domingo, 31 de dezembro de 2017

FELIZ 2017  Ou: Feliz Ano Velho...
MILTON MACIEL

Não se iluda: em 1º de Janeiro de 2018 o ano é Novo. Mas você é Velho(a)... Então, para que 2018 lhe seja melhor e mais feliz, é preciso que você... Vejamos:

Desejo sinceramente que você tenha sido feliz em 2017. Claro, não total, absoluta e indecentemente feliz, porque isso é fundamentalmente impossível. Mas desejo que você tenha sido feliz o suficiente para não ter que estar colocando expectativas em saídas maníacas para 2018.

Claro que você vai receber muitos votos de “Feliz e Próspero Ano Novo.” É de praxe, você vai fazer o mesmo também. Você vê que o pessoal carrega pra valer no “próspero”, fica todo mundo ansiando por mais ‘argent’. Afinal, quem já não está com a corda no pescoço, conta com esse novo “próspero” para poder se endividar mais em 2018.

Claro, se você tem mais de 18 anos e já consegue fazer uma retrospectiva dos outros “Feliz e Próspero” que viveu, você já sabe o que vai acontecer em 2018. Ou seja, a continuação de 2017, exatamente do jeitinho que você deixou. Normalmente o que a gente tem maior probabilidade de ganhar com a celebração do Ano Novo são alguns bons abraços e alguns maus quilos. Ora, isso tudo é fácil de perder depois, inclusive alguns dos abraços, aqueles que a gente não estava fazendo muita questão de receber. É, também tem disso, é humano...

Mas, voltando à linha de raciocínio desta mensagem, o que eu lhe desejo, meu amigo(a) ou não, é que você tenha sido feliz em 2017. Ou seja, que tirando uma média, passando a régua embaixo no último dia do ano, você tenha tido mais o que comemorar, mais o que agradecer, do que a lamentar; e se arrepender. Desejo que você tenha crescido em maturidade psicológica e espiritual (o sal e o néctar da vida), a ponto de saber separar o joio do trigo (ou seja, não ficar culpando só os outros!) e que, ao fazer seu balanço final e chegar ao seu inventário de lucros e perdas, você tenha de fato um honesto saldo positivo.

Porque isso é simplesmente um sinal que você está ACERTANDO MUITO MAIS DO QUE ERRANDO. Ou seja, você só tem que dar continuidade ao que faz e à sua maneira de fazê-lo. Isso vai tornar você melhor (aos poucos, a gente sabe) e vai atrair, como consequência, o melhor para você. E aí você pode ter certeza que não irá precisar de saídas maníacas, de pequenos ou grandes rituais, de forças fantásticas que ponham ou disponham de sua vida. Não, você está fazendo a coisa certa e sabe que pode fazer melhor ainda. É seguir fazendo!

Então vá lá, seja você mesmo, faça de 2018 a continuação natural de 2017 (até porque não há outra realidade!) e continue acertando mais do que errando, ficando melhor para você mesmo, para os seus e para a humanidade. Aí você não vai precisar de milagres. Porque VOCÊ já é o milagre!

Desejo que você tenha tido um feliz 2017. E confio em sua capacidade de continuar construindo o melhor, ao longo dos doze meses seguintes do nosso calendário gregoriano.

Vá lá! Viva e proporcione momentos felizes. Comemore. Bebemore, se você é do tipo (mas, nesse caso, é melhor não pular sete ondas, pois na última pode faltar salva-vidas).

E abrace. E deixe-se abraçar. E diga aquelas mesmas coisas de sempre. Até porque, para algumas das pessoas, você está desejando isso realmente e com sinceridade.

Pena que só o seu desejo seja pouco para dar a essas poucas “algumas das pessoas” o que elas precisam construir por esforço próprio – com o dispêndio inescapável do líquido mais sagrado que temos, o suor da testa, o suor do trabalho. Do trabalho externo do mundo; e do trabalho interno da autotransformação.  (MM)

sábado, 30 de dezembro de 2017

O CAMINHO QUE REGRESSA DA ILUSÃO
MILTON MACIEL

Despertar estremunhado da Paixão
Tal qual alma inalcançável por si própria:
Eis que a mente obnubilada faz-se sóbria,
E o golpe da verdade prostra ao chão.
Quão duro é o despertar dos insensatos
Quando colhem o retorno dos seus atos!

O caminho que regressa da Ilusão
Tem mais sombras e tropeços que o deserto
Quem esteve do sonho assim tão perto,
Vê-se esvaído em desespero malsão.
Ah, que bom se os que amam só quimeras
Enxergassem a verdade em suas esperas...

Que o despertar de quem sonha é tão mais rude,
Quanto mais tentar furtar-se à solitude.


BENTINHO – Conto de um Natal ignorado
MILTON MACIEL

Lá fora, na noite quente, luzes e buzinas festejavam. Era Natal, mas Bentinho não tinha muito ideia do que era isso. Na certa alguma coisa boa que acontece para os outros, para os que passam dentro dos automóveis.

A luz ficou vermelha outra vez. O menino deu um pulo e começou a andar entre as fileiras de carros estacionados. Era o tempo de contar 30 e eles saiam outra vez apressados. Depois de um tempo muito maior que contar 30, a luz vermelha acendia outra vez. Contar 30 de novo. Nesses escassos contar 30, ele tinha que correr entre os carros e ver se algum estava com a janela aberta; ou se, coisa ainda mais difícil, aceitava abrir o vidro para ele. Em qualquer dos casos, tinha que ser rápido e desfiar suas pedidas tristes:

Moço, um trocadinho, tô com muita fome.
Por favor, é pra alimentar meus irmãozinhos.
Minha mãe é doente, moça. De verdade!
Senhor, por caridade, só uma moedinha.

O pior é que Bentinho nunca mentia. Tudo aquilo que ele falava era sempre verdade. Fome era o que ele mais tinha. Não podia tirar nada para si, tinha que levar todo o dinheiro para casa, para comprar comida para os irmãos ainda menores do que ele, que eram cinco. Mais velha que ele só Cidinha, 12 anos, a única que ia à escola. E sua mãe era mesmo doente. Doente de cachaça, era viciada! Não durava em nenhum emprego, vivia tomando porres, faltava. Quando estava sóbria, era uma pessoa boa. Mas a maldita da bebida acabava com ela. Acabava com todos eles.

Hoje Bentinho sabia que era um dia daqueles. Tinha que chegar com dinheiro, senão apanhava. E tinha, além disso, que chegar com a garrafa de cachaça, senão apanhava também. A mãe se descontrolava, parecia outra pessoa totalmente diferente, xingava, batia. Ele contou de novo as moedas no bolso do short. A cachaça, o mais importante, já estava garantida. Era só passar na birosca do Carvão, que ele vendida cachaça pra menor de idade sem o menor problema. Tinha também algo pra comprar comida. Mas precisava se garantir com os trocados da condução: três ônibus pra voltar pra casa, três pra voltar pro ponto amanhã.

Bentinho continuou mais duas horas no desfile entre os carros, o dia até que não estava ruim hoje. Uma senhora abaixou o vidro e lhe deu uma nota de 5 reais:

– Tome, meu filho, vá se alimentar direitinho.

