quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

LUA  OCULTA – 38   
MILTON MACIEL  

38 – DE MENINA A GUERREIRA  
Fim do cap. 36: "Também a sua experiência de iniciação sexual tinha sido a melhor possível,  pois Leon Schlikmann lhe servira de companheirinho de jogos infantis primeiro e, depois, de parceirinho sexual de uma forma natural, espontânea, sem grilos.

Já ela, Gládis, tivera um enorme número de abordagens, cantadas, assédios, bolinas, tentativas de estupro, um inferno! Sua bunda, desde menininha, parecia que tinha um ímã gigantesco, atraía tudo quanto era pinto duro inoportuno nas encoxadas de condução, ainda em Santos. Depois que escapou, por pura esperteza e muita velocidade para correr, de duas tentativas de estupro, aos dez e onze anos, ficou esperta e, por conta própria, aprendeu a se defender com técnicas de judô e karatê. E se encontrou quando foi admitida em um curso gratuito só para meninas, dado por uma abnegada instrutora da Polícia Militar.

Essa moça, a sargento Joyce Paranhos, foi de grande importância em sua vida. Encontrou-a em uma cabine de polícia na orla da praia de José Menino, justamente quando conseguiu fugir de dois sujeitos que tentaram pegá-la à força, quando passava por um construção meio abandonada. Com uma enorme agilidade natural, ela escapou do primeiro abraço por trás e conseguiu dar um tranca-pé no outro homem, derrubando-o e tendo tempo de correr. Correu assustada até encontrar a cabine de polícia e, para sorte sua, ali estava a policial Joyce, que a ouviu e acalmou.

A policial saiu a caminhar com a menina pela praia, parou num quiosque, comprou sorvete e, depois, cachorro-quente e refrigerante para a garotinha. Ganhou sua simpatia e confiança. Depois pegou a viatura e foi levar a menina em casa, no Gonzaga. Ali conversou longamente com a avó de Gládis, na época Carmen já estava trabalhando em São Paulo. Conseguiu convencer a avó a deixar a menina praticar técnicas de autodefesa. As palavras de Joyce, um verdadeiro anjo que caiu em sua vida na hora e minuto exatos, ficaram para sempre muito vivas na memória da garota; foi a primeira vez que ela ouviu a expressão inglesa sex appeal:

– Gládis, você já está ficando uma mocinha e acontece que você já é, e vai ser cada vez mais, uma mocinha diferente. Muito diferente. Você tem uma coisa que a gente tem ou não tem. Nasce com ela ou sem ela. Você nasceu com a coisa. E muito, muito forte. Lá fora chamam isso de sex appeal, que quer dizer apelo sexual. Ou seja, você tem uma coisa que atrai os homens com muita força, com uma intensidade anormal. É tão forte em você, que, já aos seus onze anos, faz os caras ficarem tarados por você. Aí os mais desequilibrados assediam ou tentam pegar você à força. Foi o que aconteceu hoje e pode acontecer de novo, várias vezes. Você não tem como evitar essa sua força e ela, se bem usada, até pode lhe ser favorável em certas ocasiões. Mas você vai estar sempre exposta à ação desrespeitosa ou até mesmo agressiva de homens anormais. Por isso é que eu acho que você tem que aprender a se defender, a praticar um tipo de luta que nós aprendemos na Policia Militar. Sua avó concordou e eu me ofereço para ser sua instrutora, totalmente sem custo para vocês.

Gládis ficou fascinada com a oferta, sempre tivera uma admiração muito grande por mulheres de ação, policiais, militares, lutadoras. Aceitou encantada e a policial Joyce passou a frequentar a cada delas duas ou três vezes por semana, na saída do seu serviço. Aí foi a vez da PM ficar encantada com a facilidade com que a menina aprendia tudo, com a dedicação com que ela se entregava à prática, horas a fio sozinha, e, depois, obrigando a coitada da avó a servir de sparing. Quando Gládis fez doze anos, Joyce disse que não tinha mais nada que ensinar à garota, que até já estava começando a aprender alguns golpes que a menina descobrira em livros na biblioteca pública, em espanhol.

