quarta-feira, 8 de maio de 2013

RITINHA - 14  
MILTON MACIEL

Final da parte 13

   Naquele instante a porta do caminhão se abriu e uma menina pulou e correu de encontro a Manoela: era Rita, efetivamente.

   Enquanto as duas meninas se abraçavam e se beijavam, Marta ficou imóvel, paralisada. Arregalou os olhos, abriu a boca e... caiu dura no chão. Timbó e Geraldão, que ainda não tinham entendido o que se passava, levaram o maior susto. O fazendeiro soergueu a mulher desacordada, Dito Timbó a pegou no colo e clamou:

– Ajuda, gentes, ajuda! Que qui si faiz num caso desses?!

PARTE 14 
  Duas empregadas da fazenda correram para o grupo na varanda e começaram a abanar e dar pequenos tapas no rosto de Marta. Foi quando Ritinha e Manoela chegaram.

– Mãinha! – gritou Rita, apavorada – O que aconteceu?

– Dismaiô – falou um homem trigueiro, de voz grossa.

   Ritinha ergueu a cabeça e, pela primeira vez na vida, seus olhos se encontraram com os do pai. O olhar do homem denotava curiosidade apenas. Mas o de Ritinha traduzia choque, susto, angústia, medo. Depois, em coisa de segundos, foi mudando para desaprovação, mágoa, desprezo.

  A menina não disse nada, pegou o rosto da mãe nas mãos e começou a cobri-lo de beijos. E, em instantes, de lágrimas que explodiram copiosas de seus olhinhos fechados. Coincidência ou não, Marta começou a se reanimar naquele momento. Abriu os olhos lentamente e deu com o rostinho da sua filha, que estava abraçada a ela, sustentando-lhe o rosto com as mãos.

– Rita, minha filha! Deus seja louvado! É você, Ritinha! Você voltou pra sua mãinha, Deus seja louvado!

   Marta, ainda meio grogue, conseguiu levantar do chão, para melhor observar a filha. Achou-a bem, mostrava só algumas manchas escuras no rosto e nos braços e uma cicatriz mais feia no pescoço. Aí a mãe desatou a chorar, imaginando todo o sofrimento que aquele homem monstruoso havia infligido a sua menina. Manoela se aproximou e tomou-lhe a mão:

– Chora não, mãinha! Ritinha tá de volta, tá tudo bem agora. 

   Então as três mulheres começaram a conversar, mãe e filha contando, cada uma, a sua parte da história. O que mais surpreendeu Marta foi a idéia de sua filha de que ela a tivesse abandonado. Como é que Ritinha tinha podido pensar isso dela? Mas logo entendeu que o que a pequena tinha sofrido justificava qualquer pensamento, qualquer medo, aquele inclusive.

   Durante todo o tempo, Ritinha evitou olhar para Dito Timbó.   Ele e o fazendeiro estavam ao lado delas, ouvindo todas as narrativas. Só então o pai conseguiu compreender tudo o que aquela criança havia passado. Tinha que fazer algo por ela. Era sua filha, quer ele gostasse ou não. Não bastasse a certeza que Marta lhe dera, ao observar a menina eram inegáveis os traços fortes dos Timbós no seu rosto, principalmente no queixo. Só que na menina resultara numa composição de extrema graça e leveza. Sua filha era inegavelmente uma menina muito bonita, extraordinariamente bonita. Que lástima que tivesse emputecido!

   Naquele exato instante, Bastião travava uma conversa com Gabi e Osmar:

– Ói, minina Gabi, num vai falá qui Ritinha entrô no caminhão cum um home. Ela mi contô, minha irmã além di tudo tem caráter, é honesta. Mai eu disse pra mano Jeremias qui ela num imputeceu, não. Qui ela num virô quenga. Vê si ocê num mi dismente, por favô. Assim é mais fácil cum esses cabeça-dura di Jeremias i di painho. Mais adiante, si ela quisé, ela conta tudo. Que qui ocês acha?

– Pois eu acho qui mano véio tem toda a razão. Vamo mintí um bucadinho, é bem poquinho, quase um nada. I assim nóis evita mais sofrimento pra coitadinha.

– E eu acho que vocês são uns amores, uns fofos, dois irmãos maravilhosos. Quem me dera eu tivesse irmãos assim como vocês! Mas vocês estão muito certos: Ritinha não merece sofrer mais nada nesta vida. A gente tem que mentir, que matar se for preciso, mas não podemos deixar que essa criança sofra de novo. Então vocês podem deixar comigo, eu sei como é que eu vou fazer, falo com a mãe dela na frente do pai e dou um jeito na coisa toda.

  Aos poucos a coisa foi se acalmando. Então Ritinha puxou a mãe e Manoela para um canto e começou a lhes falar de Gabi/Iracema. Não só contou tudo o que a menina havia feito por ela, sua dedicação extrema, sua bondade incrível, mas também lhes contou sobre a profissão da amiga. Estava no mundo sozinha, fora abusada, estuprada como ela, caíra na vida obrigada pela própria mãe, fugira desta e de casa, mas não pudera fugir da profissão. Havia sido explorada, escravizada, até conseguir fugir com um caminhoneiro, Assim, para felicidade dela, Rita, viera parar naquela cidadezinha.

– Se não fosse por ela, tenho certeza, eu estaria morta agora.

  Ato contínuo, Ritinha chamou Gabi. Quando esta se aproximou, Manoela correu e se abraçou a ela, um abraço apertado, agradecido. Um beijo no rosto falou obrigado. Marta também beijou a mocinha, mas não ficou só nisso. Falou de toda a gratidão, declarou amizade eterna, ofereceu-se para ficar com Gabi, se ela aceitasse:

– Venha morar com a gente, saia da rua, minha filha. A gente está sabendo como você é boa, está sabendo tudo o que você fez por minha filha. E eu estou percebendo o quanto Ritinha lhe estima. Fique com a gente, deixe que eu cuide de você também. Vamos formar um grupo de mulheres corajosas. Com você nós somos quatro, podemos enfrentar qualquer coisa. O que você acha, minha filha?