Só aí Bentinho lembrou que havia tanta música e tanta propaganda pela cidade por causa de alguma coisa. Tinha mais gente e mais carros nas ruas também. Ele não tinha bem certeza do que era isso, mas mesmo assim assobiou feliz: uma nota de cinco reais, uma raridade! As pessoas normalmente só davam moedas, mas, mesmo assim, eram muito poucas as que davam algo. A imensa maioria mantinha os vidros dos carros fechados. Ou fechavam-nos rapidamente, quando viam que ele se aproximava.  Algumas, de vidro aberto, não lhe davam nada além de uma cara feia. Vez por outra ouvia algo assim: Não se deve dar esmolas. Ou: Dar esmola é sustentar vagabundo.

Ele, vagabundo? Tinha nove anos, trabalhava todos os dias, domingo e feriado inclusive, com chuva ou com sol, com frio ou com calor, toda a manhã e toda a tarde. E até de noite, se a féria estivesse muito ruim naquele dia. Não, ele não era vagabundo!

Mas agora já podia ir. E foi o que fez, saiu mais cedo do ponto, contente com a nota de cinco e as moedas. Passou na birosca do Carvão, pegou a cachaça. Apressou o passo para chegar em casa e ver o que Cidinha precisava comprar de comida praquela noite. Com certeza ninguém tinha comido nada em casa, era sempre assim até ele chegar com o dinheiro do dia. Cidinha tomava conta da casa e dos irmãos menores, fazia a comida quando tinham, lavava as roupas, mantinha o barraco limpo e asseado de dar gosto. 

Mas, quando Bentinho saiu da birosca com a garrafa, ficou surpreso ao ver Cidinha andando com pressa, quase correndo. Vinha com uma sacola bem cheia nas mãos, outra nas costas. Parou ao vê-lo e falou depressa:

– To fugindo de casa. Sabe aquele desgraçado do Tião, que se enfia no quarto da nossa mãe e ficam fazendo aquelas coisas e bebendo? Pois é, hoje a mãe tava dormindo de porre, então ele tentou me agarrar. Só que eu já estava preparada, ele já tinha tentado antes. Desta vez eu  fiz que estava com medo, mas fui me encostar no armário quebrado. Quando ele me agarrou, eu peguei rápido o martelo que eu tinha escondido ali pra isso mesmo. Aí virei-lhe uma martelada nos cornos com toda a minha força. Pegou acima da testa, acho que fez um buraco. O desgraçado caiu cheio de sangue no chão e começou a tremelicar os braços e as pernas sem parar. Parecia uma barata envenenada. Aí eu corri pra pegar as minhas coisas; quando ele levantar, ele me mata.

– Mas pra onde você vai, menina?

– Pra rua! Pra onde mais eu posso ir? Mas vou ficar viva, pelo menos até aquele bandido me encontrar.

– Mas maninha, como é que vai ser com as crianças? E a mãe? A mãe vai ficar mais louca do que nunca. Mas o pior é: como é que você vai ficar por aí? A rua é horrível, perigosa.

– Olha, Bentinho. Por agora eu vou ficar na minha escola. Não tem ninguém lá, já é férias, eu vou pular o muro de trás e fico por lá, as portas das salas de aula não fecham direito, eu me abrigo numa, durmo sentada. Sei como entrar na biblioteca também, vai ser muito bom, vou passar o dia lendo. Tem um monte de banheiros, posso tomar banho, não vou passar sede. Só fome.

– Não, fome você não passa. Olha, vou dividir o dinheiro que sobrou da cachaça com você, tem uma nota de cinco, fica pra você. E eu sei onde é sua escola. Pode deixar que amanhã eu passo por lá e lhe deixo mais algum, antes de vir pra casa.

– Bentinho, você é um santo! Obrigada. Mas agora eu preciso ir, tenho que pegar aquele ônibus antes que o monstro venha atrás de mim. Espero você na escola amanhã, você me conta como ficaram as coisas em casa.

Bentinho entrou em casa por volta de 7 de noite, com cuidado. Viu que nenhuma das crianças estava lá dentro, na certa tinham fugido com medo de Tião. Foi quando avistou o mulato esvaído em sangue no chão, sacudindo os braços e as pernas de uma forma muito esquisita. Os olhos estavam esbugalhados, mas não acompanhavam Bentinho. No chão, bem perto, o martelo.

Bentinho sentou em frente ao homem e ficou olhando fixamente para a cara dele. Pensava em sua irmãzinha. Com só doze anos, ela ia ter que enfrentar a rua em breve, ia virar prostituta com certeza, ou coisa pior: ladra e drogada. E tudo por causa daquele maldito ali no chão. Por que a martelada não tinha conseguido matar aquele desgraçado? Então Cidinha estaria salva. E tudo continuaria como antes. Ele trabalhava na rua, ela trabalhava em casa e ainda podia estudar, coisa que não interessava a nenhum dos outros irmãos, ele inclusive.

O menino olhou o martelo no chão. Olhou o homem que estava causando toda aquela desgraça, Cidinha condenada para sempre por causa daquele bandido. Então a ideia lhe veio súbita,  como um lampejo. Deu um salto da cadeira, apanhou o martelo. Empunhou-o com ambas as mãos. Abaixou-se e vibrou um golpe tremendo no crânio do homem. Fez uma barulho de coco quebrando. O homem parou imediatamente de sacudir as pernas. Estava feito! No quarto, a mãe ressonava.

Correu para a birosca de Carvão. Entregou a ele o martelo. Falou para todos ali ouvirem:

– Eu matei o Tião, ele estava tentando matar minha mãe. Peguei ele com esse martelo. Bati até matar. O assassino sou eu. Agora vou me mandar. Até.

E correu a esperar o ônibus, ia direto para a escola de Cidinha ali no bairro mesmo, ela precisava saber que estava salva. Podia voltar para casa, podia fazer comida para a criançada, podia seguir tomando conta de tudo. Podia continuar estudando e ter um futuro, pelo menos ela..

Ele? Bem agora ele era um bandido também, um assassino de nove anos. Nunca pensou que isso pudesse lhe acontecer. Mas não estava triste. Estava até feliz, tinha salvo sua irmã, a pessoa que ele mais amava neste mundo, de uma desgraça total, de uma vida horrorosa. Amanhã a polícia viria atrás dele, ele estaria no ponto, seria fácil encontrá-lo. Contaria a “verdade”. Ninguém ia achar ruim a morte de Tião, bandido com uma ficha corrida de metros. Já ele, era menor de idade, não podia ser preso. Talvez o levassem para uma casa de menores. Mas também era possível que não. Afinal, ele matara para defender sua mãe. Na birosca um homem velho desdentado lhe fizera um sinal de positivo com o dedão, e sussurrara: Esse moleque é um herói!

Lá fora, na noite quente, luzes e buzinas festejavam. Era Natal, mas Bentinho não tinha muito ideia do que era isso. Na certa alguma coisa boa que só acontece para os outros, para os que passam dentro dos carros fechados.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

LUCAS - Mais um conto de Natal
MILTON MACIEL 

   Lucas encostou o corpo (Corpo?!... Aquilo era corpo? Bem, ossos, digamos. Ossos, cabelos, sujeira, unhas, cachaça. Agora sim! Essa é uma versão melhor para a figura de Lucas Balmarin. Gaúcho de nascimento, filho de colonos, neto de italiano com bugra, mendigo de profissão, duas fraquezas fatais: jogo e cachaça. Ou melhor, três: mulher de bunda grande, também).

  Lucas encostou o corpo (Espera aí! dever de justiça: Lucas já teve um corpo até que razoável. Naquele tempo, rapaz novo da colônia, bom de enxada e de jogo de osso, corrias as casas de chinas, atrás das de traseiro empinado. É... mas já faz tanto tempo, besteira perder tempo lembrando. Hoje ele é só osso, cabelo, sujeira... Melhor seguir com a história, o leitor se impacienta).

