinho. Por isso suas emboscadas e ataques não eram espetaculares. Ao contrário, resumiam-se a cuidadosos e bem planejados raides contra um único indivíduo. Passara, desta vez, quase uma semana à caça do velho publicano Shlomo, um cruel explorador do seu próprio povo, de quem arrancava escorchantes tributos que, depois, sonegava em parte aos romanos.

Shlomo fora a causa da desgraça de muitos homens e de suas famílias, nesse rol incluído o pai de Nathan. O velho Shaul, expropriado da maior parte dos seus bens, não havia resistido à tristeza e à humilhação. Embora a família contasse que ele caíra do penhasco, seus filhos perceberam que ele havia saltado para o fim, em desespero. Agora Nathan fizera-lhe justiça.

Sem saber do drama da velha mulher do abutre publicano, via a si mesmo como um Anjo Vingador. Mas não apenas de seu pai, senão que de todo um povo massacrado e vilipendiado pelos invasores romanos e seu asseclas judeus, estes ainda mais odiosos por se locupletarem com as escassas sobras arrancadas a pulso de seus compatriotas. Justiçado Shlomo, escondera-lhe o corpo sob redes de pesca e fugira tomando um dos barcos a vela que estavam ali fundeados.

Agora seu olhar perscrutava o grande lago de Asfaltitus, ao qual os romanos preferiam chamar de Mar Morto.  Navegava na noite fechada, sem lua, na escuridão quase completa. Mas seus olhos habituados às longas espreitas nas noites de emboscada, seu passado de menino marinheiro e pescador no Lago de Genesaré, à beira do qual nascera em Cafarnaum, lhe permitiam navegar com segurança mesmo nessas condições. Os mistérios do lago, suas correntes, sua água espessa de sal, não lhe eram estranhos. Por ali já se deslocara em outras missões. Agora, deixando Khirbet Qumran, velejaria toda a noite e pelos dias seguintes, até alcançar o extremo sul do Asfaltitus, saindo dele na altura de Masada. Dali se esgueiraria mais uma vez pelas montanhas, chegando a Hebron e de lá, devidamente disfarçado, haveria de achar caminho para Jerusalém, onde esperava encetar um novo ataque, agora dirigido a um funcionário romano, cúmplice de muitos dos achaques de Shlomo.

   Na noite densa, de poucas estrelas escurecidas pela névoa, Nathan olhava seu Lago Asfaltitus com amor e gratidão. Outros talvez nada pudessem ver, mas para o galileu, ele era totalmente perceptível: via suas águas serenas e escuras, os bancos de areia e os rochedos às margens, as raras fogueiras acesas, uma ou outra escassa casa ou grupo de casas iluminadas pelas lamparinas, nos quase inexistentes vilarejos situados sobre as escarpas. Mar Morto? Não. Mar cheio de esperança de vida enquanto por ali passassem, tudo arriscando, guerrilheiros patrióticos e corajosos como Nathan, o galileu - Nathan Zelote.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

ELVIRA

 

ELVIRA

MILTON MACIEL

Ela era mais alta dos que as outras. Tinha uma voz que, embora suave, transmitia um certa autoridade. Os cabelos erguidos em coque, o sorriso quase uma constante. Havia nela um quê de diáfano e, para mim, de indefinível. Longe de mim querer entendê-la, bastava-me apenas aceitá-la. E amá-la.

Teve um profundo impacto em minha vida.

Acho que meu coração pulsou de amor desde o primeiro momento em que ela se dirigiu a mim, olhando-me com carinho e falando-me com ternura. Sempre foi assim. Nossa relação, que se espalhou ao longo de três anos, sempre teve essa tônica dominante de carinho, ternura. E de respeito recíproco, sem dúvida. 

Elvira. Seu nome era Elvira. Achei o nome lindíssimo. Claro, era o nome Dela! E eu vivia a falar de Elvira pra cá, Elvira pra lá... Maria ficou com ciúmes. Até então ela era a detentora única do meu amor. Agora aparecia aquela intrusa!...

Um dia foram apresentadas. E Elvira era tão extraordinária, que Maria também gostou muito dela. Maria parou de reclamar: o que pensava e sentia, guardou para si, daquele dia em diante. Houve até uma vez em que comprou flores para que eu levasse para Elvira. Fiquei admirado. E feliz, muito feliz. Porque Elvira adorou minha flores, mostrou-as para todo mundo, deu-me um beijo apertado na frente de todos.

Foram três anos. Porque ela fez questão de me acompanhar. Eu não podia interferir, foi escolha dela. Ao cabo do primeiro ano a separação apresentou-se inevitável. Mas antes que eu sofresse por isso, Elvira mudou tudo e seguiu ao meu lado. E repetiu isso outra vez, quando, tempo depois, o mundo queria nos separar. Ela não deixou. E eu a amei ainda mais.

E Elvira abriu todo um mundo para mim, sabia muito mais do que eu. Mas sabia reconhecer que eu queria saber. Queria muito saber! E me ensinava com paciência infinita. E me estimulava a ler cada vez mais. E eu a amava ainda mais.


Por isso, quando chegou o momento de deixá-la e seguir em frente para outro território, eu sofri. Mas ela me amava o suficiente para conduzir meu afastamento, para fazer com que eu aceitasse o inevitável, como uma condição para seguir crescendo.

E o crescendo não era só simbólico, não era só de cabeça, não era só crescer no mundo. Era crescer também no físico. Explico. 

Quando deixei Elvira eu tinha 10 anos de idade. Quando a conheci, ia fazer 8 no meio do ano. Alta, gentil, com seus cabelos completamente brancos em coque elegante, vestida sempre de preto, Elvira foi a minha professora exclusiva de segunda, terceira e quarta séries do primário. Quando comecei a amá-la, ela tinha 71 anos de idade. 

Era boa demais para aceitar a aposentadoria. Seguiu sempre trabalhando com as crianças. Tive a felicidade de ela apaixonar-se por nossa segunda série do primário. E, ao invés de entregar-nos à professora da terceira série, conseguiu continuar com essa turma até a quinta série, quando acabava o primário de então.

Mas eu me desgarrei da turma antes. A maravilhosa Elvira e a dedicada Maria, que agora era sua amiga, decidiram que eu podia “pular” a quinta série primária e entrar direto na primeira do ginásio. Eu não tinha idade legal para isso, mas a Maria deu um jeito com seu amigo de infância, o Chiquinho, que agora era o Prof. Francisco, diretor do ginásio. Deram um jeitinho brasileiro e eu adiantei um ano minha formação. Valeu Maria. Valeu, Elvira.

Elvira continuou presente em minha vida por muitos anos, acompanhou minha trajetória sempre. Estava lá, mais bela do que nunca em seus 77 anos, quando eu fiz o discurso de formatura do ginásio, agora um molecão espigado de quase um metro e oitenta e 14 anos.

Como pode concluir quem lê estas linhas, Elvira ficou para sempre em meu coração e em minha memória. Ah, e antes que eu esqueça: compartilhando estes espaços com Elvira, a Maria... que era a minha mãe!