quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

 

UM MILAGRE DE NATAL  
MILTON MACIEL

                                                    


   

Lita e Carmen Lúcia eram mãe e filha. Lita, a mãe – 43 e 18 anos. O marido e pai deixara as duas há mais de 10 anos. Nunca mais deu notícias. Viviam da mão para a boca, numa pobreza de Jó, numa minúscula casinha alugada na periferia. Lita costurava para pequenas confecções e ateliês, Carmen Lúcia arranjava as costuras, buscava os tecidos, levava as peças prontas, o resto do tempo ajudava a mãe. Eram sós no mundo, nenhum parente em São Paulo, nada.

Uma manhã, quando voltava para casa com tecidos, Carmen Lúcia viu um rapaz com uma mochila bem no fundo do ônibus quase vazio. Ele tentava esconder que chorava. Carmen Lúcia era boa demais para ver aquilo e não fazer nada. Foi sentar ao lado do moço. Ao poucos conseguiu extrair dele sua história: Otávio. Estudava, pagava seus estudos e a pensão, o dinheiro que ganhava como garçom não dava para tudo. Acabava de ser mandado embora da pensão. A faculdade era muito cara, mas ele disse que preferia viver na rua a parar os estudos.

Quando chegaram ao ponto mais próximo à casinha delas, Carmen Lúcia fez o jovem descer com ela e levou-o até à mãe. Naquele mesmo dia o rapaz começou a morar com elas. Ele estudava de manhã e de tarde, trabalhava à noite todos os dias, sem descanso algum. Elas também não tinham descanso. Um dia, cinco meses depois, o rapaz chegou radiante: tinha conseguido transferência para uma faculdade em outra cidade, onde teria bolsa de estudos integral. Despediu-se, escreveram-se umas poucas cartas e, meses depois, quando elas tiveram que mudar de casa, perderam todo o contato.

A custo, Carmen Lúcia completou o colegial. Depois, não pôde seguir os estudos. O trabalho era muito, a paga era pouca, entravam madrugada adentro. O aluguel subiu, a paga diminuiu, precisaram trabalhar ainda mais. Tiverem que mudar várias vezes de casa, sempre para mais longe.

Os anos foram se passando, Lita não aguentou.

Seu coração fraquejou, foi internada às pressas em um hospital público distante. Carmen Lúcia ficou com todo o fardo sozinha. O dia tinha só 24 horas, ela dormia só 3. Mas conseguia ir levando a vida, com a mãe sempre internada. Precisava transplante, estava na fila, muita a necessidade de cirurgia, pouca a esperança de consegui-la. A morte também esperava e, na fila dela, Lita tinha uma posição muito mais próxima.

Carmen Lúcia só podia visitar a mãe uma vez por semana. Hospital muito longe, condução muito cara, mais caro ainda um dia quase inteiro sem trabalhar, sem ganhar. Sorriam-se as duas. Tentavam enganar uma à outra, como se pudessem ter esperança. Não tinham.

Um dia, era 24, VÉSPERA DE NATAL, a filha chegou e não encontrou a mãe na enfermaria. Entrou em pânico, mal conseguia respirar: o pior?!... Da última vez Lita estava tão fraca!...

Mas Lita estava viva. E estava na UTI. E estava bem, garantiu-lhe a enfermeira da UTI. E tinha um coração novo! Carmen Lúcia mal podia acreditar. Um milagre!

Mas como? Milagres não acontecem com gente como elas, há muito desaprendera de acreditar neles.  Aí quis saber de tudo, a enfermeira chamou sua chefe, as duas tentaram explicar, em meio à excitação total da filha:

O hospital tinha mudanças importantes, um novo subdiretor assumira na semana passada, parece que vinha com as costas quentes, com mais poderes. Decidia as coisas muito rápido, arranjava recursos, remanejava todos os setores, um fenômeno!

