quarta-feira, 26 de agosto de 2015

FOR UNTO US A CHILD IS BORN (Pois para nós nasce uma criança)
Georg Friedrich Händel (1685-1759)
Compositor alemão, naturalizado inglês em 1815, com o nome de George FrIderik Handel

Este coral fantástico, para mim a PERFEIÇÃO absoluta, é parte do Oratório O MESSIAS, composto em 1741, do qual também faz parte o muito mais conhecido coral “Hallelujah” (Aleluia). Aqui na apresentação absolutamente perfeita da London Symphony Orchestra, sob a regência de Sir Collin Davis, e do coro Tenebrae. Simplesmente antológica!

Acrescento a letra original em inglês (para permitir que se entenda o que o coral canta), para a qual faço uma tradução para o português. A letra não é original do libretista, mas é uma cópia fiel de Isaias 9:6-7.
FOR UNTO US A CHILD IS BORN
For unto us a child is born (Pois para nós nasce uma criança)
Unto us a son is given (Para nós um filho é dado)
And the government shall be upon his shoulders (E o governo estará sobre seus ombros)
And his name shall be called (E seu nome será chamado)
Wonderful (maravilhoso)
Counselor (conselheiro)
The mighty God (o Deus poderoso)
The everlasting father (O Pai eterno)
The prince of Peace (O príncipe da paz)
(Note-se que o inglês é do século XVIII, com alguns arcaísmos, como a forma Unto us e o uso do shall para a terceira pessoa, onde hoje se usa o will.
Handel afirmou que a composição desse enorme oratório em apenas 14 dias foi feita em um tal estado alterado de consciência que ele não podia afirmar se estava no seu corpo ou fora dele. Para quem quiser conhecer mais sobre esse fenômeno, coloquei um curto texto no meu blog, já publicado em livro com o nome COMPONDO, que pode ser acessado no endereço

:
http://miltonmaciel.blogspot.com.br/…/compondo-miltonmaciel…


COMPONDO 
MILTON MACIEL

1841, Londres. É noite alta na grande mansão do maestro George Friderik Handel, o grande compositor nascido na Alemanha como George Friedrich Händel e naturalizado inglês desde 1815. Dois homens conversam, angustiados:
– Mr. Johan, não sei mais o que fazer. O Mestre continua sem me atender, é como se não me ouvisse falar ou bater à porta. Por isso lhe pedi que viesse aqui.
–Ele está trancado lá e não responde? Será que ele teve um desmaio, uma síncope, meu Deus?!
– Não, Mr. Johann, não é isso, ele está muito vivo, o piano não pára de soar. Ele compõe sem parar, há duas semanas, obsessivamente...
– Como? Você me diz que ele está trancado lá há duas semanas, sem sair, só compondo?
– Senhor, parece-me que o Mestre está possuído por alguma força estranha e tenho certeza que ele não saiu nenhuma vez da grande sala do piano.
– Mas, James, como pode ser isso? Se ele não sai e não deixa ninguém entrar, como é que faz para se alimentar? E para beber água, tomar um chá, ir ao banheiro?
– Não esqueça. Mr. Johann, que ali há um banheiro interno, com água de excelente qualidade.
– Sim, é verdade, ia esquecendo. Mas... e a comida? Como pode ele estar há duas semanas sem comer nada, se é um grande garfo e sua gordura excessiva é uma das nossas preocupações com sua saúde? Então ele se serve sozinho, de madrugada...
– Impossível, senhor. Mrs. Anthony, a cozinheira, perceberia facilmente. Isso não aconteceu.
– Mas então a coisa toda é muito séria! Deixe-me tentar eu mesmo, ele é meu professor e meu pai foi sempre seu secretário e melhor amigo. E eu, você bem sabe, sou a única pessoa que ele aceita ensinar, exceto as filhas do Príncipe de Gales.
Johann Schmidt bateu temeroso à porta da sala, anunciando-se. Nenhuma resposta, mas o piano não parava de soar, com uma melodia tão perfeita que o aluno sentiu-se comover. Colando o ouvido à porta, pôde ouvir a voz do Mestre. E percebeu que George Handel falava frases entrecortadas e chorava emocionado. Então, subitamente, tudo cessou.
No instante seguinte, a porta se abriu, e mestre Handel surgiu radioso, com um calhamaço de folhas na mão. Estava visivelmente mais magro, com uma barba crescida de vários dias, cheirava levemente a suor, tinha os olhos vermelhos, mas um sorriso de êxtase marcava-lhe o semblante. Vendo o aluno, falou-lhe, contente:
– Johann! Que bom que é você. Tome, pegue este material, são partituras de um oratório que acabei de compor. Chama-se O MESSIAS. Trabalhei nele por 24 dias, é enorme. E, nestas duas últimas semanas, não consegui parar para fazer qualquer outra coisa. Fiquei como que num estado de transe permanente. Não posso dizer se estava no meu corpo ou fora dele. Esta última parte aqui é o coro ALELUIA. Leve tudo para Sir John, diga-lhe para preparar a publicação. Mas, por esta parte especificamente, eu não quero um só tostão de direito autoral. Esta obra NÃO É MINHA!
E, deixando o discípulo atônito, um alegre e mais delgado mestre Handel correu a banhar-se e a fazer a refeição que quebraria seu longo jejum. (O fato é verídico!)