  Bem, então Lucas encostou o corpo (Corpo! Já pensou? Um metro e oitenta de macho gaúcho reduzidos a uns cinqüenta quilos e olhe lá! “Bá, tchê! Que baita fria essa de descer do caminhão do Baixinho em São Paulo!”  Pois o Baixinho não era flor de camarada? “Só falava da sua Paraíba e de uma tal de Campina Grande, cidade buena que só ela, lugar de se viver regalado, muita cachaça, muita mulher.” Não tinha era trabalho, mas isso Lucas não queria mesmo. Pois o Baixinho não o levava de carona para a Paraíba? Já não estava tudo acertado? É, mas na hora H, posto-restaurante em Guarulhos, muito calor, bebida mais quente ainda, de repente aquela idéia besta de ficar... Lucas acabou sumindo. Coitado do Baixinho, já falava compadre prá cá, compadre prá lá. Mas a vida é assim, cada homem tem seu destino, acaba tomando seu rumo, se quer ou se não quer.

  Lucas encostou o corpo para descansar (Descansar? E essa agora?  Só se cansou os queixos, de tanto beber no gargalo.   É, até que o dia tinha sido bom. Batizado na Igreja do Brooklin, gente bacana, esmolas mais gordas, parecia até os bons tempos. Bêbado de sorte: numa crise braba dessas, batizado realizado logo após missa de sétimo dia, intenção da alma de industrial recém-suicidado, crise feia... Mas, como se diz no Sul, “Criança e borracho, Deus anda com a mão por baixo”. Bêbado de sorte! Logo depois esmolas gordas, batizado de criança importante, na certa um lorde-bebê lá do Morumbi. Deu pra uma garrafa inteirinha, das boas).

   Lucas encostou o corpo para descansar (Ah! Por falar em Morumbi: Lucas adorava o Morumbi. “Bairro de gente bacana.” E tem mais: era são-paulino roxo. “Sô pó-de-arroz”(Acho que porque torcia para o Fluminense carioca, também; e aí fazia confusão). Adorava o Morumbi, o São Paulo e, é lógico, mulher de bunda grande. Mas esse negócio de mulher... Bem, coisa do passado. Há quanto tempo não sabia o que era uma? Afinal, Lucas não é qualquer mendigo. “Bêbado eu sô, maloquero, não! Sô pó-de-arroz.” É, Lucas não dormia com maloqueira, mulher chinfrim, suja de rua. Preferia assim. “É minha vida, pô!” Tá certo, cada um come o que quer. Ou não come. Pois, como bem diz o Lucas, “Pues não hay, neste loco mundo, lugar até pra vegetariano, um esquisito que não come churrasco porque não qué? E até pra faquir, um santo que vive só de jejum, de só comê ar e reza?”).

   Bom, mas como eu dizia, Lucas encostou o corpo para descansar. Bem no nicho da parede da casa de Madame (Perdão, esqueci de dizer: Lucas estava de volta ao seu Morumbi, seu bairro do coração, lugar de gente bacana, do São Paulo. Grande Morumbi, perfeito “Se não tivesse tanto guarda particular cavalo, sempre empurrando os pobre dos magro, se fosse nos bons tempo eles iam vê!”

Estava no Morumbi, no nicho da casa de Madame. Era uma casa muito grande, toda rosa-escuro, numa daquelas ruas bem largas, cheias de árvores enormes. Lucas adorava as árvores enormes, lembravam a serra gaúcha. E adorava mulher de... Bem, isso eu já disse. Mas essa era uma das razões de Lucas gostar daquela casa: a filha mais velha de  Madame  tinha um traseiro  que  “Bá, tchê! Cosa de cinema, cosa de praia do Rio, que não morro sem ir lá!”)

  Lucas era um voyeur de classe. Legítimo. Só olhava. “Bueno, olhar não tira pedaço.” Ainda bem! Se tirasse, coitada da filha de Madame. Da filha mais velha, porque a outra: “Pobrezita, dá pena tchê, é um desbunde só.” Lucas olhava com respeito. Mais. Olhava com devoção. Devoção de voyeur de classe, de artista ante sua musa. Lucas tinha alma de artista. Embora, neste caso, a musa não fosse propriamente a moça, mas sua bunda empinada. Pobre Lucas... Ninguém jamais lhe disse que ele é um voyeur, ele adoraria saber disso. “Francês é língua de bacana, deve tar assim de francês no Morumbi.”

   Bem, mas onde estávamos? Ah, sim, Lucas encostou o corpo, etc. Sim, encostou ali no nicho (Nicho, providencial, primor da arquitetura do Morumbi: cabia certo um homem bem magro, oculto pela folhagem das trepadeiras). “Nome más sem-vergonha! Não gosto de erva com esse nome em casa de gente que respeito.” Lucas era respeitador, a longa abstinência o fizera até pudico. Olhava, é claro, que olhar não tira pedaço nem nada. Mas pensar em passar a mão... “Tá loco, tchê?! Más respeito com a bunda da mocinha. É cosa de arte, vê se tu entende.” Bom sujeito, o Lucas. Respeitador, calmo, uma alma de artista. Artista, só?!  Não, filósofo. E que filósofo!

   Mas, filósofo ou artista, o fato é que Lucas encostou o corpo no nicho da parede da casa de Madame. Madame era a outra razão de Lucas vir a essa rua, a essa casa bendita. Madame era o máximo! “Coitada, deve tar mal das perna, sem gaita, dinheiro curto, não tem guarda. Bom pra mim, mas é injustoMundo ruim, desgraça de uns, sorte de otros.” Para Lucas, Madame não merecia estar de dinheiro pouco, crise mais sem-vergonha, mais desrespeitosa, não reconhecia uma pessoa boa no meio das outras. “Mundo velho sem portera, planeta de doido!”

   Lucas se encolheu contra a parede. Seu corpo (corpo?) conseguiu ficar mais magro ainda. Acho bobagem. Do jeito que vai, daqui um tempo só uma folha já o esconde. Magro demais, esse Lucas! Mas o encolhimento fora causado pela chegada da filha mais velha de Madame, que acabava de estacionar o carro. “Oba!  Do otro lado da rua. Que bom, dá prá ver más tempo!”. A moça trancou o carro, atravessou a rua, entrou em casa, Lucas murchou. “De novo de saia! Isso não vale. Governo más mole esse! Eu, presidente, baixava decreto: só pode usá saia mulher sem trasero. As otra, era tudo no shortinho ou na calça comprida.”

   Mas era um filósofo, logo se consolou. Afinal, muito mais importante era Madame. Mas continuou espremido contra a parede por muito tempo, força do hábito. “Sabe como é, se me enxergam vão pensar que sô bandido. Mundo loco, este. Hay gente mui malvada: os guarda particular, os polícia, os ladrão que roubam armado, os que desrespeitam mulher e gente velha. Se pego um, eu mato!”