O fato foi que a instrutora declarou Gládis plenamente capaz de se defender sozinha de ataques sexuais de todos os tipos. E de tentativas de agressão com punhos, pontapés, porretes e arma branca. A menininha era um verdadeiro prodígio. Pouco depois Joyce conseguiu uma promoção e foi transferida para Batatais, no interior de São Paulo. Ao vir se despedir, trouxe um presente especial para sua pupila e ensinou-a a usá-lo: um soco inglês! Sua garota estava pronta, era um prodígio, um caso único. Ai de quem se metesse com aquela menina já tão alta e com musculatura tão desenvolvida. E, mais do que tudo, com tanta habilidade natural e tanta experiência de treinamento acumulada.

E a prova dos noves não demorou muito a acontecer. Na escola, durante uma aula, ela pediu para sair, para ir ao banheiro. Na saída dele, dois molecões de mais de dezesseis anos, que a viram entrar e estavam cabulando aula, estavam esperando por ela. No mesmo instante ela percebeu o que ia acontecer – sua bendita intuição! – e se preparou para reagir. De fato, um dos rapazes, muito forte, a segurou por trás e tapou sua boca com a mão; o outro levantou sua saia e levou a mão para a calcinha dela. Ele chegou a notar que a pochette que a menina tinha presa à cintura estava aberta. Não deu importância, estava mais interessado na maciez tépida que seus dedos estavam encontrando.

Mas os dedos da garota estavam enfiados em uma coisa metálica e brilhante, que estivera até então dentro da pochette! Isso nenhum dos dois viu. Até que o de trás deu um berro horrível, os dedos do pé esmagados por um pisão dado pelo calçado escolar da menina, que ela dizia que era “forte e feio como sapato de padre”. Então os dois, o da frente primeiro, o de trás depois, descobriram o que é e para que serve um soco inglês. A mão da garota subiu de repente, liberados que estavam seus braços do arrocho do sujeito de trás e aquela coisa metálica fez o maior estrago na cara do imbecil que estava com os dedos mergulhados na sua calcinha. O sangue espirrou e ela pulou para não ser atingida por ele. Isso a colocou de frente para o agressor de trás. Então o soco inglês abriu duas brechas impressionantes na cara desse sujeito, que já tinha o pé arrebentado.

Logo a seguir os dois agressores estavam sentados no chão, sangrando e gemendo, a menina em pé, com o soco inglês na mão direita, que estava toda avermelhada. Ela então lhes mostrou uma foto pequena, plastificada, que tinha na pochette:

– Esta aqui comigo é a minha irmã, oficial da Polícia Militar, foi ela que me ensinou a lutar e me deu este soco inglês, que arrebentou as caras de vocês. E me ensinou a atirar e me deu um revólver pra mulher, que eu vou trazer pra escola a partir de amanhã. Hoje vocês só apanharam. A partir de amanhã, o primeiro que se meter comigo, leva chumbo, tá morto. E comigo não acontece nada, sou menor de idade como vocês e minha irmã livra a minha cara. E agora vocês desapareçam, porque eu vou telefonar pro batalhão e ela vai providenciar que a PM dê um jeito em vocês. Aí é que vocês vão ver o que é apanhar, vão ficar com saudade de mim. Podem ir para casa, podem se esconder onde quiserem, que a polícia acha vocês.

Com a mentira da irmã PM e a mentira do revólver, a espertíssima Gládis conseguiu insuflar tal pânico nos dois que eles saíram correndo porta afora na mesma hora. Eram péssimos alunos, maus elementos, viviam criando encrenca e matando aula. Nunca mais apareceram.

Gládis levou um bom tempo lavando as mãos e o soco inglês. E voltou para a aula com toda tranquilidade, como se nada tivesse acontecido,  passando o resto do período grudada na foto plastificada, agradecendo vezes sem fim a seu anjo da guarda, a oficial Joyce Paranhos da Polícia Militar de São Paulo.

O NÃO!!! 

O maior trabalho que Gládis teve, no exato início do treinamento físico de Larissa, foi ensiná-la a gritar NÃO!

– Isso, é absolutamente vital. Enquanto você não conseguir gritar não com toda a força e toda a raiva, você não vence o seu medo.

– Mas por que?