Este texto foi publicado no livro LETRAS ASSOCIADAS Vol 1, pela Associação das Letras, de Joinville, SC.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

A SORTE GRANDE  
MILTON  MACIEL  

– Pois é, esta aconteceu com o Conrado, meu primo, que você conhece.

– O marido da Yvone?

– Esse mesmo. Você conhece a mulher dele?

– Quem não conhece? Bom, me desculpe, ele é seu primo, mas... que mulher gostosa que ele tem! Que coisa mais linda!

– Não tem nada que se desculpar. Eu, que sou primo, também acho! Ela é linda demais! Mas não é só isso. Você precisa ver o caráter dessa mulher. É coisa muito séria, amigo. Se o Conrado hoje está bem de vida, agradeça a ela, que tem pulso firme nos negócios. Mas isso é outro assunto, eu estou querendo contar é a experiência paranormal do Conrado.

– Paranormal? Puxa, eu gosto disso. Como foi?

– Foi coisa de uns 9 anos atrás.. O Conrado estava dormindo, era ainda estudante de administração. De repente ele acordou sentindo um nítido puxão no pé. E aí levou o maior susto da vida dele. Ao pé da cama estava o Tio Cirilo, o falecido irmão do pai dele e do meu pai. Ele sorria para o Conrado e lhe mostrava um livro bem velho que ele tinha na mão. O nome do autor era Guerra Junqueiro, o do livro não dava para ver.

– Um Morto! Papagaio, eu saia correndo, acho que aos berros.

– É, mas o Conrado aguentou firme. Começa que ele é meio lento pra reagir a qualquer coisa. E depois, ele ficou foi contente, porque a gente adorava o Tio Cirilo.  Então ele não teve medo e chegou a sentar na cama pra puxar conversa. Mas o tio só apontou para a estante de livros da sala, bem pra parte de cima, e logo desapareceu.  Aí o Conrado achou que era um sonho, que ele estava fazendo era confusão e se espichou pra dormir de novo. Horas depois, quando ele acordou, lembrou imediatamente do sonho e foi até à sala ver a estante. Pois não é que, na prateleira de cima, onde havia vários livros velhos que foram do papai e do tio Cirilo, ele encontra o tal livro do Guerra Junqueiro!

– Caramba, mas que sonho mais estranho!

– Pois isso não é nada. O Conrado conta que, quando ele pegou o livro, de dentro saltou um papel. Era um volante de loteria, de Mega Sena. O tio era um apostador inveterado, nunca ganhou nada, mas apostava toda semana. Pois o volante estava todo marcado! Aí o Conrado pirou. Na certa o tio tinha vindo mesmo, em espírito ou em sonho, dar a dica pro sobrinho. Na certa, aqueles eram os seis números que iam sair.

E o sorteio era naquela quarta-feira mesmo. Ele correu para a lotérica do bairro e fez uma aposta simples, não precisava gastar mais nada. E aí ele passou o resto da tarde e o começo da noite no maior nervosismo. Até que conseguiu saber do resultado.

– E ele ganhou?

– Que nada, não acertou nenhum número!

– Puxa, mas que coisa mais sem graça! De que adiantou essa palhaçada, então?

 – De que adiantou? Pois eu já lhe digo. A lotérica era num shopping, ficava aberta até às 10 da noite. O sorteio era às 8. Então ele ficou pelo shopping mesmo, agitado, tremendo, fazendo as contas do que ia comprar com o dinheiro. A toda hora ele ia à lotérica e infernizava a vida da mocinha que fez o jogo dele, para ver se já tinha o resultado do sorteio. Quando chegou e a moça mostrou pra ele, o Conrado começou a passar mal.

