MILTON MACIEL
Final da parte 6 – Céus!... eu nem sei o que dizer. Você foi tão boa para mim. Que seria de mim se você não tivesse me achado caída, me socorrido? E aí você me levou para o Posto, ficou lá todo o tempo comigo. Agora me trouxe para sua casa. E ainda pagou táxi e roupas com... com... com esse tal de... como é mesmo o nome?
PARTE 7
– Boquete,
filhinha. Ainda bem que eu tinha esse recurso, porque ficando todos estes dias
no Posto com você, não deu para faturar nada. Nós estamos a zero, maninha. A
zero.
– De
dinheiro, é?
– É. Hoje eu
vou ter que ter sorte. Assim que cair a noite, você fique aqui descansando que
eu vou sair. Tenho que me virar, nós precisamos comer. Só que, para agora, tem.
Eu andei pedindo umas coisas lá no Posto e consegui este pacote de biscoitos na
padaria. A gente se agüenta com isso. De noite tenho fé que vou conseguir pelo
menos um freguês, tenho que conseguir!
Ritinha ergueu para a nova amiga um olhar de
gratidão e, comovida, prorrompeu a chorar.
– Que é isso,
criança? Está com dor? Está lembrando de coisa ruim? Se acalme, não chore, não.
– Não. Estou
lembrando de coisa boa. Estou lembrando de você lá no Posto de Saúde, segurando
a minha mão o tempo todo. E estou com dó de você ter que sair atrás de dinheiro
também por minha causa. Não é justo...
– Bobagem...
Não fale assim que eu me derreto. Eu falei que vou cuidar de você e vou mesmo,
você vai ver. Vou fazer tudo que eu puder para você não sofrer mais.
– Mas,
Iracema, você já tem uma vida tão difícil sem mim... Se tiver que cuidar de
mim, como é que vai ser?
Como haveria de ser? Iracema/Gabi não sabia.
Porém sabia que haveria de se vender ainda mais, de se esforçar mais ainda. Mas
não deixaria que aquela criança sofresse ainda mais do que já tinha sofrido.
Ela sabia muito bem o que era passar por tudo aquilo. Também ela fora vítima de
estupro em casa, embora não de forma tão violenta. Também ela fugira de casa
para não ficar nas mãos de um agressor covarde.
Não, ela não deixaria que Ritinha sofresse
tudo o que ela, Iracema, tinha sofrido, depois que fugiu de casa. Já chegava a
brutalidade a que a menina fora submetida. Como sua protetora, ela faria o
possível e o impossível para que Ritinha não vivesse o horror que ela havia
vivido nas ruas. Ela havia penado como um cão vadio, totalmente só, sem apoio
de ninguém. Ao contrário, havia sido vilmente explorada e escravizada. Ritinha,
em compensação, não estaria sozinha. Tinha a ela, Iracema, para lhe dar apoio e
solidariedade. Mais: haveria de lhe dar comida e remédios, os caros remédios
que precisava agora. E atenção e carinho também.. Sentia uma afeição genuína
por aquela menina tão boa, tão pura, tão maltratada.
Por isso, ante a pergunta de Ritinha:
– Se tiver que cuidar de mim, como é que vai
ser?
Iracema apenas meneou a cabeça para os lados
e, com um sorriso tranqüilo, tratando de infundir confiança na amiga, garantiu:
– Ah, isso
você deixe comigo que eu resolvo na boa! Pode ter certeza que eu tiro isso de
letra, a gente não tem com que se preocupar. Eu já saí de situações muito mais
difíceis do que esta, meu bem. E sempre me dei bem! Até de arco e flecha eu já
tive que lutar e não tinha ainda nem treze anos. Um dia eu lhe conto tudo.
