quarta-feira, 1 de maio de 2013

RITINHA - 7  
MILTON MACIEL

Final da parte 6  Céus!... eu nem sei o que dizer. Você foi tão boa para mim. Que seria de mim se você não tivesse me achado caída, me socorrido? E aí você me levou para o Posto, ficou lá todo o tempo comigo. Agora me trouxe para sua casa. E ainda pagou táxi e roupas com... com... com esse tal de... como é mesmo o nome?

PARTE 7
– Boquete, filhinha. Ainda bem que eu tinha esse recurso, porque ficando todos estes dias no Posto com você, não deu para faturar nada. Nós estamos a zero, maninha. A zero.

– De dinheiro, é?

– É. Hoje eu vou ter que ter sorte. Assim que cair a noite, você fique aqui descansando que eu vou sair. Tenho que me virar, nós precisamos comer. Só que, para agora, tem. Eu andei pedindo umas coisas lá no Posto e consegui este pacote de biscoitos na padaria. A gente se agüenta com isso. De noite tenho fé que vou conseguir pelo menos um freguês, tenho que conseguir!

   Ritinha ergueu para a nova amiga um olhar de gratidão e, comovida, prorrompeu a chorar.

– Que é isso, criança? Está com dor? Está lembrando de coisa ruim? Se acalme, não chore, não.

– Não. Estou lembrando de coisa boa. Estou lembrando de você lá no Posto de Saúde, segurando a minha mão o tempo todo. E estou com dó de você ter que sair atrás de dinheiro também por minha causa. Não é justo...

– Bobagem... Não fale assim que eu me derreto. Eu falei que vou cuidar de você e vou mesmo, você vai ver. Vou fazer tudo que eu puder para você não sofrer mais.

– Mas, Iracema, você já tem uma vida tão difícil sem mim... Se tiver que cuidar de mim, como é que vai ser?

   Como haveria de ser? Iracema/Gabi não sabia. Porém sabia que haveria de se vender ainda mais, de se esforçar mais ainda. Mas não deixaria que aquela criança sofresse ainda mais do que já tinha sofrido. Ela sabia muito bem o que era passar por tudo aquilo. Também ela fora vítima de estupro em casa, embora não de forma tão violenta. Também ela fugira de casa para não ficar nas mãos de um agressor covarde.

   Não, ela não deixaria que Ritinha sofresse tudo o que ela, Iracema, tinha sofrido, depois que fugiu de casa. Já chegava a brutalidade a que a menina fora submetida. Como sua protetora, ela faria o possível e o impossível para que Ritinha não vivesse o horror que ela havia vivido nas ruas. Ela havia penado como um cão vadio, totalmente só, sem apoio de ninguém. Ao contrário, havia sido vilmente explorada e escravizada. Ritinha, em compensação, não estaria sozinha. Tinha a ela, Iracema, para lhe dar apoio e solidariedade. Mais: haveria de lhe dar comida e remédios, os caros remédios que precisava agora. E atenção e carinho também.. Sentia uma afeição genuína por aquela menina tão boa, tão pura, tão maltratada.

   Por isso, ante a pergunta de Ritinha:

Se tiver que cuidar de mim, como é que vai ser?

   Iracema apenas meneou a cabeça para os lados e, com um sorriso tranqüilo, tratando de infundir confiança na amiga, garantiu:

– Ah, isso você deixe comigo que eu resolvo na boa! Pode ter certeza que eu tiro isso de letra, a gente não tem com que se preocupar. Eu já saí de situações muito mais difíceis do que esta, meu bem. E sempre me dei bem! Até de arco e flecha eu já tive que lutar e não tinha ainda nem treze anos. Um dia eu lhe conto tudo.

   E Iracema/Gabi cumpriu tudo o que falou. Foi à luta e deu sorte. Naquela noite encontrou dois caminhoneiros no posto. Chegou cedo, antes que qualquer das outras meninas aparecesse por lá, ainda havia sol visível no poente. Acertou com um e com o outro, serviu aos dois em menos de uma hora. Recebeu os pagamentos e um deles, um mato-grossense muito gente-fina, lhe deu um bom pedaço de carne-de-sol, da que ele levava para seu próprio consumo. E ainda lhe deu carona até sua casinha de quarto e banheiro. Taí: Todo mundo pensa que a gente só encontra gente torta nesta profissão. Pois não é verdade. Muitas vezes, a gente encontra uns fregueses tão legais!