– Porque você precisa aprender a transformar seu medo em indignação e sua indignação em raiva. Quando um cara te ataca sexualmente, ele está fazendo a pior, a mais horrorosa, a mais desrespeitosa afronta que uma mulher pode receber.

– Sim, é verdade, é mesmo.

– É o cúmulo do desrespeito a um ser humano, o cara se achando no direito de profanar, de penetrar o teu corpo contra tua vontade. Geralmente as mulheres ficam apavoradas, mortas de medo então.

– Eu ficaria, tenho certeza.

– Pois aí é que está o erro, Fofinha. Os caras sabem disso, contam com isso. A mulher fica paralisada, travada, com medo de levar porrada, de ser penetrada e seviciada. E de ser assassinada no fim.

Que coisa horrível, acontece tantas vezes...

– Acontece todos os dias, dezenas de vezes por dia, nem 10% dos casos chegam a conhecimento da polícia, as mulheres agredidas morrem de vergonha do que aconteceu e morrem de medo da retaliação do estuprador, que sempre ameaça matá-la se ela o denunciar. Isso sem falar que, nesta sociedade machista calhorda, não vai faltar quem diga que a estuprada é a culpada, porque estava usando esta ou aquela roupa chamativa, ou porque saiu de noite, ou porque passou por um lugar perigoso. “Estava pedindo”, dizem muitos homens e até algumas mulheres muito filhas da puta!

– E o grito?...

– O grito serve para você vencer o seu medo, você troca seu medo por sua raiva, nascida da indignação de ser desrespeitada assim. Se você travar, se você não gritar não, só está favorecendo a ação do desgraçado. Ele já está começando o ataque, não vai parar mais até conseguir enfiar dentro de você. Se você gritar de medo, ele vai te embolachar, te encher de porrada pra você parar ou desmaiar.

– Mas você diz que tem que gritar...

– Tem que gritar NÃO! Olhando o filho da puta nos olhos, sem mostrar medo, só mostrando raiva. Ele está te ameaçando e você também está ameaçando o maldito. E aí você se coloca nesta posição aqui, ó:

– Desse jeito que você está?

– Exatamente assim: Você afasta as pernas, arqueia levemente o corpo, ergue os braços à altura dos ombros, mas voltados para a frente, as mãos abertas e voltadas para o sujeito, numa posição típica de luta, pronta para o ataque. O imbecil não espera ter que enfrentar uma mulher que pode reagir com ameaça, que pode atacar também, que dê a impressão que aprendeu a lutar. Muitos caras afinam e fogem já nessa hora, vão procurar uma vítima mais fácil.

– Mas que ataque que eu posso fazer, Gládis? Ainda mais com os braços, que vocês disseram que não têm força e...

– Não é que não tenham força, menina! Não têm tanta força como os do homem à sua frente, mas têm força suficiente para acabar com ele em um segundo, um segundo somente!

– Mas como? Atacando a cara dele? E com as mãos abertas? Dando tapas?

– Não, Fofinha, atacando os OLHOS dele!

– Os olhos?!

– Sim, isso mesmo. Atacando os olhos dele com os seus DEDOS e as as suas UNHAS. Você vai receber treinamento específico para isso, vai praticar centenas de vezes,a té ficar automático. Você está com os 10 dedos perto da cara do sujeito. Basta que só um, um único deles, atinja um dos olhos e pronto, o estrago está feito. O cara jamais vai esperar por isso, o seu treinamento capacita você a jogar um bote ultrarrápido, o imbecil não tem como se defender de um ataque que ele não espera, que é rápido demais para admitir esquiva ou revide. Quando ele vê... Bem, ele vê é um ou mais dedos seus invadindo o olho dele. Ou os dois olhos ao mesmo tempo, porque você joga o bote nos dois. E, a partir daí, ele está acabado.

– Mas só com isso?!

– Só? Que tal lembrar o que você sente quando entra um cisco no seu olho.

– Ai, é horrível, arde, dói, enche d’água, só de imaginar dá um arrepio!

– Pois é, agora imagine um dedo entrando com toda a sua força no olho do cara. Tanto faz se o olho está aberto ou se ele chegou a fechar a pálpebra, o que geralmente não dá tempo de fazer. O efeito é o mesmo. Ele está acabado. A dor é completamente insuportável e ele perde a visão daquele olho na hora. Isso se tiver sorte. Porque, se não tiver – e não merece ter – o dedo simplesmente fura o olho dele!