A moça o socorreu, abanou, trouxe um copo d’água, até que ele conseguiu falar. Aí ele contou pra ela a história do sonho com o tio, da certeza que ia ganhar, da tremenda decepção que estava amargando. De repente não se aguentou mais e caiu num choro sentido. A mocinha ficou firme ali, tratando de acalmar o rapaz, até conseguir que ele se conformasse.

– Pomba, que decepção, mesmo. Que sonho mais idiota! Tanta expectativa e no fim ele não ganhou nada! 

– Engano seu. Ele ganhou sim, ganhou a Sorte Grande naquela noite!

– Ué, mas, como assim, ganhou a Sorte Grande? Pois se você mesmo disse que ele não acertou nenhum número.

– Ah, mas você já vai entender. Sabe a mocinha que cuidou dele, que tinha 18 aninhos e estava fazendo bico pra ajudar a pagar a faculdade? Pois é, o nome dela era Yvone!

– A Yvone?!!!

– Pois é, ela mesma! E então? Ele ganhou ou não ganhou a Sorte Grande? Mas se segure, que agora vem o mais impressionante: Quando tudo já estava mais calmo, quando a lotérica fechou e a moça ia pegar condução pra casa, o Conrado quis retribuir a atenção dela e convidou-a para jantarem ali mesmo na Praça de Alimentação, disse que a levaria para casa de carro, que ele tinha um Chevette velho meio descascado, mas que andava direitinho. Aí, enquanto esperavam que os pratos ficassem prontos, o Conrado lembrou que ainda tinha o volante do livro no bolso. Tirou e mostrou pra moça. Aí foi ela que estranhou:

– Ué, você já sabia o meu nome, é? Você escreveu ele aqui, na parte de trás. Sua caneta está ruinzinha, está um pouco apagado, mas é meu nome.

E o Conrado levou o maior susto de novo! De fato, no verso do volante estava gravado, com caneta de tinta roxa, bem grande: YVONE.  Pois sabe da maior? Acredite se quiser. Lá em casa só quem usava tinta roxa era o Tio Cirilo. E o Conrado não teve a menor dúvida em reconhecer aquela caligrafia tão sua conhecida: a letra era DO TIO! O resto você já sabe ou pode imaginar. Eles interpretaram aquilo como um sinal, não se largaram nunca mais. Hoje estão aí, formados, casados, com filhos. E o Conrado, graças ao Tio Cirilo, não importa saber de que jeito, naquela noite tirou a Sorte Grande!

terça-feira, 11 de agosto de 2015

HORTA VERTICAL SOBRE PISO DE CIMENTO - 1 
MILTON MACIEL

Na entrada da minha casa, nos dois lados da passagem de carro para a garagem, instalei um horta orgânica muito diferente:
1) ela está toda sobre o piso de cimento
2) ela tem uma instalação VERTICAL em garrafas PET, que produz hortaliças em geral e morangos em especial.

Neste momento estou com a produção de morangos (200 pés em 200 garrafas) no início e a de tomates mais adiantada, como se pode ver nas fotos.

Nas fotos abaixo, pode-se ver que os tomateiros foram plantados em cestos plásticos, dentro do qual compartilham seu espaço com cenouras e camomila. Nos dois lados dos cestos há vários sacos para muda, de plástico preto, com várias hortícolas e condimentares em plena produção: acelgas verdadeiras, chicória (escarola), rúcula, almeirão, salsas lisa e crespa, cebolinha, alho-porró, cerefólio, endro. manjericão verde e manjericão roxo. Como os cestos de tomate, os sacos também estão sobre o piso de cimento. Isso prova que você não precisa de um pedaço de TERRA para produzir sua comida saudável sem venenos.



Abaixo um close dos morangos em início de frutificação:




Este é um conceito revolucionário: HORTA VERTICAL EM TORRES. Os 200 pés de morango, montados em 200 garrafas PET recortadas, ocupam no piso uma área total de

5 m x 40 centímetros = 2 METROS QUADRADOS!

E, potencialmente, ao longo de seu ciclo produtivo de vários meses, eles podem produzir muito mais que 100 QUILOS de morangos.

 Contudo, na VERTICAL, eles ocupam...

5 m x 2 metros = 10 metros quadrados, ao longo da cerca com meu vizinho.

