quarta-feira, 30 de agosto de 2017

A PRIMEIRA PALMADA A GENTE NÃO ESQUECE  
MILTON  MACIEL

Nasci como todos nascem, hoje eu sei. Mas com uma grande diferença: tive imediata consciência do que acontecia. Vou explicar. Foi assim:

A primeira coisa de que recordo, ainda de olhos fechados, foi aquela aguda sensação de frio. Quando abri os olhos para ver o que se passava, fui violentamente ofuscado por um festival de luzes feéricas. Fechei os olhos imediatamente, reação defensiva automática. Foi quando senti aquele golpe traiçoeiro, que foi vibrado por alguém em minhas costas, mais exatamente nas nádegas. Nunca mais o esqueci!

Fui obrigado a abrir os olhos novamente e a me adaptar à dor e ao ofuscamento que a luz daquele ambiente provocava. E imediatamente bradei, em protesto:

– Que é isso?!

Mas o som que escutei não foi de minha voz, porém algo que me lembrou um horrível miado de tigre. Nesse momento, para meu completo pavor, percebi que estava suspenso no ar. E de cabeça para baixo! Um gigante mascarado me suspendia pelos pés e era ele o agressor que havia batido em meu traseiro.

Então notei, horrorizado, que havia sangue, muito sangue abaixo de mim. E que daquele lugar partia uma espécie de corda grossa arroxeada que parecia entrar em minha barriga. Protestei outra vez em altos brados e só então o gigante parou de bater em minha derrière.

Vi então que havia mais gigantes naquela estranha sala. Uma dessas figuras me apanhou, pegou alguma coisa e cortou a corda arroxeada perto da minha barriga. Aí ela me depositou em uma espécie de maca ou algo assim, sei lá. Era uma gigante-mulher. Foi aí que passei a primeira grande vergonha da minha vida!

Tive a clara consciência de que estava nu, completamente pelado na frente de uma mulher. Tentei me erguer na maca para ver se achava algo com que pudesse me cobrir. Mas, misteriosamente, eu não consegui mover o corpo para cima. Aí a mulher enorme não só viu as minhas partes baixas, como começou a passar as mãos nelas e no resto do meu corpo, usando uma espécie de pano para retirar alguma coisa viscosa que havia grudado em minha pele.

Devo ter ficado vermelho de vergonha. Felizmente a enorme criatura pareceu ter percebido o meu embaraço, porque tratou logo de me cobrir e depois embrulhar em uns panos. E me levou no colo para um lugar onde me depuseram num leito aquecido. Finalmente a sensação de frio passou! Na porta do lugar havia uma placa em idioma estrangeiro, onde estava grafada a estranhíssima palavra Berçário, lembro disso perfeitamente até hoje.

Mas aí começou o pior. De repente me veio a maior sensação de fome e de sede. Mas fome extrema, cruel, insuportável. Comecei a gritar de novo, pedindo comida. Lembro-me de ter chamado em altos brados pelo garçom. Mas, outra vez, tudo o que eu consegui escutar foi aquele horroroso miado de tigre que atormentava os meus delicados tímpanos com indizível crueldade.

Ah, como eu ansiava ali por uma variada tábua de queijos, um bom vinho, uma baguette fatiadinha. Eu queria meu Brie, meu Camembert, um Gorgonzola italiano, um Merlot não muito envelhecido, pouco mais de vinte anos, safra 1743. E uma baguette, uma enorme baguette quentinha, hummm.

De novo a telepatia funcionou: como se lesse meu pensamento, uma nova gigante mulher colocou algo em minha boca que eu, sem entender bem por que, comecei a sugar avidamente. Mas, Grand Dieu, era ÁGUA! Foi choque demais. Desmaiei imediatamente e só lembro de ter recobrado a consciência muito tempo depois, quando era uma espécie de bebê roliço que estava aprendendo a caminhar.

Mas foi só para passar pelo segundo horror da minha vida: os gigantes daquele novo ambiente me chamavam por um nome errado. Errado e horroroso: Sebastião. Tiãozinho!!! Quelle chose térrible! Mas isso eu conto outra hora. Au revoir

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

LIVROS DE MILTON MACIEL 2017
Anunciando o lançamento da Série "Como Escrever Ficção"
Vols.1 e 2 disponíveis a partir de 20 de setembro:
Vol. 1 - A ARTE E A TÉCNICA DO ROMANCE - 280 pg
Vol 2 - A ARTE E A TÉCNICA DO PERSONAGEM  - 216 pg
Lançamento: Dia 20 de Setembro de 2017, na Academia Joinvilense de Letras, Salão Nobre da Sociedade Harmonia Lyra, às 19:30 hs, durante a FESTA GAÚCHA.