– Que horror! E sangra?

– Claro. E, nesse caso, o cara já ficou cego daquele olho na mesma hora. E é pra sempre, pro filha da mãe nunca mais esquecer o que aconteceu nesse dia.

– Que massa!...

– Mas isso é assunto para outro dia, você vai treinar isso com o Celso, que tem uma técnica maravilhosa para ensinar o ataque aos olhos. Agora eu só quero preparar você para gritar não e para reagir a um ataque sexual por trás. Vamos ao grito de novo.

– Mas Gládis, se eu der um berro aqui, o que a Sonia Assad, o pessoal dela, mais algum hóspede que estiver aqui, vão pensar?

– E você acha que eu já não avisei a menina dela, que estava lá na portaria quando a gente entrou? Não conversei rapidinho com ela? E você acha que a gente já não fez muito barulho aqui, com os nossos treinamentos? E você acha que eu já não catequizei essa garotinha também? Pois vou lhe dizer: ela já aprendeu a gritar não e a aplicar alguns golpes de defesa.

– Nossa, a Samira? Quem diria...

– Ela não é bonitinha e gostosinha? E está louquinha pra dar, é virgem, por incrível que pareça. E isso, minha filha, é como mel pra atrair formiga, parece que os homens aspiram um feromônio nas meninas nessa fase. Eu já percebi que ela está dando corda num corretor malandro, que é casado e que já, já, come a garota. Se eu deixar, é claro.

– Ué, você pode fazer algo?

– Claro que posso, Fofinha. Ainda não me decidi, mas é quase certo que eu vou dar um corridão nesse besta. É muito melhor quando a primeira vez é com alguém que a gente gosta e ele também gosta da gente, vai continuar um tempo com a gente, não é? Aquele miserável vai comer e cair fora, é claro. Se a menina ficar vidrada nele, vai sofrer à toa.

– Nossa, Gládis, você é demais. Até nisso você pensa...

– Bem, eu estou aproveitando as lições que eu  e a Paula estamos dando para a menina e abrindo os olhos dela, ensinando como é que ela tem que fazer para dar e se realizar como mulher, sem se tornar joguete na mão de um cafajeste qualquer, como esse corretor. Mas chega de papo furado, pode começar a gritar.

Larissa bem que tentou, mas ou o grito falhava, ou saía baixo demais, E ela ficava vermelha como pimentão cada vez que tinha que gritar. E foi assim durante muito tempo, até que Gládis recorreu ao recurso que estava reservando para o fim:

– Muito bem. De novo. Posição de espera, braços entreabertos. O direito um pouco mais alto que o esquerdo. Isso. O corpo um pouquinho mais arqueado. Agora eu vou ser o cara que vai atacar você. Eu chego e grito o nome do cara. Pronta?

– Pronta.

Gládis avançou com ímpeto asustador em direção a Larissa e gritou o nome do atacante:

– Adolfo Schlikmann! Vou te comer na marra, sua puta!

NÃAAAAO!!! – O berro de Larissa foi ensurdecedor, até ela ficou assustada com ele.

– Pronto, Fofinha, saiu! Parabéns. É simples assim.

Larissa deixou-se cair no chão, chorando copiosamente, aos soluços, muito alto. Por uma fração de segundo ela viu efetivamente o velho Schlikmann avançando para ela, aquele pau maldito em riste, o sorriso sarcástico de superioridade, o olhar lúbrico de fauno em cio. O grito veio lá do fundo de sua alma. E não foi um grito de medo! Como Gládis lhe ensinara, de repente toda a sua revolta, sua indignação, sua raiva daquele velho desgraçado tinham encontrado caminho para o mundo exterior através de sua garganta.

Gládis nada fez, deu tempo para que a criança abusada de 12 anos pudesse se libertar através do choro convulsivo da criança de 23. Que, neste exato momento, estava dando passagem a uma mulher adulta de 23 anos pela primeira vez!

Quando enfim a crise de choro passou, Larissa conseguiu falar:

– Meu Deus, o que foi isso? Que grito horroroso! Como é que eu fiz isso? De onde eu arranjei tanta força na voz?