– Veja o caso de sua mãe, por exemplo. Nem bem conversou com ela, o homem saiu da enfermaria feito um azougue, mandou fazer os preparativos para a cirurgia enquanto ele ia pessoalmente atrás de um coração. E, inacreditável, poucas horas depois tinha arranjado um. Sua mãe foi operada imediatamente. Por ele mesmo, que é cirurgião cardíaco. Ele vem várias vezes por dia ver a paciente. E agora que ela já pode, eles conversam e riem que nem velhos amigos, você não pode fazer ideia.

Carmen Lúcia recebeu permissão para entrar na UTI. Sua mãe não estava entubada. Estava recostada, podia falar normalmente. Recebeu a filha com um sorriso de júbilo. Carmen Lúcia se aproximou exultante, mas com medo de provocar uma emoção muito forte na mãe, tão violenta como a que estava sentindo, falou com cuidado, quase sussurrando:

– Mãe!... Mãe, um milagre, mãe! Um milagre...

– Foi ELE, minha filha. Ele! Com a graça de Deus, ele me encontrou aqui, jogada naquela enfermaria. Foi ele, filha.

– Ele, quem, mãe? Ele quem?

Lita limitou-se a apontar o homem alto, de jaleco branco, que olhava sorridente da porta de entrada. O novo subdiretor, o cirurgião, o MILAGRE!

Carmen Lúcia voltou-se para ver e, apesar da pequena barba loira, que era nova, o rosto lhe era extremamente familiar. Só conseguiu dizer:

– Sim, é ELE! É ele. Otávio!!!

O Dr. Otávio Magalhães continuava sorrindo, imóvel na porta, esparramando em cima de Carmen Lúcia um olhar enternecido. Sim, era ele, o moço do ônibus, o hóspede gratuito que dividira a miséria com elas por cinco longos meses.

Então o médico entrou, anunciou a Lita que amanhã ela deixaria a UTI, que iria para um quarto particular. 

Particular?!! Mas quem iria pagar, se elas não podiam?

– Como, quem vai pagar? Ora, já está tudo pago. Tudo isso e tudo o que ainda vier pela frente.

– Mas como? – quis saber Carmen Lúcia? Tudo pago, como?

– Tudo pago por cinco meses maravilhosos, os melhores da minha vida, que eu vivi na casa de vocês, filando a comida de vocês, recebendo a bondade de vocês, sem pagar um tostão. Eu, um completo estranho. Isso não tem preço, por mais que eu tente, nunca vou poder retribuir à altura.

– Ora, meu filho, que bobagem...

– Eu perdi o contato com vocês, quando consegui voltar aqui, depois de uns meses, vocês tinham se mudado. Procurei como um louco, mas nunca mais. E aí acontece essa coisa maravilhosa, de repente eu entro naquela enfermaria e o que vejo: o rosto da minha santa protetora. Isso sim é que é milagre!

Então ele avança alguns passos, estaca em frente a Carmen Lúcia, toma-lhe as mãos nas suas:

– E hoje o milagre está completo: além da minha santa protetora, aqui está o meu anjo salvador!

O médico retirou sua carteira do bolso, dela extraiu uma fotografia e uma mecha de cabelos loiros, entregou-as a moça.

– Aqui estão, devolvo, roubei do seu álbum, não tive coragem de pedir. Cortei o cabelo quando você estava dormindo. Durante estes anos todos, isso me manteve sempre conectado com vocês. Você, Carmen Lúcia, não saiu um só dia do meu pensamento. Estou solteiro até hoje porque sempre tive a esperança de reencontrá-la.

Completou-se o MILAGRE DE NATAL !

Casaram-se três meses depois. Hoje Carmen Lúcia está a três meses de concluir a faculdade de Psicologia. E Lita, que mora com eles, toma conta do casal de netos. 