Em breve terei pronto um novo livro, um manual prático em que ensino como qualquer pessoa pode fazer tudo isso que eu faço em sua casa ou até mesmo seu apartamento. O nome do livro é

MANUAL PRATICO DA HORTA VERTICAL

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

A PRIMEIRA PALMADA A GENTE NÃO ESQUECE  
MILTON  MACIEL

Nasci como todos nascem, hoje eu sei. Mas com uma grande diferença: tive imediata consciência do que acontecia. Vou explicar. Foi assim:

A primeira coisa de que recordo, ainda de olhos fechados, foi aquela aguda sensação de frio. Quando abri os olhos para ver o que se passava, fui violentamente ofuscado por um festival de luzes feéricas. Fechei os olhos imediatamente, reação defensiva automática. Foi quando senti aquele golpe traiçoeiro, que foi vibrado por alguém em minhas costas, mais exatamente nas nádegas. Nunca mais o esqueci!

Fui obrigado a abrir os olhos novamente e a me adaptar à dor e ao ofuscamento que a luz daquele ambiente provocava. E imediatamente bradei, em protesto:

– Que é isso?!

Mas o som que escutei não foi de minha voz, porém algo que me lembrou um horrível miado de tigre. Nesse momento, para meu completo pavor, percebi que estava suspenso no ar. E de cabeça para baixo! Um gigante mascarado me suspendia pelos pés e era ele o agressor que havia batido em meu traseiro.

Então notei, horrorizado, que havia sangue, muito sangue abaixo de mim. E que daquele lugar partia uma espécie de corda grossa arroxeada que parecia entrar em minha barriga. Protestei outra vez em altos brados e só então o gigante parou de bater em minha derrière.

Vi então que havia mais gigantes naquela estranha sala. Uma dessas figuras me apanhou, pegou alguma coisa e cortou a corda arroxeada perto da minha barriga. Aí ela me depositou em uma espécie de maca ou algo assim, sei lá. Era uma gigante-mulher. Foi aí que passei a primeira grande vergonha da minha vida!

Tive a clara consciência de que estava nu, completamente pelado na frente de uma mulher. Tentei me erguer na maca para ver se achava algo com que pudesse me cobrir. Mas, misteriosamente, eu não consegui mover o corpo para cima. Aí a mulher enorme não só viu as minhas partes baixas, como começou a passar as mãos nelas e no resto do meu corpo, usando uma espécie de pano para retirar alguma coisa viscosa que havia grudado em minha pele.

Devo ter ficado vermelho de vergonha. Felizmente a enorme criatura pareceu ter percebido o meu embaraço, porque tratou logo de me cobrir e depois embrulhar em uns panos. E me levou no colo para um lugar onde me depuseram num leito aquecido. Finalmente a sensação de frio passou! Na porta do lugar havia uma placa em idioma estrangeiro, onde estava grafada a estranhíssima palavra Berçário, lembro disso perfeitamente até hoje.


Mas aí começou o pior. De repente me veio a maior sensação de fome e de sede. Mas fome extrema, cruel, insuportável. Comecei a gritar de novo, pedindo comida. Lembro-me de ter chamado em altos brados pelo garçom. Mas, outra vez, tudo o que eu consegui escutar foi aquele horroroso miado de tigre que atormentava os meus delicados tímpanos com indizível crueldade.

Ah, como eu ansiava ali por uma variada tábua de queijos, um bom vinho, uma baguette fatiadinha. Eu queria meu Brie, meu Camembert, um Gorgonzola italiano, um Merlot não muito envelhecido, pouco mais de vinte anos, safra 1743. E uma baguette, uma enorme baguette quentinha, hummm.

De novo a telepatia funcionou: como se lesse meu pensamento, uma nova gigante mulher colocou algo em minha boca que eu, sem entender bem por que, comecei a sugar avidamente. Mas, Grand Dieu, era ÁGUA! Foi choque demais. Desmaiei imediatamente e só lembro de ter recobrado a consciência muito tempo depois, quando era uma espécie de bebê roliço que estava aprendendo a caminhar.

Mas foi só para passar pelo segundo horror da minha vida: os gigantes daquele novo ambiente me chamavam por um nome errado. Errado e horroroso: Sebastião. Tiãozinho. Une chose térrible! Mas isso eu conto outra hora. Au revoir.

domingo, 2 de agosto de 2015

AS AMANTES DO PORTUGUÊS   
MILTON  MACIEL

O português era conhecido em todo o bairro, o que era simplesmente um contracenso, porque ele havia chegado ali há menos de seis meses, tempo que levava de vida no Brasil. Mas Manoel José era mesmo um homem muito diferente. Diferente e diferenciado. A começar pela profissão: encadernador e restaurador de livros. E um senhor encadernador!