– Da sua raiva, mocinha. De sua santa e abençoada raiva. Agora você está pronta para a parte final do nosso treino de hoje. Agora eu vou ensinar você a pisar em pé, dar cotovelada em plexo solar e em nariz. E vou ensinar você a derrubar um homem com um mínimo de esforço. E aí você vai estar pronta para a sua primeira grande ação de correção.

– Como assim, correção...
– Ah, minha filha, você pode ser um anjinho, mas sua instrutora aqui é uma capeta das piores, sua amiga não é boazinha como você, não sabe perdoar. E está com um filho da puta atravessado na garganta desde que você lhe contou as chantagens e os estupros de um certo velho porco.

– Nossa, Gládis! Você vai bater nele?

– Não, eu não!

– Puxa, do jeito que você falou, até fiquei com receio que você...

– Eu não vou bater nele, mas outra pessoa vai, Fofinha.

– Outra pessoa? Nossa, quem?

Você, Dona Larissa Silva. Você!

CONTINUA

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

LUA  OCULTA – 37   
MILTON MACIEL  

37 – DEFESA PESSOAL FEMININA 
Fim do cap. 36: "– Mas eu repito: só depende dela. Se ela quiser e peitar o desafio, então a coisa pode dar certo. Claro, não vai ser fácil para nenhum dos dois, têm uma cidade inteira para enfrentar e domar. Mas não é impossível..."

– Ai, Deus te ouça, Gládis. Acho que, se o Leon se entregar a um amor de verdade, então ele vai crescer muito. Veja, tanto ele como eu mesma, da maneira que fomos criados, não tivemos que enfrentar a vida, o mundo do lado de fora. Por isso eu sou – e ele também é – infantil em muitas coisas, reconheço. Mas a Maria Amália vai me curar, tenho certeza. Disso e das choradeiras infantis.

– Não vai! Não vai, Fofinha! Se ela cortar suas choradinhas, eu já falei que mando o sapatão de flamenco na cabeça dela.

– Mas, Gládis, então eu não vou crescer nunca?

– Vai, sim. Vai. Fofinha, fique tranquila. Mas não pode deixar de ser você mesma. Assim, exatamente assim como você é, exatamente assim como a gente ama você.

Naturalmente, o que Gládis queria, dizendo de propósito essas últimas palavras, aconteceu. Imediatamente Larissa, por mais que se esforçasse para evitar, a ponto de ficar quase sem fôlego, umedeceu copiosamente os olhos azuis, daquela cor de água-marinha que ninguém mais podia ter. Gládis comemorou:

– Está vendo só, mamita, que coisa mais querida? Tem outra igual no mundo?

– Não tem, não, hijita. Essa aí é única.

– Uma puta duma fofura, isso é o que ela é. E aí vem uma psicóloga e corta esse barato? Gente eu acho que é melhor suspender a Maria Amália pra Fofinha.

– Não, Paula, pelo amor de Deus, NÃO!!! Eu preciso muito de análise, sempre quis fazer, por favor, não! Não!

– Tá bom, menina, tá bom, não precisa entrar em pânico! Então você vai buscar a mulher na segunda com a Jeniffer, pronto. Mas se depois você parar com as suas choradinhas, eu apoio a Gládis quando mandar o sapatão nela. E eu sou capaz de ajudar, calço uma bota cano-alto, dessas de gaúcho de CTG, e meto-lhe nos cornos, com espora e tudo.

– Gente, que horror...

– Fique tranquila, minha filha. Tudo vai dar certo para você, a Maria Amália é maravilhosa. E eu espero, do fundo do coração, que tudo dê certo para a Jeniffer, torço demais por essa menina, não foi à toa que eu me empenhei tanto em trazê-la para o nosso grupo, lá na Teles de Ribeirão. Sei toda a fibra que ela tem, toda a luta que ela empreende quase todo dia contra o racismo. E. somado a isso, contra o machismo, que é bem pior quando se é negra e negra linda demais, como ela. E, para maior dos pecados, com aquele bundão de cinema, aquelas coxas e pernas lustrosas. Os caras ficam enlouquecidos e falam besteira pra ela a toda hora. Coisas que ofendem, que rebaixam...