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

QUANDO TEREMOS A PRIMAVERA DE ANNE E FARIDA?
MILTON MACIEL

Senhores da Guerra, morte e escuridão
fazem-nos a Terra toda em cova rasa.
Enriquecem, vendem armas, ambição
que destrói, sem piedade, a humana casa.
E a monstruosidade racista da opressão
lança a bomba que a tudo em volta arrasa.
Contudo,
A primavera que Anne Frank sonhou em seu porão,
É a mesma que a menina Farida sonha em Gaza
 
Quando chegaremos a viver, menina Anne, menina Farida,
A Primavera que vocês sonharam e não tiveram nesta vida?

sábado, 12 de agosto de 2017

ESCUTA-ME! 
MILTON MACIEL (rimas internas cruzadas)
 
Escuta-me.
Mas tem cuidado, por favor.
Todo meu ser está cansado:
Mal de amor! Como viver
com este fado? Entende-me.     
   
Mas tem paciência, te suplico.
Pois vago assim na impermanência
Onde fico, sem ter de mim
mais consciência. Apoia-me.
 
Mas tem firmeza, sê constante.
Pois que oscila, minha alma, na incerteza
 angustiante. E, sem força, atônita vacila
em sua tibieza. Ajuda-me! 
 

Mas tem carinho, por piedade.
Pois que, transido, cansei de lutar sozinho
contra a saudade e o abandono descabido
dos quais definho. Compreende-me!  
    
Oh, por favor, escuta-me!

sábado, 5 de agosto de 2017

NO CAIS, A ESPERA
MILTON MACIEL

Anseiam seios, no seu peito arfante,
Pelos lábios febris daquele amante
Que arrebatou, o mar, pro Novo Mundo.
Cavo sonido vem do peito ardente,
Mais um soluço, que num de repente,
Irrompe oriundo de um pesar profundo.


Vazias mãos, qual aves desnorteadas,
Em vão se agitam, sonham ser tocadas
Por mãos ausentes do seu bem-amado.              
Ele se foi,  arrrebatou-o a caravela,
No Tejo ele acenou, a despedir-se dela
E foi para os Brasis, a enfrentar seu fado.


Há mais de um ano, abisma-se ali ela.      
No cais de Lisboa espera a caravela,
Que traz seu homem pelo inferno aquoso.
Américo Vespúcio e Gonçalo Coelho
Levaram seu amado, nesse destrambelho,
A arrostar os perigos do Mar Tenebroso.


Cada nau de velas brancas a apontar no Tejo,
Faz seu corpo estremecer, agoniado arpejo,
Na esperança de que o rio devolva sua vida.
Por centenas de dias ela espera, aflita,
Que o mar e o rio encerrem sua desdita,
Que a volta do amado pense-lhe a ferida.


Hoje, mais uma vez, a espera deu em nada.
Amanheceu tensa no cais, com a madrugada;
Chegaram duas naus, escaleres aportaram.
“Vêm dos Brasis!” bradou alto um marinheiro.
Ela esperou descer o homem derradeiro
E seus anseios, novamente, se frustraram.


Nenhum era ele. Mais um dia... frustração.
Olhos ardendo, lágrimas, sono; a exaustão!
Desfaleceu ali, sobre uma pedra do cais.
Sonhou: ele viera; e, amoroso, ele a chamava.
Abriu os olhos. Deu um grito: ELE VOLTAVA!
E, abraçando-a, dizia: “Não parto nunca mais!


Sofri ataques de índios, traições e emboscadas.
Fui prisioneiro, tive minhas pernas fraturadas,
Estive por morrer bem mais do que uma vez.
Nada doeu-me, porém, mais que a tua ausência!
Mas, pensando em ti, encontrei força e resistência,
Tinha que voltar e esposar-te, salvar tua honradez.


Do bendito pau-brasil, está a nau toda abarrotada,
Ganhei muitos ducados, valeu-nos a empreitada,
Pois agora posso ser, finalmente, o teu marido.”


Ela estremeceu, sentiu-se flutuar, feliz e amada.
A longa espera estava enfim recompensada:
Ali em seus braços, de volta, o seu querido!