Pouco depois de se estabelecer com sua pequena oficina, foi oferecer seus serviços à biblioteca municipal. Levou amostras e fotografias. Todas as bibliotecárias adoraram e logo Manoel José teve muitas encomendas. Ainda bem que ele trabalhava mesmo muito bem, porque o que todas as bibliotecárias adoraram foi o Manoel José, não as suas amostras e fotografias.

Acontece que o encadernador português era um homem absurdamente bonito. Alto, forte, músculos bem delineados, porte atlético mais para o delgado, pele alva e cabelos pretos, longos e encaracolados ao natural E tinha os olhos... Ah, os olhos do português eram azuis claríssimos, como água-marinha, coisa raríssima de se ver numa pessoa.

As mulheres ficavam loucas pelo português, não só as bibliotecárias. Todas. Por isso ele ficou imediatamente conhecido no bairro. Porque chamava atenção demais onde aparecesse. Porque as mulheres se derretiam ou se excitavam. Porque os homens dessas mulheres ficavam possessos de ciúmes.

Logo correu o frisson pelo bairro, as mulheres dizendo que ele era o homem mais lindo do mundo. Os homens, naturalmente, dizendo que ele era viado. (Isso mesmo, com i, para não confundir com o Bambi e sua família). lia). Todo homem com inveja de homem bonito diz que o cara é viado. Isso é clássico, chega a ser proverbial. Bonitão? É viado! A mulherada corre atrás? É viado...

Pois a mulherada corria atrás do português mais que mosquito da dengue atrás de calcanhar. E o português não era viado coisíssima nenhuma. Pelo contrário, era muito do homem. Mas, como não existe nada perfeito neste mundo incompleto, também o português tinha um defeito. Ele era CASADO!

Não, o problema não era ele ser casado. Para isso a mulherada não ligava. Uma corna a mais, uma corna a menos no mundo, não fazia diferença. A mulher dele que se lascasse, a maldita, por que só ela podia comer do bom e do melhor?

O problema verdadeiro, onde a coisa pegava, é que o Manoel José era FIEL! Por mais que fosse cantado, ele apenas reagia rindo, levava na brincadeira, desconversava, falava nas crianças e na esposa – Desgraçada!

Alguns poucos homens, uns 5 por cento,  se aproximaram, não exatamente para propor amizade ou defendê-lo das fofocas dos outros homens. Mas para ver se o levavam para a prevaricação. Faziam convites e ofereciam, desde umas lolitinhas fogosas até levar o portuga para a zona mesmo. Nada feito. Ele ria, desconversava, falava das crianças e da esposa – Hum, devia ser muito gostosa, precisavam chegar junto dessa portuguesa e conferir se ela afrouxava! Mas não teve jeito, o português não prevaricou. Logo, era viado mesmo! Levaram a confirmação para os outros 95 por cento. Fez-se a unanimidade. Que, segundo Nelson Rodrigues, é sempre burra.

As mulheres não se conformavam com a falta de atenção daquele Adônis. Suspiravam pelo Apolo, faziam propostas indecentes, umas passavam-lhe a mão na bunda, outras preferiam ir direto no vizinho da bunda, o vizinho da frente. Mas o português se esquivava, sempre gentil, ria, desconversava, falava das crianças e da esposa – Maledeta! bruxa, sarnenta!

E a mulherada já sabia, pelo relato das afoitas que apalparam o tal vizinho da frente, que elas encontraram substância, que ali havia coisa de respeito, consistente, avantajada, deitando por terra os outros rumores que os homens despeitados vivam espalhando: ‘Ébroxa!” Tava na cara – que dizer, na mão – que não era. “É pirulitinho, coisinha de nada!”Não era!

Desgraçado! Bonito demais, forte demais, casado, fiel (viado!) bem dotado (f da p!), grande profissional, honesto (p q p!). Aquele maldito tinha que ter um ponto fraco. Todos têm. Não dava nem para fazer piada de português com o sujeito. Era culto, inteligente, bem educado, tinha casa própria – e boa – não chegara de Portugal sem dinheiro como os outros, uma mão na frente, outra atrás.

Finalmente os homens e as mulheres chegaram a uma conclusão sobre qual poderia ser o fraco daquele homem tão tranquilo e, ao que tudo indicava, tão fiel. Agora sim! Estava na cara, o safado era um bom come-quieto! Não queria nada com elas, não aceitava transar com as que os homens lhe ofereciam porque... TINHA AMANTES! Essa era a explicação, só podia ser: as amantes do português! Quantas seriam? Muitas, é lógico. Um homem como ele!...