Máquina de costura? Nunca mais! O doutor não quer... Diz que faz muito mal para pessoas santas. (MM)

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

 KHIRBET KUMRAN – Nathan, o Zelote 

MILTON   MACIEL

   Do alto, à entrada da caverna, a velha contemplava a paisagem de Khirbet Qumran. A noite caia rápida e a visão da praia e da grande extensão de água à sua frente ia se fazendo mais e mais enevoada, aumentando a falta de nitidez com que as cataratas crescentes em seus olhos a castigavam. Mas nem toda a névoa deste mundo seria capaz de esconder dela o vulto odioso, inconfundível, que se aproximava do penhasco. Puxando um jumento, Shlomo, o publicano, caminhava lentamente pela praia, com seu passo oscilante de bêbado. Uma vertigem tomou conta da velha - quarenta anos de humilhação e maus tratos nas mãos daquele maldito marido assomaram à sua lembrança, enchendo de tristeza e revolta sua mente, até então envolta pela enorme paz do ambiente.

Ali, judiciosamente, a velha se dedicava a colocar os manuscritos dentro dos grandes vasos de argila. Os romanos avançavam cada vez mais e os líderes da comunidade essênia, receosos da destruição de seu grande legado, haviam decidido escondê-lo nas grandes cavernas de Qumran.

   Lágrimas assomavam aos olhos baços da pobre mulher quando algo lá embaixo despertou sua atenção. Da escuridão já quase plena, assomou um vulto por trás de Shlomo e o atacou com um enorme remo de barco. Um único golpe certeiro no alto do crânio, um ruído de pote quebrando, e o velho tombou pesadamente sobre os joelhos. O agressor agiu célere: arrastou o corpo para junto de um grupo de barcos distribuídos entre a areia e a água e o escondeu rapidamente, cobrindo-o com um grande monte de redes de pesca.

A velha passou da surpresa e do susto para uma sensação de alívio e euforia. Ninguém precisaria lhe contar, havia presenciado tudo: o pesadelo chegara ao fim! Décadas de martírio estavam agora encerradas pelas mãos de um Anjo Vingador. Sempre tivera essa convicção: um dia o Senhor haveria de enviar um anjo para punir todas as incontáveis maldades de Shlomo. Por que tardara tanto?

   A velha então deixou-se cair de joelhos, suas lágrimas rolando abundantes agora, enquanto murmurava um rosário de preces e frases ininteligíveis, deixando sair do fundo do peito toda a emoção de que estava tomada. Toda ela parecia estremecer em convulsões, mas seus olhos, quando se abriam, revelavam toda a enorme, toda a indizível alegria de que se via inundada. Nessa situação ficou por longos minutos, até que sua atenção foi de novo chamada por movimentos de pessoas lá embaixo. 

Viu que um pequeno grupo de pescadores se encaminhava para os barcos. E notou que um deles ia direto para o tufo de redes empilhadas, formando um monte estranho à prática comum daqueles homens, o que lhes havia chamado a atenção ao chegarem.  A mulher se ergueu, alarmada. A violenta emoção de euforia deu lugar a um momento de preocupação. Logo os pescadores descobririam o corpo de Shlomo. E, pouco depois, perceberiam que um dos seus barcos havia desaparecido. Nele, o Anjo Vingador se evadira rapidamente da cena do crime.

A velha sentia–se tão imensamente grata a seu redentor que a última coisa que queria é que os homens saíssem à sua caça em seus pequenos veleiros. Acalmou-se um pouco ao lembrar que agora já era noite fechada e que, talvez, os homens custassem a perceber o furto do barco. Mas o que havia por baixo do estranho monte de redes estava para ser descoberto no instante seguinte: o homem já havia começado a remover as redes de cima e chamava, excitado e aos gritos, os seus companheiros.

Aquele a quem a velha chamara seu Anjo Vingador era Nathan da Galiléia. Um Zelote dos mais ativos e dos mais procurados por romanos e judeus, com cabeça a prêmio. Solitário por vocação, Nathan quase sempre agia sozinho. Por isso suas emboscadas e ataques não eram espetaculares. Ao contrário, resumiam-se a cuidadosos e bem planejados raides contra um único indivíduo. Passara, desta vez, quase uma semana à caça do velho publicano Shlomo, um cruel explorador do seu próprio povo, de quem arrancava escorchantes tributos que, depois, sonegava em parte aos romanos.