E Iracema/Gabi cumpriu tudo o que falou. Foi
à luta e deu sorte. Naquela noite encontrou dois caminhoneiros no posto. Chegou
cedo, antes que qualquer das outras meninas aparecesse por lá, ainda havia sol
visível no poente. Acertou com um e com o outro, serviu aos dois em menos de
uma hora. Recebeu os pagamentos e um deles, um mato-grossense muito gente-fina,
lhe deu um bom pedaço de carne-de-sol, da que ele levava para seu próprio
consumo. E ainda lhe deu carona até sua casinha de quarto e banheiro. Taí: Todo mundo pensa que a gente só
encontra gente torta nesta profissão. Pois não é verdade. Muitas vezes, a gente
encontra uns fregueses tão legais!
Menos de duas horas depois de ter saído,
Iracema estava de volta, feliz e exultante. Chegou mostrando o dinheiro e a
carne. Ritinha ficou exultante também, abraçou Iracema com efusão. Já estava de
pé! Andava com dificuldade, mas era uma lutadora. Via-se pela expressão do
rosto, pelo crispar dos músculos, que cada passo lhe era doloroso. Mas ela não
gemia, agüentava-se, sorria.
Com o passar dos dias, a amizade entre as duas
meninas se aprofundou enormemente. Ritinha admirava cada vez mais aquela garota
tão extraordinária, tão forte, tão protetora, tão otimista. Sentia-se segura
como nunca havia se sentido, nem mesmo com sua mãe. Sabia agora, através da
amiga, da perseguição que João Boto continuava a lhe mover, proibindo qualquer
pessoa de lhe dar ajuda. Todos ficaram com medo, até sua mãe. Mas Iracema não.
Era só três anos mais velha que ela, mas era forte, madura, lutadora,
perseverante. E, acima de tudo, era de uma bondade e de um carinho
impressionantes para com ela.
Por sua vez, Iracema, se encantava com a
doçura, a ingenuida-de e a inteligência fora do comum de Ritinha. Ao mesmo
tempo, admirava-se com a resistência estóica da pequena, que se oferecia para ajudar
no serviço da amiga. Mas como?! Como ela poderia ajudar, como ela poderia se
vender aos homens, naquele estado em que estava, ainda tão machucada, apenas
convalescendo? Mas Ritinha insistia sempre mais e mais. Estava convencida que
Marta, sua mãe, a havia abandonado. Por medo de João Boto ou por outra razão
com que não podia atinar. Sabia que se Marta não vinha em seu socorro, ninguém
mais viria. Sua vida estava definitivamente desgraçada pelo padrasto, que ainda
por cima ameaçava quem ousasse lhe dar ajuda, qualquer ajuda.
Estava liquidada. Mas, felizmente, não
estava sozinha. Tinha Iracema. E, com Iracema, sentia-se bem, sentia-se segura.
Admirava a amiga tão profundamente que queria identificar-se com ela o mais que
pudesse. Estava mesmo perdida, nunca mais poderia voltar para casa, onde aquele
monstro a obrigaria a ser mulher dele. Não poderia voltar mais à escola, único
lugar onde era verdadeiramente feliz. Com que cara iria olhar professoras e
colegas? Não, sua vida estava irremediavelmente perdida. Perdida porque um
homem a desejara, como se ela já fosse uma mulher feita.
Será que ela podia, tão menina ainda,
despertar essas vontades nos homens? Pois bem, se podia, então iria usar isso.
Estava decidida: Perdida, perdida e meia: Pois então haveria de ser puta, ela
também! Se sua amiga, que era a melhor pessoa do mundo, que era a pessoa mais
bondosa, a alma mais bonita que ela já havia conhecido, era prostituta, então
ela poderia seguir pelo mesmo caminho e não se transformaria numa pessoa ruim.
Com esse tipo estranho de raciocínio lógico, Ritinha começou a insistir com a
amiga para que esta a preparasse, lhe ensinasse todos os segredos da profissão,
na qual se iniciara aos onze anos, idade que Ritinha iria ter em mais um mês.
CONTINUA
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