Vivia saindo de casa. Viajava quase toda semana. Dizia que ia a trabalho. A mulher, idiota, além de uma nojenta metida, acreditava. Imbecil! Ora, o português ia prevaricar, isso sim! Dessa forma, nem aquela tapada, nem os espertos vizinhos e vizinhas podiam descobrir nada. Safado! Sem-vergonha! Falso! 

Então era isso! E esse boato, repetido por mulheres e homens sem cessar, acabou virando uma verdade universal. O homem era lindo como um anjo, mas era falso como uma cobra. As encomendas secaram na biblioteca. Depois na Universidade, poucas faculdades lhe sobraram como clientes. As bibliotecárias estavam ofendidíssimas. Mas isso não fez diferença alguma, o homem saía, ia para outros bairros, viajava para outras cidades e trazia sempre mais encomendas. E ia ver suas amantes, o patife, claro! Só aquela pernóstica não via isso. Depois, porque sua grande qualidade foi ficando conhecida, começou a receber pedidos de outras cidades e até da capital da república. Maldito! O que tinha de falso, tinha de rabudo, vá ter sorte assim no inferno!

A portuguesa

A mulher do Manoel José era a Maria Joaquina. Uma unanimidade entre as mulheres locais: um nojo, um vomitório! Toda emproada, só porque não era feia. E daí? Era antipática como ela só. Sim, era elegante. Sim, se vestia muito bem. E daí, se era uma corna imbecil. Bem feito! E toda metida a sebo, só porque o mentiroso vivia falando bem dela para todo mundo. Que amava a esposa, o que! Um falso!Que raiva!

Uma convencida, só porque o menino e a menina dela eram os melhores alunos da escola. E daí, grande coisa!

Mas o pior é que a desgraçada, com menos de um ano no Brasil, já era primeiro violino da Orquestra Sinfônica.  Era claro que tinha o rei na barriga por causa disso. Esse pessoal metido com música clássica... tudo esnobe!

Mas Maria Joaquina tinha seu próprio defeito. Aliás, o óbvio: Era um poço de ciúme! Vivia examinando os bolsos, cheirando as camisas, examinando as contas de telefone do marido. Nada! Tudo sempre perfeito. Mas ela sabia das conversas da vizinhança: que o marido tinha amantes! Que viajava para vê-las. Maria Joaquina sofria com essa boataria toda. Recebia cartas e telefonemas anônimos, a maldade das pessoas era patética. Queriam porque queriam que a mulher descobrisse algo e isso viesse lhes lavar as almas maledicentes, justificar as línguas bífidas viperinas.

Envenenaram completamente a alma de Maria Joaquina. Mas não contavam com que ela tivesse tanta classe e finesse. Ela não demonstrava nada, nunca. Era como se não recebesse as cartas e os telefonemas, revelando as armações do canalha. Ficavam as mulheres e os homens se roendo por dentro. Tinham cólicas de impaciência. Engulhos de revolta. Aquela sangue de barata! Covarde! Corna mansa!

Mas nem para armar uma boa briga, uma gritaria, uns tapas, não importava quem batesse em quem, botar o mequetrefe para dormir no sofá da sala. Nada! Chegava uma carta cabeluda e viam a mulher receber o marido com beijos e abraços. Não, tem cada pessoa sem fibra neste mundo...

As duas amantes do português

Mas um dia Maricotinha chegou com a bomba! Tinha descoberto as amantes do português. E eram logo duas! Quem tinha contado tudo era uma tia dela, de mais de oitenta anos, meio surda, mas que era uma consagrada autoridade em termos de fofoca pesada. A velha tinha ouvido o filho dela, professor da Universidade, falar das tais amantes do português. A cobra velha foi manobrando como quem não quer nada, e cada dia ia tirando uma informação aqui, outra ali do filho incauto. E ligava em seguida para Maricotinha. Que corria os proclamas pela vizinhança. Que escalava quem ia recortar as letras das revistas, quem ia colar no papel, quem ia colocar o envelope na casa da antipática, madrugada alta.

Assim Maria Joaquina foi se inteirando aos poucos da realidade e da descrição das amantes do marido. Sofreu muito com a nova e dura realidade e mais ainda porque aquilo acabava dando razão àquela gente horrorosa, No fundo ela sempre estivera esperando por aquilo. Manoel José era bonito demais, como iria poder resistir a tanto assédio, afinal era só um homem e os homens... Sofreu muito mais, mas muito mais calada que antes resistiu.