Shlomo fora a causa da desgraça de muitos homens e de suas famílias, nesse rol incluído o pai de Nathan. O velho Shaul, expropriado da maior parte dos seus bens, não havia resistido à tristeza e à humilhação. Embora a família contasse que ele caíra do penhasco, seus filhos perceberam que ele havia saltado para o fim, em desespero. Agora Nathan fizera-lhe justiça.

Sem saber do drama da velha mulher do abutre publicano, via a si mesmo como um Anjo Vingador. Mas não apenas de seu pai, senão que de todo um povo massacrado e vilipendiado pelos invasores romanos e seu asseclas judeus, estes ainda mais odiosos por se locupletarem com as escassas sobras arrancadas a pulso de seus compatriotas. Justiçado Shlomo, escondera-lhe o corpo sob redes de pesca e fugira tomando um dos barcos a vela que estavam ali fundeados.

Agora seu olhar perscrutava o grande lago de Asfaltitus, ao qual os romanos preferiam chamar de Mar Morto.  Navegava na noite fechada, sem lua, na escuridão quase completa. Mas seus olhos habituados às longas espreitas nas noites de emboscada, seu passado de menino marinheiro e pescador no Lago de Genesaré, à beira do qual nascera em Cafarnaum, lhe permitiam navegar com segurança mesmo nessas condições. Os mistérios do lago, suas correntes, sua água espessa de sal, não lhe eram estranhos. Por ali já se deslocara em outras missões. Agora, deixando Khirbet Qumran, velejaria toda a noite e pelos dias seguintes, até alcançar o extremo sul do Asfaltitus, saindo dele na altura de Masada. Dali se esgueiraria mais uma vez pelas montanhas, chegando a Hebron e de lá, devidamente disfarçado, haveria de achar caminho para Jerusalém, onde esperava encetar um novo ataque, agora dirigido a um funcionário romano, cúmplice de muitos dos achaques de Shlomo.

   Na noite densa, de poucas estrelas escurecidas pela névoa, Nathan olhava seu Lago Asfaltitus com amor e gratidão. Outros talvez nada pudessem ver, mas para o galileu, ele era totalmente perceptível: via suas águas serenas e escuras, os bancos de areia e os rochedos às margens, as raras fogueiras acesas, uma ou outra escassa casa ou grupo de casas iluminadas pelas lamparinas, nos quase inexistentes vilarejos situados sobre as escarpas. Mar Morto? Não. Mar cheio de esperança de vida enquanto por ali passassem, tudo arriscando, guerrilheiros patrióticos e corajosos como Nathan, o galileu - Nathan Zelote.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

ELVIRA

 

ELVIRA

MILTON MACIEL

Ela era mais alta dos que as outras. Tinha uma voz que, embora suave, transmitia um certa autoridade. Os cabelos erguidos em coque, o sorriso quase uma constante. Havia nela um quê de diáfano e, para mim, de indefinível. Longe de mim querer entendê-la, bastava-me apenas aceitá-la. E amá-la.

Teve um profundo impacto em minha vida.

Acho que meu coração pulsou de amor desde o primeiro momento em que ela se dirigiu a mim, olhando-me com carinho e falando-me com ternura. Sempre foi assim. Nossa relação, que se espalhou ao longo de três anos, sempre teve essa tônica dominante de carinho, ternura. E de respeito recíproco, sem dúvida. 

Elvira. Seu nome era Elvira. Achei o nome lindíssimo. Claro, era o nome Dela! E eu vivia a falar de Elvira pra cá, Elvira pra lá... Maria ficou com ciúmes. Até então ela era a detentora única do meu amor. Agora aparecia aquela intrusa!...