– Isso mesmo, mamita. Eu ouvi essas nojeiras duas vezes. Eu não estava junto com ela, mas estava perto o suficiente para ouvir. Na primeira, dois caras chegaram onde ela estava e um deles disse algo assim,bem alto pra todo mundo ouvir:

– Essa é a empregadosa que eu pedi a Deus! Botava a esfregar o chão, pelada, com esse bundão pra cima e depois... crau!

O outro aproveitou também:

– Pois eu me esbaldava com esse bocão no boquete todo santo dia.

– E ela? – perguntou Larissa, horrorizada.

– Ficou parada, não disse nada, olhou pro chão com uma carinha de desespero, de cansada, os olhos cheios de lágrimas.

– E ela não ficou com raiva?

– Não precisou, Paula.

– Como não precisou?

– Porque eu fiquei! E aí parti pra cima dos dois, que não esperavam por uma louca saltando do nada em cima deles. Dei uma voadora no primeiro, joguei o cara no chão esparramado, gemendo. E aí peguei o outro de jeito, meti o tênis na boca dele, que eu queria era quebrar todos os dentes do desgraçado do tal boquete. Uma pena que eu não estivesse nem de sapato de salto. O cara teve muita sorte, mas, mesmo assim, acho que o dentista dele teve também.
  
– Mas e o primeiro cara, não levantou e reagiu?

– Levantou porque eu esperei que ele levantasse. E aí, é claro, como ele ia dar o tal do crau na Jenny por trás, eu parti pra cima do saco dele. Moí, menina, com que gosto! E fiz ele ficar de joelhos, meio que vomitando, suspendi o filho da puta pelo cinto e passei a chutar o traseiro dele com toda a força. Cada chute que eu dava, eu gritava: Crau! Crau! Crau! E aí, só aí, notei que o povo todo aplaudia e gritava crau junto comigo. Foi lindo!

– Menina, mas isso foi em lugar tão público assim?

– No Shopping Ribeirão, minha filha, piso térreo, o que você acha?

– Nossa, Carmen! Que coragem da Gládis...

– Minha hijita é doida da cabeça, Fofinha. E quer ver essa doidice aparecer, é só agredirem uma mulher e ela ficar sabendo.

– Sim, eu vi, foi isso mesmo o que aconteceu no meu caso...

– Pois é, então você vê que ela não fez isso só no seu caso. Eu perdi a conta das encrencas em que ela se meteu por coisas assim. E isso muito antes de ela saber lutar direito. Ela sempre praticou defesa pessoal, desde os onze anos. Então já podia se defender. Mas foi só depois que aprendeu as técnicas com o Celso que ela aprendeu a atacar também. E aí não parou mais.

– Mas você mencionou duas ocasiões em que você estava por perto da Jeniffer. Qual foi a outra?

– Na outra vez, Paula, o agressor foi um homem de cor, um negro alto e forte. Na calçada, em frente a uma lanchonete, o cara deve ter tarado com o bundão da Jenny, chegou por trás dela, deu um encoxada e pegou os dois peitos dela com as mãos.

– E aí, naturalmente, você arrancou os dois braços do cara pela boca, não foi? 

– Eu? Não fiz absolutamente nada!  

– Ué, mas por que isso?

– Porque desta vez a Jenny é que fez. Refeita do susto, ela fez o que é padrão no nosso treinamento,  nesses casos de ataque sexual por trás. A primeira coisa é dar um pisão com toda força no pé do cara. A Jenny estava de salto alto e bateu com toda a força, multiplicada por toda a raiva, a indignação, na altura dos dedos do pé do idiota. Aí a sequência e muito rápida. O cara solta a gente e começa a berrar feito um alucinado, a dor é de deixar qualquer um louco, ele não consegue fazer mais nada, não consegue reagir, não consegue agredir. A tendência é tentar se curvar, pegar o pé com a mão, tentar entender o que está acontecendo, é uma reação automática. Então a gente ataca usando o cotovelo, só o cotovelo.

– E faz o que?

