domingo, 12 de maio de 2013


RITINHA - 18  
MILTON  MACIEL  

Final da parte 17
– Êita idéia porreta, mano véio! – exclamou Osmar, entusiasmado – Idéia di gênio, meu irmão! Dispois ocês diz qui eu é qui sô intiligente. Óia só qui idéia mais pai-d’égua di mano Bastião!

– Porreta, sim sinhô!... – falou até o calado Jeremias.

PARTE 18
– Pois intão! I eu num tenho aquela casa grande lá? Tem lugar di sobra pras minina. Também tem aquela otra cosa qui nós já cunversô até cum painho. Todos nóis concordô qui nóis tem que mostrá gratidão pra moça qui sarvô i cuidô di nossa irmãzinha. Nóis três i painho concordamo qui nóis tem qui ajudá minina Gabi a saí da vida i a i pra iscola.

– Isso mesmo, mano Bastião, muito bem! – aplaudiu Osmar entusiasmado. Ocê tem toda razão. Ocê é o único di nóis qui mora na cidade. Nóis otro é tudo bicho do mato, gosta di vivê no campo o na roça. Mas em Juazero tem cada iscola mais porreta, como aquela onde eu istudei aquele montão di ano. Si as minina vai cum ocê, elas vai tá muito bem cuidada. Nenhum cabra vai si metê a besta i disrespeitá elas, sabendo qui é Bastião Timbó o guardião das duas.

   Marta considerou rapidamente a proposta de Bastião. Era, sim, uma luz na escuridão. Ainda há pouco tudo parecia perdido, agora vinha aquele moço maravilhoso com aquela idéia milagrosa, salvadora. Sim, aquilo podia satisfazer a todos: Iracema não ia para a casa de Dito e isso salvava as aparências para aquele homem cabeçudo. Mas ficava, junto com Ritinha, a uma hora de distância de onde Marta e os filhos dela iam morar. E, sendo em Juazeiro do Norte, a maior cidade da região, as meninas teriam mesmo as melhores oportunidades.

    Manoela puxou a mãe para um canto e coxixou:

– Posso ir com elas, mãinha? Deixa, vai! Eu prometo qui venho lhe vê sempre, todo fim-de-semana.

– Não complique as coisas agora, Manoela. Não é a hora. Deixe as coisas se acertarem primeiro, depois a gente vê. E acho que você tem razão, pode crer que eu aprovo. Mas vamos devagar, por enquanto. Com paciência.

   Iracema e Ritinha ficaram pasmadas com a revelação de Bastião: Dito Timbó concordara em ajudar Iracema a sair da vida?! Em dar lar e escola para ela?! Isso elas não poderiam ter imaginado jamais. Dentro do coração de Ritinha, acendeu-se um pequeno lampejo de reconhecimento pelo pai. Quem quer que ajudasse Iracema ganharia a gratidão eterna de Ritinha.

   Mas agora era tarde para isso. Todos se deram conta que Dito Timbó simplesmente tinha sumido. Ninguém havia notado sua saída. Mas ele não estava mais lá. Para onde teria ido? E por quê?

   A resposta era simples: Dito Timbó estava emocionado. E desconcertado. Pela primeira vez na vida se sentia assim, não era dono da situação. Alguma coisa dentro dele parecia dizer que ele poderia ter errado, que talvez devesse ser mais flexível. A demonstração de solidariedade e companheirismo que Iracema acabara de dar era algo realmente inacreditável. Admirou a coragem das duas meninas.

   Ritinha agira como uma autêntica Timbó! Apesar da dureza de suas palavras, da falta de respeito e da mágoa que elas traduziam, não podia deixar de admirar a coragem daquela criança. Sustentar o olhar de um homem como ele e avançar oferecendo o rosto, ao invés de se encolher apavorada como qualquer mulher e a maior parte dos homens fariam... Isso era simplesmente admirável. Apesar do desconforto e da humilhação a que fora submetido por duas molecas, Dito Timbó não podia deixar de reconhecer que tinha... orgulho daquela filha. Como ter qualquer dúvida que aquela era mesmo sua filha, era mesmo uma Timbó?