Um dia foram apresentadas. E Elvira era tão extraordinária, que Maria também gostou muito dela. Maria parou de reclamar: o que pensava e sentia, guardou para si, daquele dia em diante. Houve até uma vez em que comprou flores para que eu levasse para Elvira. Fiquei admirado. E feliz, muito feliz. Porque Elvira adorou minha flores, mostrou-as para todo mundo, deu-me um beijo apertado na frente de todos.

Foram três anos. Porque ela fez questão de me acompanhar. Eu não podia interferir, foi escolha dela. Ao cabo do primeiro ano a separação apresentou-se inevitável. Mas antes que eu sofresse por isso, Elvira mudou tudo e seguiu ao meu lado. E repetiu isso outra vez, quando, tempo depois, o mundo queria nos separar. Ela não deixou. E eu a amei ainda mais.

E Elvira abriu todo um mundo para mim, sabia muito mais do que eu. Mas sabia reconhecer que eu queria saber. Queria muito saber! E me ensinava com paciência infinita. E me estimulava a ler cada vez mais. E eu a amava ainda mais.


Por isso, quando chegou o momento de deixá-la e seguir em frente para outro território, eu sofri. Mas ela me amava o suficiente para conduzir meu afastamento, para fazer com que eu aceitasse o inevitável, como uma condição para seguir crescendo.

E o crescendo não era só simbólico, não era só de cabeça, não era só crescer no mundo. Era crescer também no físico. Explico. 

Quando deixei Elvira eu tinha 10 anos de idade. Quando a conheci, ia fazer 8 no meio do ano. Alta, gentil, com seus cabelos completamente brancos em coque elegante, vestida sempre de preto, Elvira foi a minha professora exclusiva de segunda, terceira e quarta séries do primário. Quando comecei a amá-la, ela tinha 71 anos de idade. 

Era boa demais para aceitar a aposentadoria. Seguiu sempre trabalhando com as crianças. Tive a felicidade de ela apaixonar-se por nossa segunda série do primário. E, ao invés de entregar-nos à professora da terceira série, conseguiu continuar com essa turma até a quinta série, quando acabava o primário de então.

Mas eu me desgarrei da turma antes. A maravilhosa Elvira e a dedicada Maria, que agora era sua amiga, decidiram que eu podia “pular” a quinta série primária e entrar direto na primeira do ginásio. Eu não tinha idade legal para isso, mas a Maria deu um jeito com seu amigo de infância, o Chiquinho, que agora era o Prof. Francisco, diretor do ginásio. Deram um jeitinho brasileiro e eu adiantei um ano minha formação. Valeu Maria. Valeu, Elvira.

Elvira continuou presente em minha vida por muitos anos, acompanhou minha trajetória sempre. Estava lá, mais bela do que nunca em seus 77 anos, quando eu fiz o discurso de formatura do ginásio, agora um molecão espigado de quase um metro e oitenta e 14 anos.

Como pode concluir quem lê estas linhas, Elvira ficou para sempre em meu coração e em minha memória. Ah, e antes que eu esqueça: compartilhando estes espaços com Elvira, a Maria... que era a minha mãe!

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

 

UMA FORÇA DESMEDIDA  

MILTON MACIEL

Se, por causa destes sonhos, eu me vejo assim levado,
Se, andando nestes passos, sigo só pelos caminhos,
Quero crer que sigo em frente, meu destino está traçado:
Sigo o rumo desolado
Dos corações mais sozinhos,
Dos seres mais comezinhos,
Que arrastam seu duro fado.

Quero crer que sigo em frente por meu próprio desatino,
Pelos carreiros do mundo sou mais um homem perdido,
Que se arrasta inutilmente, pra cumprir o seu destino:
Ante a vida só um menino,
Como um pássaro ferido,
Para o vórtice atraído,
A gemer o último trino.

E, no entretanto, eu continuo assim.
Pelas estradas... levantando pó,
Pois meu destino é ser um homem só:
Jamais parar até que chegue o fim.