– Bem, Fofinha, o primeiro golpe é com a ponta do cotovelo no plexo solar, tira a respiração do cara na mesma hora, ele fica roxo, desesperado de falta de ar. Aí a gente aproveita e dá o segundo, com o cotovelo também, bem no osso do nariz, pra quebrar mesmo. E aí é uma meleira nojenta, o cara começa a botar sangue pelo nariz que parece uma cachoeira. E claro, está completamente vencido. Não consegue fazer mais nada além de gritar de dor, pode ter um revólver em cada bolso que não vai poder usar. O contra-ataque da gente é fulminante. Lona! E olhe que a gente ficou o tempo inteiro na frente do cara, não saiu da posição em que ele nos atacou.

– Nossa, Gládis, que coisa impressionante. E dizer que tudo começa com o pé...

– Isso mesmo, Fofinha. Com certeza você já deu uma boa topada numa pedra com o pé, não deu? Ou já passou pela desgraça de alguma coisa pesada cair sobre o seu pé. Lembra como foi a dor?

– A topada. É horrível! Perdi a conta, quando era moleca eu vivia me arrebentando assim, chegava a sangrar  o tênis, minha mãe ficava uma fera, me socava, porque era tênis de grife.

– Jumenta!

– Não ofenda uma jeguinha inocente, Paula! Pois então vocês imaginem algo muito, muito pior que uma topada que arrasa dedão. Num pisão com toda a força – e a força vai ser a da coxa, de novo – se o sapato da gente é sem salto, amassa todos os dedos do pé do agressor. As unhas se soltam nas pontas, o sangramento é enorme. Mas o principal, a dor, é de deixar qualquer um doido, totalmente fora de controle. E, se o sapato que estamos usando é de salto alto e fino, então o estrago é menor, mas o salto fura o sapato, por mais que seja de couro grosso, o que é muito raro hoje em dia. E fura um ou dois dedos do sujeito. Fratura exposta, hemorragia. Olha, é bem feio de se ver.

– Mas mais do que justo pro canalha – completou Carmen.

– Puxa, que coisa incrível, gente. Está aí uma coisa que eu gostaria de aprender! É uma defesa superfácil e não precisa fazer força, nem se atracar com o inimigo.

– Oba, parabéns, Fofinha, é pra já! Pessoal, estou levando a Fofinha comigo, está na hora do almoço, a gente vai pra casa. É hoje que ela começa a aprender. Na volta a gente passa em algum lugar e engole um sanduíche qualquer em cinco minutos. Vamos lá, aprendiz, você tem duas horas para a sua primeira lição, pode ser, mamita?

– Claro, minhas filhas, vocês podem voltar quando der, não se apressem. Se o Celso souber por que razão vocês não estão no serviço quando ele chegar de tarde, vai dar pulos de alegria.

Foi no seu próprio apartamento que Larissa recebeu sua primeira aula de autodefesa feminina. Acreditando que se deve malhar o ferro quando ele está quente, Gládis aproveitou o entusiasmo da amiga, ao ouvir o relato da defesa de Jenny, e a levou imediatamente para lá.

Ficaram duas horas trabalhando sem parar. De treinamento de defesa, a rigor, somente a meia hora final. Todo o resto do tempo Gládis levou para conseguir explicar os fundamentos todos para Larissa. E isso era equivalente a dar a primeira aula de feminismo para aquela garota tão inocente e inexperiente, blindada que fora das coisas do mundo por uma educação em que a estúpida da sua mãe a fizera escrava da beleza absurda com que ela havia nascido.

Da condição feminina, Larissa só havia conhecido esse lado, o da beleza, porém distorcido e exacerbado além de toda normalidade possível. Era um verdadeiro paradoxo que não tivesse se tornado uma miserável de uma narcisista. Mas, para Gládis, era fácil de entender por que não. Uma, que sua menina era uma alma nobre demais para ser narcisista. Outra, que ela crescera detestando sua beleza excessiva, à qual atribuía a causa de todos os seus sofrimentos. O resultado havia sido aquela criaturinha totalmente incomum, que permanecera criança em muitos aspectos da vida, preservando assim aquela pureza infantil, que encantava todas as pessoas, as quais, de forma quase que automática, acabavam por chamá-la de anjo. Era bonita demais, mas não tinha sex appeal. Era sensual, mas não era sexual.