  E, enfim, o momento supremo: Madame ia rezar. Lucas distendeu-se todo, relaxou os músculos, fechou os olhos assim que viu a luz trêmula das velas na alta vidraça fosca e colorida. Preparou-se. A música ia começar. “Cosa más linda, tchê! Parece até que é Deus no céu, que tá tocando sua cordiona! Um som más diferente, cosa de aparelho. Mas que faz a alma da gente subir que nem fumaça no campo.” Lucas encostou a cabeça na parede, para ouvir melhor a doce voz de Madame:

    “Almerinda, seu traste! Já não mandei avivar a lareira do meu quarto quando vou meditar? Idiota! Agora vou passar frio com o collant de ginástica.” Mas, enfim, fez-se silêncio. Madame ligou o aparelho, Deus começou a tocar cordiona no céu... Lucas estremeceu, esperou a prece de Madame. Perdeu as palavras iniciais, mas isso não tinha importância. Ele não entendia nada mesmo. Era “palavreado em língua enrolada, dos estrangeiro, com cantoria, chamava um tal de OOMMM. Deve de sê um grande santo o então um anjo dos graduado.”

   Mas a parte melhor, aquela que ele adorava mesmo, essa ele sempre ouvia, já era em língua de gente:  “É prá mim, pros como eu!”, emocionou-se. Madame entoava: “... minhas vibrações pelos aflitos, Senhor. Pelos que sofrem, pelos que passam frio e fome neste mundo ingrato. Pelos bêbados na rua, pelos doentes nos hospitais, pelos presos nos cárceres, pelas infelizes protitu...”

  Mais não conseguiu ouvir, só o barulho inesperado de guinchar de freios, porta de carro batendo, motor de moto rugindo, gritos. Saiu do êxtase, meio tonto de enlevo, meio tonto de cachaça. Não entendeu bem o que se passava. A filha mais moça de Madame descia do carro, aos gritos. Dois homens a seguravam, deviam ter vindo na moto, um mulato e um branco. O mulato segurava um revólver. O branco, o pescoço fino da filha de Madame.

  Despertado, enfim, do seu torpor, Lucas ficou enfurecido: “Os bandido! Tão querendo pegá a filha da Madame! Devem sê cego, ela nem tem bunda.” Por um rápido instante passou em sua mente a imagem da filha mais velha, sua musa: podia ter sido com ela e isso o deixou mais furioso ainda. No instante seguinte lhe veio a imagem de Madame, coitada, sofrendo, os bandidos levando sua filhinha por aí, fazendo maldades com ela. Pobrezinha, nem bunda tinha. Foi demais! O sangue italiano explodiu, misturado ao de índia charrua, sua avó. Lucas saltou do esconderijo sobre os dois homens, dando um berro horroroso de raiva e indignação.

   Foi tudo tão rápido, mal dá pra contar. Os bandidos (que não queriam nada com a garota magricela, queriam era entrar na casa para roubar) e a própria moça levaram todos o maior susto de toda a vida deles. Aquele vulto terrível, alto, esquelético, desgrenhado, sujo, enorme cabelo meio claro meio imundo, um farrapo cobrindo todo o corpo e, o que é pior, saindo do nada, no lusco-fusco do início da noite. Do nada? Pior, o bicho tinha saído era de dentro da parede, como é que pode?!  Só podia ser coisa de assombração, coisa do outro mundo, alma penada, o próprio cão em pessoa. Aí os três, vítima e atacantes, danaram a gritar ainda mais alto que o Lucas. Mas eram berros de puro cagaço, pavor total, absoluto.

    O mulato, com agilidade de bicho acuado, se precipitou sobre a moto e partiu como um furacão, cuidando da própria pele e deixando o companheiro para distrair o demônio. “Bruto castigo! pensou, olha o que me espera, hoje mesmo largo esta vida de bandido, viro beato, faço promessa, pago novena. Aí, Meus Deus, tenha piedade!!!”

 O bandido branco viu que estava na pior, não tinha saída, ia vender caro a pele ao coisa-ruim:

“Minha alma ocê num leva, seu cão dos inferno!”

Viu o revólver que o mulato deixara cair – Cagão duma figa, deixava-o nas mãos do diabo! Agiu mais rápido do que pensou. Jogou-se ao chão, catou a arma, descarregou o tambor. Três em direção ao covarde que fugia na moto, errou, longe demais. Voltou-se para a aparição do demo, deu mais três vezes no gatilho. “Te esconjuro, alma do cão!” O vulto, magro demais para ser atingido, cresceu em sua direção. Uma dor horrorosa lhe entrou na altura da orelha, sentiu, com desespero, o cheiro que deve ter o próprio inferno, cheiro de coisa podre, de coisa ruim. Devia ser o tal de enxofre de que falavam. Deu um empurrão na coisa, pernas prá que te quero, deve estar correndo até hoje.

   Lucas limpou a boca, cuspiu uma coisa, sentiu um gosto esquisito. No chão, rolou um pedaço de orelha branca, com brinquinho de ouro e tudo. Lucas não viu nada, no escuro. Voltou-se à procura da menina, que já batia o portão de entrada atrás de si. Gritava ainda, sem parar, descontrolada, apavorada com o vulto horrendo que a atacara e aos bandidos. Voltou-se, terrificada, ainda um último instante, enquanto o portão se fechava. Uma fração de segundo, o suficiente para ver que o a criatura tinha sangue na boca. Deus do céu, era um vampiro!

  Dentro de casa o susto foi terrível também. Madame, a filha mais velha, as empregadas, Almerinda aos prantos, gelada com a visão do vampiro. Ela é que abrira o portão para a menina, providenciara o rápido resgate, puxando com toda a força a garota, que estacara a tremer totalmente travada, aos berros.

   Mas Madame agiu rápido. Era prática, era uma mulher de negócios. Não acreditava em vampiros, “Isso é bobagem de novela, de filme idiota de terror”. Indiferente aos gritos de “liga prá polícia!”, ligou foi para a mansão do vizinho do quarteirão de cima. Dois minutos depois, dois dos vigilantes da casa do vizinho, industrial importante, chegavam correndo. Madame chamou-os ao canto, explicou logo: “Besteira essa história de vampiro. Tenho certeza que vi um homem bem assim, alto e magro, todo esfarrapado, com um cabelo de assombração. Vi umas duas vezes, andando nestas imediações. É evidente que os bandidos assaltaram a minha filha e tenho certeza que esse homem a salvou. Deve ser um louco, perigoso com certeza. Quero que vocês procurem bem. Se acharem, já sabem: surra de criar bicho! Assim o desgraçado nunca mais põe os pés por aqui.”

  Madame falou, escorregou algumas notas para as mãos grossas dos vigias. O suficiente para eles saírem loucos de raiva, prontos para exorcizar vampiro favelado. Ceará, o maior deles, foi logo encontrando Lucas, a poucos metros dali. Ceará estava possesso, chegou batendo, chutando, gritando pelo companheiro. Este assistia a tudo, divertido: estava ocupado, tentando tirar um brinquinho de ouro de um pedaço de orelha caído na calçada; encontrara logo ao sair, noite de sorte. Além disso, não precisava bater também no mendigo.

   Ceará era suficiente. Além disso, estava necessitado, coitado. Há dias que não brigava, mais de semana sem dar porrada em ninguém. Ceará ficava com os nervos à flor da pele. Em boa hora aparecia aquele mendigo providencial. Com certeza agora, depois de descarregar uns bons sopapos, ia se acalmar. Aí ficava romântico, cantava bolero dor-de-cotovelo, chegava a encher os olhos de lágrimas, homem sensível estava ali. Um bom camarada, o Ceará, se pudesse distribuir uns chutes e porradas regularmente.

Mas agora era preciso acalmar o homem, arrancá-lo de cima da presa.  Quando chegou lá, levou um susto: “Pára, Ceará, o cara é magro demais, assim tu mata ele, vai dar a maior mão-de-obra pra sumir com o corpo”. Corpo?  – pensou o vigia – vai é espalhar osso pela rua toda, é só chamar os cachorros, imaginou divertido. A caro custo conseguiu retirar o companheiro da presa; encolhido no chão, o farrapo de homem, dentro dos farrapos de pano, não gritava, não fazia escândalo, só gemia.