Quero crer que sigo em frente, minha vida não tem volta,
Vou tangido pelos ventos, como uma folha caída,
Não tem dor, não tem soluço, não tem ai, não tem revolta:
Solitário sem escolta,
Uma força desmedida
Me faz resistir à vida
E a vida... não me solta!

Miami, 18/09/2013

terça-feira, 21 de julho de 2020

DO SUL AL SUR
MILTON MACIEL
Livro bilingue - Portugûes e Espanhol

Calebrando a fronteira sem fronteira, entre Santana do Livramento (Rio Grande do Sul) e Rivera (Uruguai)



(Na foto, o Parque Internacional, situado metade em cada cidade, em cada país) 


Dedicado à fraternidade e à paz

O que quer dizer que dedico este trabalho à minha preciosa cidade natal, que, de tão notável, não é só uma, mas duas: Santana do Livramento e Rivera, exemplo fantástico de paz e de fraternidade entre pessoas e nações, é uma cidade só que, de tão generosa, aceitou dar-se um pouco a cada país, Uruguai e Brasil, Brasil e Uruguai.

Algumas ruas, tênues linhas nos mapas, belos marcos pelos campos, são sinais de uma fronteira que nos une, não nos separa. Pois quem pode tirar Rivera do coração de um santanense? E quem pode tirar Santana do coração de um riverense? Pois se suas cidades são gêmeas xipófagas, que nasceram coladas justamente pelo coração!

Dios nos quiso así, fraternales, respetuosos, humanos. Y por eso nos puso acá, en esta doble ciudad que es una, donde late un solo corazón, un corazón mellizo y criollo, que nos hace únicos en el mundo. Un corazón tan grande que lo llevamos doquiera andemos y que no nos deja jamás olvidar esta tierra, no importa ni el tiempo, ni la distancia que intente separarnos.

Nosotros podemos salir de Rivera y Livramento. Pero Livramento y Rivera no salen de nosotros. Las llevamos en el pecho, las recordamos, las cantamos. Y, cuando podemos… VOLVEMOS!

quinta-feira, 2 de julho de 2020

ALANA EM MARCHA
Cap. IX do romance histórico
O CERCO - Milton Maciel, IDEL, S. Paulo - 408 pgs.

Estavam todos os chefes e seus assessores reunidos, desta vez no grande salão do rei visigodo Teodorico, no palácio de governo em Orléans, no mais acalorado das discussões, quando, de repente, a grande porta de duas folhas foi aberta com estardalhaço e uma pessoa entrou, sem que os guardas do lado de fora fizessem a menor menção de impedir o seu acesso. Era por volta de duas da tarde.

Os presentes se alvoroçaram: "É a sacerdotisa', disse Aécio, o general romano. "É a amante do rei", murmurou um oficial visigodo.

"É a concubina de Teodorico', gritou alto, rindo, um capitão dos burgúndios, Merval. 

No mesmo instante, Alana avançou para ele com três saltos surpreendentes e vibrou-lhe uma violenta bofetada no rosto, que o jogou estatelado no chão. O homem ergueu-se furioso e correu para pegar sua espada, que estava apoiada à parede de entrada. Mas antes que ele pudesse alcançá-la, a sacerdotisa saltou como um felino sobre ele, montou em suas costas, trançou as pernas sobre os joelhos dele e enfiou-lhe aponta de um punhal, pela frente, no pescoço. O capitão burgúndio estacou, completamente imóvel, sentindo a ponta da arma cortar-lhe levemente a pele  e a carne. Bastaria que a mulher fizesse um gesto e sua vida estaria liquidada. A sacerdotisa então falou::

– O que que eu sou do rei, senhor?

– É... É... Ahnn... Súdita?...