   Menos de duas horas depois de ter saído, Iracema estava de volta, feliz e exultante. Chegou mostrando o dinheiro e a carne. Ritinha ficou exultante também, abraçou Iracema com efusão. Já estava de pé! Andava com dificuldade, mas era uma lutadora. Via-se pela expressão do rosto, pelo crispar dos músculos, que cada passo lhe era doloroso. Mas ela não gemia, agüentava-se, sorria.

  Com o passar dos dias, a amizade entre as duas meninas se aprofundou enormemente. Ritinha admirava cada vez mais aquela garota tão extraordinária, tão forte, tão protetora, tão otimista. Sentia-se segura como nunca havia se sentido, nem mesmo com sua mãe. Sabia agora, através da amiga, da perseguição que João Boto continuava a lhe mover, proibindo qualquer pessoa de lhe dar ajuda. Todos ficaram com medo, até sua mãe. Mas Iracema não. Era só três anos mais velha que ela, mas era forte, madura, lutadora, perseverante. E, acima de tudo, era de uma bondade e de um carinho impressionantes para com ela.

   Por sua vez, Iracema, se encantava com a doçura, a ingenuida-de e a inteligência fora do comum de Ritinha. Ao mesmo tempo, admirava-se com a resistência estóica da pequena, que se oferecia para ajudar no serviço da amiga. Mas como?! Como ela poderia ajudar, como ela poderia se vender aos homens, naquele estado em que estava, ainda tão machucada, apenas convalescendo? Mas Ritinha insistia sempre mais e mais. Estava convencida que Marta, sua mãe, a havia abandonado. Por medo de João Boto ou por outra razão com que não podia atinar. Sabia que se Marta não vinha em seu socorro, ninguém mais viria. Sua vida estava definitivamente desgraçada pelo padrasto, que ainda por cima ameaçava quem ousasse lhe dar ajuda, qualquer ajuda.

   Estava liquidada. Mas, felizmente, não estava sozinha. Tinha Iracema. E, com Iracema, sentia-se bem, sentia-se segura. Admirava a amiga tão profundamente que queria identificar-se com ela o mais que pudesse. Estava mesmo perdida, nunca mais poderia voltar para casa, onde aquele monstro a obrigaria a ser mulher dele. Não poderia voltar mais à escola, único lugar onde era verdadeiramente feliz. Com que cara iria olhar professoras e colegas? Não, sua vida estava irremediavelmente perdida. Perdida porque um homem a desejara, como se ela já fosse uma mulher feita.

   Será que ela podia, tão menina ainda, despertar essas vontades nos homens? Pois bem, se podia, então iria usar isso. Estava decidida: Perdida, perdida e meia: Pois então haveria de ser puta, ela também! Se sua amiga, que era a melhor pessoa do mundo, que era a pessoa mais bondosa, a alma mais bonita que ela já havia conhecido, era prostituta, então ela poderia seguir pelo mesmo caminho e não se transformaria numa pessoa ruim. Com esse tipo estranho de raciocínio lógico, Ritinha começou a insistir com a amiga para que esta a preparasse, lhe ensinasse todos os segredos da profissão, na qual se iniciara aos onze anos, idade que Ritinha iria ter em mais um mês.

   Iracema se opôs veementemente. Achava Ritinha jovem demais. Achava que não seria preciso. Argumentava que bastava ela nessa vida, que estava dando perfeitamente para as duas viverem. Ritinha retorquia que Iracema tinha a mesma idade, onze anos, quando havia começado na prostituição. Sim, retornava Iracema, mas havia sido muito diferente: ela havia sido obrigada a se prostituir por sua própria mãe, não o fizera porque tinha vontade. Já Ritinha queria entrar naquilo espontaneamente, sem ninguém 
CONTINUA

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