Devia estar acostumado a apanhar, o desinfeliz. “Mermão,  assim que tu pudé andá, se manda daqui na carreira. Se a gente te encontra outra vez nestas banda, tu é um vampiro morto. Ah, por falar nisso: toma, leva a orelha, tu mereceu. Afinal tu foi herói, é o teu troféu. O prêmio, a dona já mandou o Ceará providenciar pra ti. Eu fico com o brinco.”

   Madame, informada do acontecido, deu-se por satisfeita. Recusou, mais uma vez, o oferecimento que os vigias já lhe haviam feito: um primo do Ceará para vigilante de sua casa, PM recém-expulso da corporação, coisa fina, de primeira. “Não, muito dinheiro, não vale a pena, com tanto guarda na casa de vocês, aí em cima.” Recolheu-se, contrafeita.

   “Que dia, meu Deus! Uma pobre mulher não pode mais nem meditar em paz, orar pelos aflitos, demonstrar generosidade e desprendimento.” Xingou outra vez Almerinda, aquela burra, a lareira estava apagada. Xingou os bandidos, o mendigo, os guardas, os empregados, os fornecedores, até se acalmar. Aí acendeu de novo as velas e os incensos, colocou os cristais sobre os chakras, sentada em pose de lótus, dentro da pirâmide de varetas de alumínio.

   Não conseguiu se concentrar logo, era uma tristeza ver os pneus em sua cintura, quando estava sentada assim. “Preciso criar vergonha, dar mais atenção a mim, parar de pensar só no bem dos outros, fazer uma lipo. Ou vou pro Spa, só três mil dólares, mas e o tempo, meu Deus, e o tempo?...” Aí lembrou-se de seus Mestres Ascensionados. Mestres espirituais encarregados de pessoas da sua importância, do seu nível social, certamente não eram Mestres comuns, como os que cuidam da gente inferior. Na certa não iam gostar de vê-la com preocupações tão materiais neste momento. Melhor que se concentrasse logo em sua meditação, que elevasse sua mente, que fizesse suas poderosas orações.

    Suspirou, estendeu o braço, ligou a música, os sintetizadores trouxeram o alfa imediato; Madame sentiu-se enlevada, puro espírito a pairar muito acima das coisas mesquinhas desse mundo material. Muito acima dessa gentalha inferior que a servia em casa e na empresa, muito acima de suas próprias filhas, pedantes universitárias a fazer pouco de suas práticas espirituais, sem saber dar valor ao nobre espírito superior que tinham o privilégio de ter como mãe. E orou, sua voz agora muito doce:

   “Aceitai, Senhor, as poderosas vibrações de minha mente generosa e de meu coração cristão, desdobradas em amor por toda a humanidade; por nossos irmãos sofredores, pelos enfermos nos hospitais, pelos presos nos cárceres, pelos bêbados nas sarjetas, pelas infelizes prostitutas. Daí, Senhor, teto e alimento para eles, escola para as crianças, força, disciplina e obediência para os trabalhadores. Preservai, Senhor, as nossa sábias instituições, protegei as propriedades contra os assaltos e as fazendas contra as invasões, iluminai a mente do nosso bondoso presidente, sustentai sua maioria no Congresso. Daí novo alento ao mercado das fibras de algodão. Fazei, suplico-vos com Amor, subirem as ações da Telefônica no pregão de quinta-feira. E eu, em troca, vos darei cada vez mais minha fé, as vibrações amantíssimas de meu coração  e minha infinita devoção, meu Senhor e meu Deus...”

   O alfa virou delta. Instantes depois a música acabou e só sobraram, altos e compassados, os roncos de Madame. O que a contrariava demais: não conseguia levar muito longe sua disciplina espiritual, logo vinha aquele sono incoercível, dormia horas assim. Acordava toda doída, babando, com frio. Muito chato. Os Mestres iam ter que dar um jeito...

   Ah, sim! O Lucas, não é? Bem ele não se recuperou totalmente, até hoje. Não por causa da surra, estava acostumado. Só duas costelas quebradas, uns arranhões, dor pelo corpo todo (corpo?) que acabou passando, como sempre. Uma viatura da PM o recolhera e levara ao pronto-socorro, os soldados assustados com seu estado, os médicos dizendo que até furo de bala ele tinha, na pelanca da coxa. “Frescura, tchê! Que bala, que nada. Então eu não ia sabê?!”

   O duro mesmo, o pior, é ter que suportar a falta da casa de Madame. Não poder ir mais naquela rua, depois de ter salvo a filha de Madame... que ironia cruel. “Mundo loco, barbaridade cabeluda!” A falta da musa não o incomodava tanto: “Bueno, bunda grande hay por todo lugar.” Já tinha até localizado uma outra casa no Morumbi, lá pros lados do Hospital Israelita, com uma babá de calça branca bem justa “mui bem dotada, mas uma Raimunda...”  Mas, que fazer, quem vê cara não vê...

   O duro mesmo, o que maltrata, “É ficá sem a santa que é a Madame, sem suas música, sem suas reza, aquela parte que fala dos bêbado... Ah, Madame! Alma de Deus, anjo na Terra, que saudade!” E Lucas chora...

   Acabou. Como? Ah, você está reclamando por causa do subtítulo, não é? “Mais um conto de Natal.”Ora, acorda! É um conto para o seu Natal, deixe para reler quando chegar o dia. Ou você acha que gente como o Lucas tem direito a Natal? Acorda, cara!

domingo, 24 de dezembro de 2017

PARA MEUS AMIGOS, em 2018
MILTON MACIEL

Para aqueles que ainda se abrasam, eu desejo,
À plenitude do amor e do entusiasmo,
Que, às nuances incendiárias do Desejo,
Colham as bênçãos recíprocas do orgasmo.

Mas, mais do que só corpos, que amem almas,
Com o Amor que se faz como perene
E que os caminhos da vida ilumina.
Amores permanentes, paixões calmas:
Como Camões amou sua Dinamene,
Ou como amou Machado a Carolina.

Mas para os que mais que só o amor da vida querem,
Desejo a audácia que liberta os que diferem:
Que ousem livrar-se dos seus dias enfadonhos
E então viajem a Viagem dos seus Sonhos!


sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

A GUERRA DE JACQUES - 1a. edição
MILTON MACIEL - idel, 2017, 408 pg

O "Jacques" começou para ser só mais um dos muitos livros que escrevo como “ghost writer”, escritor fantasma, onde meu nome não aparece como autor. Mas os clientes, lá pela metade do trabalho, gostaram tanto que me pediram para que eu figurasse como co-autor.

Foi memorável. Estudei e pesquisei como um louco, li 12 livros escritos por pilotos e outros ex-combatentes em um mês, deixei o Dr. Google enfarado de tanto me ver: a história se passava nos últimos anos da 2ª Guerra Mundial e eu ignorava muitos dos seus horrores! Estudei mais de 50 mapas, assisti dezenas de filmes e vídeos.