Todos os presentes explodiram numa gargalhada geral, o que fez Merval considerar deixar-se matar por aquela louca imediatamente, o que seria bem melhor do que passar pelo vexame por que estava passando agora. De fato, como celta, Alana não era súdita do rei dos visigodos. A mulher continuava encarapitada em suas costas, o punhal continuava com a lâmina lanhando seu pescoço, algumas gotas se líquido quente começavam a cair em sua túnica militar, manchando-a de vermelho.

O rei Teodorico I achou que era hora de ele intervir:

– Senhores, não podem dar ouvidos a boatos, a fuxicos de comadres palacianas. Não se igualem a essa gente rasteira e maliciosa. Nada houve, jamais, de intimidade entre a sacerdotisa da Deusa e o rei do visigodos. Isso tudo é invenção de criadas maliciosas. Será que meus aliados preferem acreditar nessas imundas criaturas a crer no rei dos visigodos?

Alana ficou surpresa com a postura do rei. Jamais poderia esperar isso da parte dele. Suas palavras acabavam de botar por terra toda a onda de boatos que se espalhava pela cidade. Ainda teria que agradecer ao rei por suas palavras. Nesse momento, também o rei dos Burgúndios, Gondioc, se fez ouvir, com sua voz rouca e anasalada:

– Suplico-lhe, sacerdotisa, que perdoe meu capitão. Eu lhe peço desculpas em nome de todo meu povo. E o capitão também vai, em seu próprio nome, tão pronto a senhora o solte, pedir perdão à sacerdotisa.

– Além do que, sacerdotisa Alana, não vamos poder mandar o homem no encalço dos hunos, com um punhal atravessado até o cabo no pescoço – era o romano Aécio quem falava isso, divertido.

Alana saltou das costas do capitão burgúndio e ficou esperando a reação dele. Como Merval não se movesse e apenas a encarasse com ódio, ela mesma andou até a parede e, pegando a espada a que ele se dirigia instantes antes, arrancou-a da bainha e arremessou-a ao homem que, automaticamente, a agarrou e empunhou. Então a sacerdotisa falou, desafiadora, para surpresa de todos, enquanto segurava o punhal bem alto em frente a sua cabeça:

– Então, capitão, ainda quer lutar? Pois venha, então, venha enfrentar o punhal da Deusa.

O homem ficou sem ação, olhou para os lados contrafeito. E encontrou os olhos duros de seu rei, Gondioc, que lhe fez uma indicação, com gesto enérgico:

– Ao chão, Merval. De joelhos! E peça perdão com muitos modos à sacerdotisa celta. Já!

O capitão burgúndio caiu pesadamente de joelhos em frente a Alana, que o observava agora sem qualquer olhar de hostilidade. O homem balbuciou, envergonhado pelo horrível de sua situação:

– Se... Senhora, eu lhe peço perdão, não queria ofendê-la.

– Mas ofendeu, capitão! Pense mais antes de falar. Contudo, como o senhor me pede com modos, eu o perdôo. Em meu nome e, muito mais importante para o seu futuro, em nome da Deusa.

Só então passou pela mente do militar burgúndio que, talvez, fosse perigoso ofender uma sacerdotisa, porque isso poderia ser considerado uma ofensa à própria divindade que ela representava. E deusas enfurecidas são imensamente mais perigosas que as espadas e flechas do inimigo huno.

Alana abaixou-se e, mais uma vez surpreendendo a todos os presentes, tirou de uma das mangas da veste sacerdotal um lenço muito branco e, com ele, limpou o sangue que escorria levemente do corte no pescoço do burgúndio. Podia ser só coincidência, mas o sangue parou de correr imediatamente, o que deixou o capitão impressionadíssimo.

Então a sacerdotisa da Deusa segurou o capitão por um dos braços e o ajudou a se levantar. Nesse momento, pela primeira vez, o homem burgúndio ficou frente a frente com o par de olhos muito azuis e, agora, muito serenos de Alana, Só então reparou em toda a sua beleza, em seus incríveis cabelos ruivo-dourados. Só então sentiu a incrível força que vinha do espírito daquela criatura tão especial. Quando terminou de se erguer, um segundo depois de ter olhado dentro daqueles olhos, Merval esqueceu toda a hostilidade e toda a vergonha que havia sentido. O homem que estava em pé agora, contemplando aquela mulher com perplexidade, era um homem perdidamente ... apaixonado.