   E Iracema, então?! Que coragem, que audácia! E que prova de lealdade, de amor, mais sem igual... Atrever-se a segurar o braço de alguém como ele, cravar-lhe as unhas, desafiá-lo!... Era real- mente impressionante. Quanto mais o tempo passava, mais coisas sabia ou via que o levavam a admirar também aquela menina, aquela... Que pena que fosse uma quenga! Porque, uma vez quenga, quenga sempre. Ou será que não era assim?...

   Sim, aquela menina era boa demais, valorosa demais para se pensar que era uma vagabunda, uma perdida, uma sem-vergonha. Pois seus meninos não tinham ficado sabendo que a própria mãe é que a empurrara para o meretrício! E isso com idade que Ritinha tinha agora. Sim, senhor, talvez fosse a hora de reconsiderar se não havia sido severo demais com a amiga e salvadora de sua filha.

   Enquanto contemplava com um sorriso as marcas das unhas de Gabi em seu braço, Dito Timbó pensava tristemente em Ritinha. Aquele olhar de desprezo e mágoa não lhe saía da cabeça. Tentava pensar em outra coisa, mas o olhar teimava em voltar, insistentemente. Que olhos, os daquela criança! Que olhos bonitos! Dito não se lembrava de ter visto olhos assim: pareciam falar. O pior, para ele, é que eles falavam coisas duras e... possivelmente verdadeiras. Sim, talvez ele estivesse errado. Talvez as coisas tivessem mudado e ele não tivesse acompanhado... Agora estava confuso, cheio de dúvidas.

   Aquelas duas meninas, crianças ainda, tinham lhe dado demonstrações de uma coragem que a maior parte dos homens nunca teria. A seu modo, cada uma havia enfrentado Dito Timbó, o mais famoso e mais competente matador de todo o sertão do Cariri. Eram corajosas por demais e isso despertava a admiração daquele homem marcado, desde a mais tenra infância, por situações onde coragem era o que mais contava. Coragem era o que mais admirava nos homens.

   Desprezava as mulheres porque as achava por demais fracas e covardes. Mas não eram assim aquelas duas meninas. Eram simplesmente admiráveis. E uma delas era sua filha, uma autêntica Timbó, forte, destemida, corajosa como o pai. Sobrevivera a uma tragédia sem par e estava ali, firme, arrogante, decidida, enfrentando a tudo e a todos, não só a ele, o pai, como também à própria mãe. Era uma pirralha, aparentemente; mas era, na verdade, um colosso de vontade e determinação. Como Benedito Timbó, uma vez que tomava uma decisão, não haveria de voltar atrás.

   O velho Timbó chegou a lamentar que as coisas tivessem tomado aquele rumo. Estava pronto para reconhecer e assumir aquela filha tão diferente, tão notável, tão corajosa. Mas aí aparecera o problema de Gabi. Esta, também era uma criatura notável, de brios, de coragem, o que Dito Timbó mais admirava nos homens. Que pena que fosse quenga. Como ele gostaria agora que isso nunca tivesse acontecido. Com que prazer haveria de dar guarida e cuidados àquela pequena guerreira! Mas tudo isso era impossível. Ele, Dito Timbó, o que nunca volta atrás, já tinha sentenciado: jamais aceitaria uma quenga na sua casa. Ainda que fosse para ajudá-la a deixar de ser quenga e ela – difícil possibilidade! – deixasse mesmo a vida, para valer, para todo o sempre. 

  Quanto a Ritinha, ao invés de poder tê-la consigo, conviver com ela, cuidar dela, daquela filha tão bonita quanto corajosa, teria que deixá-la tomar outro rumo. A menina o desfeiteara demais, na frente de todo mundo. De bom grado, a reconheceria como filha. De bom grado e com orgulho até! Mas a pequena havia mostrado tanta revolta contra ele, gritara para todos ouvirem, mais de uma vez, que não o aceitava como pai, que ele não era seu pai. E havia dito isso com tal determinação e com... aquele olhar!

O olhar de Ritinha! O olhar de Ritinha... Não, não podia esquecer a expressão daqueles olhos bonitos. Bonitos e severos, bonitos e acusadores, bonitos e corajosos, bonitos e desafiadores.
CONTINUA  (ver mapa abaixo)

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