Então comecei a escrever. Saltei de trens que, atravessando Bélgica e Holanda, levavam prisioneiros belgas e franceses para o trabalho escravo na Alemanha. Bombardeei cidades inglesas e alemãs, destruí incontáveis Stukas, Spitfires, Messerschmitts e fortalezas voadores B-29 em tremendas batalhas aéreas. Esmaguei Londres, Bruxelas e Antuérpia com bombas voadoras V1 e V2. Destruí altos fornos, aciarias, estradas, pontes, ferrovias, represas, botei abaixo hospitais lotados, escolas, edifícios, casas humildes, dizimei exércitos e populações civis inocentes aos milhares e milhares. Sem piedade. Porque EU era a Guerra!

Mas, no fim, fui derrotado, porque a trama é uma história de AMOR. Do amor entre um rapaz e uma moça da Bélgica que, unidos, vencem dez vezes a morte e mil vezes a desesperança; em Bruxelas, em Essen, Alemanha, em Paris, França, a bordo de um navio mercante no Atlântico e na nova pátria que os acolheu amorosamente, por onde entraram pelo Rio de Janeiro para irem viver todo o resto de suas longas vidas na São Paulo da garoa. A história é baseada em pessoas e fatos da vida real! Ela me foi encomendada pelos filhos brasileiros, hoje sexagenários, desse casal de heróis da Resistência Belga.

Agora vou para aquele período de umbral, em que sinto uma falta brutal de Jacques e de Loulou, de Phillipe Delmas e Émile Heide, de Lucien, Mireille, Jean Pierre Tissot, do Coronel Parucker da Wermacht, do cabo Dieter Maluco da SS, de Copacabana, do Zé Carioca, do cônsul belga em São Paulo, Max Weckx, que ensinou a Jacques porque se deve amar o Brasil. Vivi meses com eles todos os dias, tornaram-se parte de mim. Ou eu, deles. Vou ficar muitos dias sem poder criar personagens novos, porque estou ainda em íntima comunhão com os de Jacques Rosen.

É um período muito estranho esse. Assisti à gravação de uma entrevista de Clarice Lispector, aos seus 56 anos (faleceria um ano depois), em que ela dizia que estava MORTA, que só voltava a viver quando começava a escrever de novo. Sei muito bem o que ela quis dizer. Uma parte de nós morre junto com o fim da nossa história.

Mas, felizmente, renasce depois, quando novos personagens começam a nascer ainda hesitantes dos nossos dedos aflitos nos teclados, para encenarem novas histórias que nos levarão novamente a viver, florescer e morrer, ad infinitum, até o fim da nossa finitude.
COMO É CARO SER MULHER - 2a. edição
MILTON MACIEL, IDEL, 2017, 200 pg

Este livro resultou de pesquisas e estudos feitos pelo autor nos Estados Unidos, onde residia, em 2012 e 2013 e no Brasil em 2015 e 2106. Mostra como é tão mais difícil para uma mulher conseguir poupar dinheiro para garantir sua tranquilidade futura. Isso porque ela se vê obrigada a gastar de 2 a 3 vezes mais do que um homem ao longo de sua vida. 

Existem causas biológicas, causas comportamentais e causas mercadológicas que se juntam para tornar muito mais cara a vida de uma mulher. Grande parte das mulheres mais jovens não percebem a armadilha em que estão aprisionadas. Os homens, em geral, não têm a menor ideia disso. Acham que as mulheres gastam demais com roupas, cosméticos e cabelos, porque são umas vaidosas destrambelhadas. Nada pode ser menos verdadeiro!

Há despesas imensas, de causa biológica somente, que um homem nunca terá. O corpo de uma mulher custa-lhe demais durante a vida. E os gastos com roupas e cosméticos não são opcionais, são forçados por todo um sistema sociocultural e econômico, que se nutre fundamentalmente do trabalho e do dinheiro da mulher. Além disso, o mercado paga menos para a mulher do que para o homem, obriga-a a jornada dupla de trabalho e cobra mais dela do que dele pelos mesmos produtos e serviços.

Ao longo de uma “vida útil de consumo” de mais de 55 anos, uma mulher trabalha muito mais, ganha muito menos, gasta muito mais e dura muito mais anos do que um homem. 

Por causa disso, se ela não aprender a reconhecer as armadilhas que a cercam e não conseguir poupar reservas para se proteger, pode acabar muito mal, justamente quando deveria passar a usufruir do justo repouso da guerreira, na melhor fase da segunda metade de sua vida. Os números e os fatos que o livro apresenta têm a finalidade de mostrar essas duras verdades, usando bastante humor para ajudar a “rir pra não chorar”. De raiva!

domingo, 26 de novembro de 2017

MUNDINHO E RAIMUNDO NONATO  
MILTON MACIEL   

De longe o menino já escutou os gritos e o choro. Era mainha e eram as crianças também. Lasquera, que disgraça será que assucedeu-se?

Saltou do jegue na soleira da porta e entrou correndo. Dentro de casa, a mãe estava acocorada na sala de chão batido, aos gritos:

– Valha-me Deus Nossa Sinhora! Acuda minha filha, num dexe qui a disgraçera acunteça. Tenha dó da minha bichinha. Minha filha inocente... Deus Nossa Sinhora!

A mulher tinha o rosto inchado e o lábio inferior sangrando. Era evidente que aquele desgraçado tinha batido nela de novo. A caro custo, Mundinho conseguiu entender o que a mãe dizia, entre soluços e rogos:

– Ele levô sua irmã, meu filho. Dizque vai vendê ela pro bandido do Naldão, dizque que Naldão vai dá um bom dinhero pela bichinha. Dizque vai levá ela pra vendê pro fiho do coronel Justino.

– Vendê minha irmã, mainha?!

– Isso mesmo, meu filho. Dizque o home tá na fazenda do pai de visita, é aquele qui é adevogado lá no Recife. Dizque ele tá comprando minina novinha, pra botá na cama mais ele. Uma disgracera. I quem é qui pode cum um filho do Coronel?

– Mas painho foi vendê a própria filha dele? É isso?

– É. Eu supliquei, a Mariinha também, qui num quiria i. Mas num diantô. Aí seu pai bateu em nós duas i levô sua maninha pela corda, amarrada pelos pulso, qui nem bicho. Falô qui ela já tem 13 ano, qui é idade di trabaiá pra ajudá nas dispesa, qui o que ele vai ganhá vendendo ela é mais do que pode tirá num ano intero di vendê rapadura i melado.

– Arre égua, mainha! Mai eu num vô dexá essa disgracera acuntecê cum maninha. Pra qui lado eles foram?

– Seu pai saiu pro lados das venda, mais Mariinha. Faiz um tempão. Ainda arrenegô qui ocê foi montado no Tisnado pra iscola, qui ele ia tê qui andá toda essa lonjura a pé, mais a minina. Foi intregá ela pra Naldão. Qui Deus Nossa Sinhora, num dexe, num dexe!

Mundinho correu para fora, saltou de novo em Tisnado e tocou a galope em direção à picada das vendas. Após alguns minutos, viu ao longe que o pai já estava com Naldão. O menino parou o jegue atrás de uns mandacarus e ficou observando. Viu quando o pai recebeu e contou o que parecia ser dinheiro e, em seguida, transferiu a ponta da corda para o comprador. Maninha tinha sido vendida que nem boi!

O velho Bastião seguiu contente em direção à venda de Nicolau, que ficava a uns três quilômetros dali. Já Naldão, puxando e empurrando Mariinha com alguma violência, tomou a estrada de terra em direção oposta. Taí: ia levar maninha diretamente para a fazenda de Coronel Justino.

Mundinho esperou que o pai desaparecesse na estrada e começou a seguir Naldão e Mariinha bem devagar, a uma boa distância. Mas teve que acelerar o passo do jegue quando percebeu que o bandido estava passando a corda ao redor de um mourão de cerca, prendendo Mariinha no aperto. Então o homem levantou a saia da menina e começou a passar as mãos nela.