– Eu nem sei o que dizer, Dona Marta. Nunca ninguém me fez um convite assim. Mas a senhora tem que pensar que eu sou uma quenga, já sou antiga no ramo, mais de dois anos. Todo mundo aqui sabe, vai ficar mal para a família de vocês.

   Manoela agarrou a mão de Gabi, olhou bem dentro dos seus olhos e pediu, sincera:

– Fique, Gabi. Fique com a gente. Ritinha lhe adora, eu também vou lhe querer muito bem, mãinha também vai. Fique com a gente. Essa história de quenga não importa, Você é tão novinha, o povo esquece. E a gente defende você.

   Marta reforçou e insistiu:

– Isso mesmo, minha filha. Eu falo com Dito e ele leva você também, junto com a gente.

   Foi a vez de Ritinha estranhar aquelas palavras:

– Esse homem leva a gente, mãinha?! Que história é essa?

– Pois é, filha, nem deu tempo de lhe contar ainda. Dito Timbó ofereceu pra gente morar com ele, na casa dele em Missão Velha, é na zona rural, diz que é uma casa grande, bonita, nova, com muitos quartos. Ele me quer como mulher dele, o que eu já fui. Acho que ele nunca me esqueceu. E deu a bênção pra Manoela, aceitou ela como filha. E já deitou bênção nos gêmeos também. E a gente só não foi com ele porque eu disse que, sem encontrar você, a gente não arredava pé deste lugar de jeito nenhum. Ele entendeu e amanhã a gente ia sair pra procurar você. Mas ele falou que os filhos dele tinham ficado a cargo de fazer isso e, pelo que se vê, eles foram muito bem sucedidos, acharam e trouxeram você pra nós.

   Ritinha ficou chocada. Compreendeu que aquilo era a melhor coisa que poderia acontecer para Marta, para Manoela, para seus irmãozinhos gêmeos também. Tivera uma clara demonstração da força dos Timbós, sabia que o pai tinha dinheiro, afinal, naquela profissão há tanto tempo! E entendia que o homem devia gostar mesmo de sua mãe, porque nenhum homem faria o que ele estava fazendo agora: assumir três crianças de outros pais, para ter Marta como sua mulher. Aquilo abalou um pouco a prevenção que sentira a vida toda contra Timbó.

   Mas não o suficiente pra fazê-la querer viver com ele sob o mesmo teto. Ele não lhe dera esse teto, assim como não dera a nenhuma de suas inúmeras filhas. Quantas não estariam por aí na desgraça? Será que não haveria filhas de Dito Timbó nos puteiros da vida, como poderia ter acontecido a ela, Ritinha, tudo por causa da insensibilidade e do abandono a que ele submetia as filhas? Aquilo era machismo da pior espécie e Ritinha entendia muito bem o que era machismo. Sofrera em sua própria pele, as conseqüências do machismo nojento daquele homem.

  Não, que ele ficasse com Marta, com Manoela, com os meninos. Sabia que a mãe ainda era jovem e bonita, precisava de um homem que gostasse dela e Dito Timbó estava provando isso sem sombra de dúvida. E tinha certeza que agora sua família teria do bom e do melhor, Marta teria amor e respeito, não precisaria se consumir num curtume velho e malcheiroso, deixar o resto da juventude ser engolido pela miséria e pela preocupação. Manoela também seria muito beneficiada. Ia poder ganhar vestidos, coisa de menina e, mais importante, aquilo que ela mais precisava: professora particular – sozinha Manoela não rendia na escola, não tinha jeito, só mesmo com Ritinha estudando com ela todos os dias.

   Sim, decidiu-se Rita adultamente, na sua incrível precocidade: Sua família iria embora com Dito Timbó, seria feliz. Quem sabe até mesmo aquele homem estranho poderia encontrar felicidade e paz nos braços amorosos de Marta, poderia gostar de ter uma filha e dois filhos assim, na sua velhice que se prenunciava.

   Mas não ela. Ritinha não iria jamais com Dito Timbó! Ainda que isso significasse ficar afastada de mãe, de Manoela e dos irmãos menores. Saberia onde eles estariam, iria visitá-los quando pudesse. Mas Ritinha sabia onde era o seu lugar. E esse lugar não era mais com a família que ia embora com Dito Timbó. Só havia um lugar onde seu coração teria paz e felicidade.

   E esse lugar era com Iracema.

   Onde Iracema estivesse, ali estaria o coração de Rita. Em nenhum outro lugar. Amava a mãe e os irmãos, porque simplesmente nascera naquela família e tanto Marta como Mano-ela eram pessoas maravilhosas.

  Mas Iracema era muito mais do que isso, muito mais do que maravilhosa. Iracema era a bondade e a pureza em sua máxima expressão. Amava Iracema mais do que a uma irmã, amava-a com todas as forças do seu coraçãozinho ainda infantil e puro, e não nascera irmã ou filha de Iracema. Sabia que amava Iracema acima de tudo e que era amada do mesmo modo. Um amor puro, diferente, de almas gêmeas, de pessoas que precisam estar juntas uma da outra o tempo inteiro.

  Não, Ritinha não iria para Missão Velha, seu lugar era com Iracema. Num quartinho, na rua, num puteiro, numa escola interna, não importa onde. Onde estivesse Iracema, ali estaria, sempre e sempre, o coração de Ritinha. Via isso com toda clareza.
CONTINUA

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