Então chegou o grande dia. As amantes do português, que eram, as duas, professoras da mesma faculdade do filho da velha Felisbinda, iam estar juntas numa solenidade.  Por isso ele sabia tanto sobre elas, eram suas colegas! Por isso o português enganador tinha contato constante com elas, pois essa faculdade era aquela que ainda lhe dava bastante serviço de encadernação e restauração de livros. A toda hora ele ia buscar e entregar livros lá. Safado!

A velha Felisbinda ficou tão entusiasmada com a última notícia que arrancou do filho, que foi quase correndo para o telefone, e, cuspindo muito, de tão excitada que estava, deu todo o serviço para Maricotinha. Mas estava tão animada com a fofoca que, depois de destilar todo o veneno, esqueceu de segurar direito no andador e estatelou-se no chão. Nunca mais saiu da cama, até morrer, meses depois. Mas entrou para a história do bairro como uma autêntica heroína, uma combatente da grande causa, uma mártir, em resumo.

Então a grande noite chegou. As duas sirigaitas, as amantes do português, que eram, imagine-se só, muito amigas entre si, iam estar no palco do auditório da faculdade, na tal solenidade. Uma das vagabundas se chamava Shirley. A outra rameira era uma tal de Elisângela. Os sobrenomes não interessavam, uma vez que iam estar as duas no palco. Maricotinha não perdeu tempo com isso, tinha uma memória ruim, que estava começando a falhar ainda mais depois dos sessenta anos.

A filha e a nora de Maricotinha capricharam na carta anônima. O marido da filha caprichou no telefonema anônimo. E o padeiro, que levantava muito cedo mesmo, foi, como sempre, enfiar o envelope nas roseiras que sobressaiam ao muro baixo da frente da casa da enxerida. Ah, mas agora aquela nojenta ia perder aquela cara de nojo, aquela empáfia. Agora ela ia se escabelar e chorar! Choro e ranger de dentes, coisa boa, haha!
Maricotinha esfregava as mãos, comovida.

E Maria Joaquina mordeu a isca. Muito bem vestida, reconheça-se, pegou um taxi e foi até a tal faculdade. Localizou o anfiteatro, entrou, ficou quietinha lá no fundo. De lá foi ficando cada vez mais impressionada: o bairro inteiro estava entrando também. Reconheceu dezenas de pessoas de vista. A arqui-fofoqueira Maricotinha e a família em peso, o padeiro, o carteiro, o gerente do posto de gasolina, as vizinhas das duas casas ao lado. Maria Joaquina compôs-se ao máximo, não iria dar esse prazer àquela gente. Mas, ainda assim, eles estava jantando tudo aquilo, sabiam que ela estava lá, a velha Maricotinha, lá da frente, chegava ao desplante de olhar toda hora para ela usando binóculos de teatro, na maior cara-de-pau.

A cerimônia começou. Falou primeiro a diretora da Faculdade de Letras. Era de Letras a faculdade? Bem, isso o pessoal não sabia muito bem o que era mesmo, o padeiro pensou que era o lugar onde se ensinava caligrafia, o ajudante de marceneiro achou que era onde ensinavam a pintar letreiros de propaganda. Mas enfim, não vinha ao caso, porque, naquele momento glorioso, a diretora chamou as duas professoras para comporem a mesa de honra:

– Professora Shirley Escostegui Passos – Literatura contemporânea de Portugal

O aplausos foram gerais, exceto, é claro, do pessoal do bairro. Afinal aquela era uma das putas descaradas. Toma, corna mansa! Faz cara de superior agora! Pois a tal Shirley era um pedaço de mau caminho. Jovem, um corpão violão, uma bunda de cinema!

– Professora Maria Elisângela Donato – Literatura colonial brasileira

Uma explosão ainda maior de aplausos. Mas o pessoal do bairro arregalou os olhos, incrédulo. Maria Joaquina, também: a tal Elisângela era um tribufu! Magra e alta, meio velhusca, óculos de fundo de garrafa, um aparelho maior do que ela nos dentes. Português tarado, comia a mocinha gostosa bunduda e comia a velha esquisita sem bunda. Mas gosto é gosto, tara é tara e o importante é que a emproada a esta hora devia estar desmanchada por dentro, bem feito!

– Ela não tira os olhos da morena bonita! Toma, nojenta! – cochichou Maricotinha para a nora, que queria por que queria pegar o binóculo da mão da sogra.

Lá em cima chamaram mais um monte de gente graúda, professores, representante do governador e o escambau. O pessoal do bairro morrendo de impaciência que aquela xaropada terminasse, não viam a hora de chegar o desforço físico, agressão, a portuguesa emproada baixando de nível, rodando a baiana, reagindo como uma mulher normal, enfiando as unhas nas caras das duas vagabundas. Sangue!