O menino viu tudo vermelho à sua frente e arremeteu a toda velocidade para cima do homem, que, quando escutou o tropel de Tisnado, firmou os olhos para entender o que estava acontecendo e quem era aquele doido a galope pela estrada. Perdeu muito tempo com isso, o suficiente para que Mundinho se desviasse de repente,  chegasse até ele e lhe desferisse um tremendo golpe com a única arma que tinha à mão: sua sacola de pano, onde levava meia dúzia de livros de escola.

Atingido na cabeça, mais por causa da muita força do avanço do jegue do que por causa da pouca força do braço do menino, o jagunço rolou por terra, meio tonto. Quando começou a levantar, Mundinho já estava em cima dele de novo. Desta vez o garoto pôde ouvir, nitidamente, o estrondo da batida do joelho do jegue na cabeça de Naldão, que rolou uns dois metros, e se estatelou no chão, já totalmente desacordado.

Agora é ele ou nós! – pensou o menino. E fez Tisnado se afastar o bastante para voltar a galope para o ponto onde o homem estava caído. Na primeira vez, o jegue pulou sobre o corpo. Mas Mundinho repetiu a manobra e, nesta segunda vez, os cascos do animal pisotearam o corpo do bandido. Mundinho repetiu diversas vezes a manobra, até ter certeza que o afamado Naldão, jagunço de muitas mortes nas costas, tinha ido acertar as contas com seu patrão, o Coisa Ruim, lá embaixo.

Saltou do jegue, desamarrou Mariinha, que chorava e tremia apavorada, e a fez montar no animal. Examinou cuidadosamente os pertences do jagunço. Encontrou uma adaga e um garrucha de dois tiros, municiada. Tinha também material para mais três tiros. Colocou tudo em seu saco de livros. Depois montou ele também e tomou o atalho para a vila, por dentro dos pastos de Seu Eurico Benevides. Sabia muito bem onde deixar maninha.

Meia hora depois, os dois irmãos foram ouvidos por um atônito Padre Torelli. O velho sacerdote ficou indignado e enfurecido, mal podendo acreditar que o pai daquelas crianças tivesse sido capaz de tal vileza. Mas prometeu tomar conta da menina, levando-a para a casa das irmãs Olivença, até que as coisas se esclarecessem. Mundinho podia voltar para casa tranquilo quanto à segurança de sua irmã. Nunca mais o padre permitiria que aquele pai desnaturado pusesse as mãos naquela filha.

O padre estranhou que as patas do jegue e o seu ventre mostrassem manchas de sangue, mas Mundinho disse apenas que ele pedisse explicações para Mariinha. E tornou a cavalgar seu fiel Tisnado de volta para casa. Agora, mais do que nunca, sua mãe e irmãos iam precisar dele. Tinha quatorze anos completos e, tudo indicava, acabara de matar um homem. E não qualquer homem, mas um bandido perigoso, com vários assassinatos cometidos, um matador de aluguel. Ele agora era Raimundo Nonato da Silva, também ele um cabra macho, matador de homem.

Estava na hora de deixar de ser criança. A vida o tinha obrigado a virar homem feito nesta tarde. Então estava também na hora de enfrentar aquele outro bandido, que era o velho Bastião, seu próprio pai. Era chegado o tempo de por um fim nos seus desmandos e nas suas violências contra a família. Mundinho podia ter ficado amedrontado até hoje, tanto tinha ele apanhado daquele pai desde bebezinho, tanto tinha ele visto a mãe e os outros irmãos serem barbaramente espancados também.

Mas agora ele não era mais Mundinho. Era Raimundo Nonato da Silva, cabra macho e matador de bandido. Agora o velho Bastião ia ter que respeitá-lo e ele não deixaria que o maldito batesse em mais ninguém de sua família. Palavra de Raimundo Nonato!

Quando o velho Bastião chegou da venda, feliz da vida com a dinheirama no bolso e com os cornos cheios de cachaça como sempre, entrou em casa antegozando a surra que ia dar na mulher. Sempre batia nela quando chegava bêbado, mas  os moleques corriam de medo, quase nunca podia pegar um daqueles porcarias de jeito. Covardes!

Mas, quando chegou na sala, quem estava a espera dele era Raimundo Nonato da Silva. O velho, de fogo, deu um empurrão no moleque Mundinho e foi em busca da mulher, que estava na cozinha. Já chegou batendo. Deu só um tapa, porém. Em seguida sentiu uma dor horrorosa nas costas e teve que se voltar: o filho acabava de lhe vibrar uma terrível pancada com a pá de mexer o tacho de melado.

Velho Bastião ficou possesso, com o atrevimento e com a dor que lhe desconjuntava os ossos. E partiu para cima do garoto:

– Eu vô matá ocê, seu desabusado! – e soltou um dos seus terríveis murros para acertar a cara do moleque.

Mas o menino, estranhamente, não estava chorando e suplicando para não apanhar. Estava tranquilo, com um olhar frio e penetrante, desafiador mesmo, que o velho Bastião nunca tinha visto naquele filho. Eram os olhos experientes do matador Raimundo Nonato.

E este agora era um homem feito. Esquivou-se  agilmente do murro e, para surpresa total do velho Bastião, contra-atacou com uma saraivada de socos fulminantes. O menino estava possesso, batia com uma raiva acumulada durante 14 anos. Batia sem parar. Velho Bastião não tinha como se defender daqueles golpes e acabou tomando uma enorme surra, apanhou durante mais de cinco minutos. No fim ficou enrolado no chão, defendendo o rosto com as duas mãos e esperando a saraivada de pontapés que ia levar na barriga e nas costelas. Mas Raimundo Nonato da Silva não fez nada disso. Apenas falou:

– Se eu fosse covarde qui nem ocê, véio mardito, quebrava ocê a pontapé agora, como ocê sempre fez cum nóis, seu nojento. Mais eu num sô covarde qui nem ocê. Si já cansô di apanhá, se alevanta do chão e sai daqui, antes qui eu perca a cabeça i comece a le disancá di novo.

Para reforçar, apanhou do chão a pá do tacho de melado. E completou:

– Di hoje em diante, fique sabendo qui num tenho mais medo di ocê. I é  bom qui ocê tenha medo di mim. Porque si ocê levantá essa mão suja otra vez pra batê em mainha o nas criança, eu acabo com ocê. Acabo, le mato, compreendeu?

Velho Bastião levantou do chão com dificuldade e esgueirou-se para o lado de fora da casa. Sentou num banco do alpendre e ficou horas ali, pensando. O que será que tinha acontecido com aquele moleque, até ontem um covarde como os outros, que apanhava berrando e suplicando? De onde ele tinha tirado toda aquela força? A verdade é que o rapaz tinha mesmo crescido, estava praticamente da mesma altura que ele, mas era magro e franzino. Mas, de qualquer forma, aquilo não podia ficar assim. Aquela casa era a casa dele, era o seu terreiro e ali só podia cantar um único galo.

O velho esqueceu por um momento das dores e da humilhação, quando levou a mão ao bolso e retirou dali o maço com os mil e duzentos reais. Belo preço por um cabaço, apesar de que o bandido do Naldão devia ter mentido e ficado com um bom naco para ele também. Mas o filho do Coronel, aquele advogado gorducho e incompetente lá da capital, era mesmo viciado em tirar cabaço. Se soubesse disso, tinha ido lhe oferecer a menina muito antes, diretamente, sem precisar repartir nada com o patife do Naldão. A essas horas o safado devia estar fazendo um bom uso da sua parte da dinheirama.