Ela, Gládis, e também Jeniffer, eram verdadeiros poços de sex appeal, eram sensuais e eram sexuais ao extremo. Já Paula e Mamita ficavam num meio termo. Mas a Fofinha era diferente, “Não atrai os homens pelos bagos”, como lhe segredara Paula, numa tarde em que filosofavam sobre a loirinha:

– Ela tem um corpo tão perfeito quanto o seu, Gládis, praticamente as mesmas medidas. Mas não provoca nos homens o impacto que você provoca. O que é que atrai os caras na Larissa, me diga?

– Ah, o rosto, claro. É o rosto mais perfeito que a gente já viu, não é?

– Certo, é isso mesmo, Gládis. E como é o rosto dela, além de ser, quem sabe, o mais bonito do mundo?

– Ah, já percebo onde você quer chegar, Paula. Sim tem razão: o rosto dela é infantil, é angelical.

– Pois é isso, menina. A gente olha praquela carinha e vê o anjo que ela é de verdade, não é só na aparência. E isso provoca na gente um puta acesso de...

– Ternura!

– É isso, exatamente isso. Então a gente baba por ela. Quer a gente seja mulher, quer seja homem. Só que a mulher para sentir isso por ela, tem que se livrar do sentimento de inveja da beleza dela. E a maioria não consegue, é instintivo. Já o homem olha para o anjo e não sente tesão. Vai ver que é verdade que anjo não tem sexo. O que deve ser um pé no saco. Não do anjo, que não tem saco nem periquita. Eu é que não quero ser anjo jamais, em toda a eternidade.

– É, Paula, você está muito certa nessa sua análise. A beleza da Fofinha só deve ser desconcertante para caras muito pedófilos.

– Falou e disse, irmãzinha! Só pros filhos da puta dos papa-anjos. Os outros homens vão preferir cantar ou estuprar você ou a Jeniffer em primeiro lugar. Depois pegam sua mamita, com aquele bocão maravilhoso dela e a mim, que não sou de se jogar fora. Por último eles vão tomar cerveja e ficar olhando fascinados pra carinha da Fofa, sonhando casar com ela.

– Ha, ha, ha! Paula, você ás vezes me surpreende. Olha, muitas vezes você não fica devendo nada à Maria Amália. Sua análise, agora, está perfeita.

– Claro que está. Eles comem a gente e casam com a Larissa. E depois corneiam a Larissa com a gente, todos os dias, se a gente deixar. Se não deixar, eles corneiam a Larissa com a gente do mesmo jeito, só que na base da punheta mesmo.

– Ha, ha, ha, menina. Mas você é demais! A boquinha suja mais filosófica do planeta. Te adoro, Paulinha.

– Eu aposto que nem você, nem a Jenny pensaram nisto que eu vou falar, mas veja bem: você duas devem ter arrancado milhões de litros de leite dos caras, quando eles praticam auto-ordenha no banheiro deles, pensando em vocês.

Gládis teve um ataque de riso, mal conseguindo dizer:

– Menos, Paula, menos...

– E não é só isso. Muito filho da puta desses deve ter transado com a mulher ou a namorada dele, imaginando que estava enrabando você ou a Jenny. Vai dizer que não?

– Bom aí já é com você e sua imaginação fértil, Paulinha. Mas tem homem que é bem capaz, sim... Mas tem mulher também...

– Claro, muitas vezes para ficar de perna aberta, enquanto aquele bolha ruim de cama pula e arqueja entre elas, só mesmo pensando no Brad Pitt.

Lembrando de toda essa conversa, Gládis via agora que sua Fofinha não tinha conhecido o machismo de forma tão exacerbada como a imensa maioria das mulheres conhecem, desde menininhas.

A beleza extrema a blindara com uma espécie de proteção. Ela era um bibelô para ser admirado. E não tinha apelo sexual, tanto que nunca tivera qualquer experiência de tentativa de abuso ou assédio sexual na vida. A única exceção, contudo, tivera um peso esmagador: os estupros semanais praticados pelo nojento Schlikmann, por força de chantagem, durante um ano.

Também a sua experiência de iniciação sexual tinha sido a melhor possível,  pois Leon Schlikmann lhe servira de companheirinho de jogos infantis primeiro e, depois, de parceirinho sexual de uma forma natural, espontânea, sem grilos.

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