Mas a coisa não acabava mais. Houve declamação de poesia, discurso de político, até que chamaram ao palco o professor Viriato, que tinha se atrasado porque sua velha mãe sofrera uma queda no dia anterior e ele estava com ela no hospital. Mesmo assim o filho único da velha Felisbinda não deixou de cumprir seu dever e veio fazer sua parte na cerimônia. A ele cabia o discurso de premiação e dirigir a entrega dos troféus e medalhas aos vencedores do ano, razão da grande solenidade. Agora sim, a coisa chegava ao fim, o próprio professor Viriato anunciou. A cambada do bairro toda se agitou, dezenas de cabeças se voltavam para trás a toda hora, esperando ver o momento em que a portuguesa ia levantar e partir para enfrentar as rivais. Aquelas duas putas! Iam ter o que mereciam também!

Então o professor Viriato chamou as duas vagabundas à frente da mesa, câmeras de televisão e luzes fortes se voltaram para ambas. Duas sorridentes alunas saíram de trás das cortinas do fundo e vieram colocar uma medalha no peito de cada uma das sirigaitas, que estavam inchadas de orgulho. Ordinárias! Quem te viu, quem te vê! Quem não te conhece que te compre! Por fora bela viola, por dentro, pão bolorento!

Então o professor falou suas curtas e objetivas palavras:

– Em nome da Egrégia Congregação desta casa e de todos os professores, funcionários e alunos desta faculdade, eu tenho a subida honra de entregar este, que é nosso mais importante prêmio anual, em reconhecimento ao que estas duas colegas abnegadas fizeram pela preservação e pelo ensino da nossa literatura e do nosso idioma. Recebam, nobres colegas Shirley Escostegui Passos e Maria Elisângela Donato, das mãos de nossa estimada diretora, o diploma e o troféu de AMANTES DO PORTUGUÊS 2013!

Os aplausos foram gerais, eufóricos, demorados, em pé. Menos, é claro, por parte do povo fofoqueiro do bairro, um monte de gente sentada, com cara de desemxabidos, clima de enterro, murchos de decepção. Então amantes do Português se referia ao IDIOMA?! Maldita velha Felisbinda! Fofoqueira miserável! Que morresse toda quebrada, infeliz! Dezena de olhos furiosos se voltaram para Maricotinha e família. O açougueiro, que estava ali a pulso, trazido pela mulher, fez-lhes um sinal, passando a mão espalmada pelo pescoço – Ah, mas eu corto!

Quando os aplausos silenciaram, contudo, não se fez silêncio na platéia. Uma mulher jovem, extremamente bonita, extremamente bem vestida, levantou de seu lugar no fundo e veio andando pelo corredor entre as cadeiras. E gargalhando. Ela olhava para certas pessoas na platéia, apontava o dedo para cada uma delas e não conseguia segurar a gargalhada. As pessoas não faziam nada, sentadas estavam, sentadas ficavam, abaixavam as cabeças, praticamente as enterravam no peito.

Aí a moça bonita subiu ao palco, junto com muitas pessoas que subiam também para cumprimentar as duas homenageadas da noite. Chegou-se às duas, tomou a mão de cada uma simultaneamente nas suas e falou bem alto:

– Muito obrigado, senhoras Amantes do Português. Eu lhes agradeço muito – e deu um beijo em cada uma.

Depois, deixando as duas professoras ainda perplexas, chegou bem na ponta do palco e falou para um grupo de pessoas que procuravam deixar a sala o mais rapidamente que podiam, empurrando-se, pisoteando umas às outras, trocando palavrões:

– Amantes do Português! Pois subam cá a cumprimentar as Amantes do Português, seus vermes. Suas mal-amadas! Seus paneleiros!

E a moça falava o português perfeito dos que tinham estudado na Universidade de Coimbra.

Agora tinha lágrimas nos olhos. Lágrimas de contentamento. E de arrependimento, Tinha muito o que confessar a Manoel José. Desconfiara dele mais uma vez! Ele não merecia... Tinha dezessete cartas anônimas para lhe mostrar. Suplicaria seu perdão. Não merecia aquele homem tão bom e tão honesto. E tão bonito, olhos de água-marinha... Ah, Manoel José!...

Foto: Kostas Martakis, cantor grego (calma, leitoras, o google não vai fugir, podem dar um google nesse nome mais tarde também. Deixem o maridão, o namoradão sair de perto, senão vão ter que aguentar, irritadas, o cara perguntando, enciumado: Quem é esse viado?!)