Mas não tinha importância, ele tinha mais duas meninas em casa. Estavam muito novinhas, é verdade, mas com aquele doutorzinho da cidade pagando bem daquele jeito, era só uma questão de mais um par de anos e já podia negociar a primeira delas. E, um ano depois, vendia a terceira. Eita negócio bão! Se soubesse disso, tinha se dedicado a produzir filhas em quantidade e, não, rapadura, melado e cachaça. Até porque a pouca cachaça que ele fazia, ele mesmo se encarregava de consumir, toda ela, ao longo do ano.

Mas aí seu cenho franziu-se outra vez: Maldito moleque! Tinha que dar um jeito nele. E tinha que ser essa noite mesmo. Velho Bastião esperou que todos os candeeiros da noite se apagassem. Entrou sorrateiramente em casa e viu que todos já estavam deitados. A mulher e as crianças no quarto. O moleque, em sua enxerga, armada no chão da sala, ao pé da cozinha. Mariinha era agora uma ausência, certamente estava esperneando essa noite, conhecendo pela primeira vez o que era estrovenga de macho. Problema dela! Já tinha idade. Mulher só servia pra isso mesmo: abrir as pernas pra dar, abrir as pernas pra parir e, de resto, trabalhar muito para servir o homem que fosse o seu dono.

Mas o moleque desgraçado estava dormindo ali à sua frente, de cabeça para baixo, um cabeção tão grande como ele nunca tinha reparado. Lá fora fazia lua cheia e a visibilidade dentro de casa era melhor que a escuridão plena. Então o velho não teve mais dúvidas. Foi até a parede, retirou o facão da bainha e se aproximou do insolente que dormia agora a sono solto. Viu  o cabeção que sobressaia sob o lençol em que o moleque se enrolava sempre para dormir, fizesse o calor que fizesse. Calculou direito a direção e a força do golpe e desceu o braço com toda velocidade em direção à cabeça, tentando encontrar o pescoço com a lâmina.

Estranhamente, o que viu foi algo parecido com uma bola que pulou de dentro do lençol e quicou no chão. Imediatamente, de trás da cortina que servia de porta para a cozinha, o velho viu um relâmpago de luz e um trovão entrou-lhe pelos ouvidos. Junto com ele, entrou-lhe no peito uma bala de garrucha.

O velho caiu no chão, estrebuchando, mas ainda lúcido para ver que o moleque acendia um candeeiro e se aproximava dele com uma garrucha na mão. E ainda conseguiu entender, antes que tudo ficasse para ele definitivamente escuro, como escura era sua alma, o que o menino dizia:

– Eu podia perdoá tudo em ocê um dia, quem sabe. Quem sabe até ocê, meu pai, tê tentado me matá. Mas eu nunca que le perdôo o que fez com minha irmã. Por isso, ocê morre agora.

E disparou o segundo tiro à queima roupa.

A mãe e as crianças chegaram na sala e se depararam com o ato final. O velho ainda tinha o facão na mão. No chão, a velha bola de futebol dos meninos estava encostada no suporte da talha de água.

– Mainha, eu achei que esse mardito ia querê mi matá mesmo. E armei um eu falso, com um cobertor i a bola di futebol como cabeça. Cobri cum o lençol. E ele, no escuro, achou que era eu. E, como oçês pode vê, tentou cortar fora a minha cabeça. É o segundo bandido qui eu mando pro inferno hoje. Agora só farta mais um.

– Como assim, meu filho, mais um? Porque ocê fala em segundo bandido? E qual é esse mais um? Sua mainha num tá entendendo é nada.

– E nem carece di intendê agora, mainha. Agora eu já posso le dizê qui eu num dexei o bandido do Naldão levá maninha cum ele. Eu matei ele com a ajuda de Tisnado. Depois Mariinha le conta como foi, qui eu vô parti agora, pra buscá ela pra casa amanhã cedinho. Deixei maninha cum Padre Torelli, ela tá bem. Agora ocê manda os minino buscá cumpadre Inácio no rancho dele, conta qui eu matei o velho Bastião i conta por que. Ele vai sabê o qui fazê, inclusive cum puliça i tudo. Mas agora eu tenho que i, mainha.

E Raimundo Nonato da Silva, cabra macho e matador, matador de dois bandidos, um o seu próprio pai, montou Tisnado, o fiel Tisnado, e seguiu noite adentro, em direção à vila. Amanhã, quando Padre Torelli abrisse a igreja para a missa das seis, teria uma surpresa. Ele e Tisnado estariam ali para buscar maninha. E esta ficaria aliviada quando soubesse que o velho Bastião nunca mais poderia vendê-la. Mas não contaria nada a Padre Torelli sobre a morte do pai. Não queria perder tempo, nem queria que o padre, com boas intenções, acabasse atrapalhando sua terceira missão. Tinha que liquidar o terceiro bandido. Depois, seria o que Deus quisesse. Que os homens fizessem com ele o que quisessem, também. Mas sua maninha e sua mainha estariam para sempre livres de perigo, livres de bandidos. E isso era uma bênção para a alminha de Mundinho, que amava demais aquela duas mulheres.

Às dez da manhã, Mariinha entrava triunfante em casa. No galpão da casa de compadre Inácio, era feita a sentinela do velho Bastião Silva. Mas ali não tinha ninguém. Só três velhas carpideiras, que cobraram adiantado, choravam e faziam suas ladainhas com esmero profissional. Pagos também tiveram que ser os dois homens que levaram o corpo na rede para o cemitério do povoado. Ninguém mais quis saber de acompanhar o cortejo do homem que tinha vendido a filha e tentado matar o filho.

O menino e seu jegue tiveram outra vez uma curta estada em casa. Seu Inácio confirmou que se encarregava de tudo, seu genro era sargento da polícia militar, ia dar um jeito. Iam livrar a cara do garoto. Então o menino se despediu com um abraço apertado em mainha e outro mais apertado ainda em Mariinha. Elas não sabiam, mas, para ele, era uma despedida. Dentro de poucas horas, o futuro iria se fechar para ele. Mas Mariinha não precisaria nunca mais temer o terceiro bandido.

Horas depois, duas e meia da tarde, o menino Mundinho apeava do resistente Tisnado, à entrada da casa grande da fazenda de Coronel Justino. Um recado urgente de Naldão pro Dr. Amâncio, uma encomenda do doutor que vai demorar mais umas horas.

O doutor Amâncio chegou sonolento na sala, onde o menino esperava. Não havia mais ninguém na casa. O advogado tinha sido perturbado em sua sesta, estava de mau humor. Foi descontando no moleque:

– Então, seu porqueira, o que aquele idiota do Naldão fez que não me trouxe a minha garotinha? Eu paguei bem, a pequena é bonitinha mesmo. Qual é o recado dele, afinal?

– Este aqui.

Raimundo Nonato da Silva retirou da sacola de livros a garrucha de Naldão. Recarregada, perfeita. Olhou demoradamente, com olhos serenos, dentro dos olhos arregalados do homem gordo. Então o terceiro bandido rolou por terra com dois tiros. Missão cumprida. Ninguém tinha ouvido nada, percebido nada na casa vazia.

O rapaz voltou a montar em Tisnado e os dois partiram em direção ao futuro. Qual futuro? Mundinho não sabia. Raimundo Nonato não se importava!