Alana desviou-se do capitão e seu olhar embevecido e caminhou em direção ao rei Teodorico:

– Perdoe, majestade, se interrompi a reunião dessa forma intempestiva, mas a gravidade do assunto o exigia. Por favor, não queira punir suas sentinelas, eu usei certos... digamos,  artifícios, para passar por esse pobres homens, não foi culpa deles. Ah, e quero desde já lhe agradecer pelas palavras de esclarecimento para seus convidados, a respeito desse boato infeliz que corre pela cidade.

– Ora, sacerdotisa Alana, nada me deu mais prazer do que restabelecer a verdade e exigir o respeito que a senhora merece de todos. Quem, neste reino, ousar falar, sobre esse lamentável equívoco, algo diferente do que eu disse hoje, essa criatura será terrivelmente castigada. Mas, por favor, sacerdotisa, agora fiquei preocupado: que assunto tão grave é esse que a trouxe à minha sala tão intempestivamente?

– É a perda de tempo, majestade. A lastimável perda de tempo. Enquanto os senhores discutem em intermináveis rodadas de palavrórios, regadas a vinho, o esperto Átila partiu  em busca de reforços e lhes leva já dois dias de dianteira. Se o deixarem escapar, os senhores e seus reinos estarão perdidos para sempre. Os hunos voltarão multiplicados em número e força de destruição e todos vocês e seus povos e terras serão irremediavelmente arrasados.

 – Mas como a senhora pode afirmar isso? Baseada em que informações? Pois se meus espiões, os melhores da Gália, não me mandaram nenhum aviso alarmante? – a voz rouca de Gondioc fazia-se ouvir novamente.

– Seus espiões já foram apanhados e executados pelos hunos, majestade, por isso não lhe mandam avisos reais. Os bilhetes que vocês recebem, são forjados pelos próprios hunos, e lhe transmitem dados totalmente errados.

– Será? Uma coisa assim pode acontecer?

– Se a sacerdotisa Alana fala isso, então eu acredito! – e essa afirmação arrancou um “oohhh!” generalizado, quando todos constataram quem era o homem que a pronunciara: ninguém menos do que o capitão Merval, o da cicatriz vermelha no pescoço.

O general romano Aécio aproveitou a deixa então:

– Estão vendo, seus cabeçudos teimosos. É isso que eu estou tentando lhes dizer desde anteontem! Meus espiões estão bem vivos e eles me mandam informações preciosas quase todos os dias.

– Mas qual é a fonte de informações da jovem sacerdotisa? – ainda quis objetar, mais reticente, o rei dos burgúndios.

– A Deusa, senhor. A Deusa que me permite tudo ver no tripé sagrado, na água poderosa.

– Ora, um tripé com água, francamente, minha senhora! – quem dizia essas palavras com desdém na voz era Gédiac, conselheiro do rei burgúndio.

– Um tripé com água, sim senhor! E mais a minha intuição, que pode prescindir de um tripé o mais das vezes. Como agora, senhor Gédiac, quando vejo que a jovem Adistal está grávida de seis meses e o senhor sabe muito bem quem é o pai dessa criança.

Gédiac sentiu-se estremecer. Muitos dos burgúndios ali conheciam a moça Adistal, filha do irmão do rei. E sabiam que ele estivera por uns tempos hospedada na casa de Gédiac. Maldita sacerdotisa, em má hora se atrevera a contestá-la. Agora sua carreira e, provavelmente, sua própria vida estavam em perigo. Como convencer o rei Gondioc que o pai não podia ser ele, se a verdade era exatamente o contrário?

Flávio Aécio retomou a palavra, para aproveitar a vantagem que detinha agora:

– Eu que sou romano, aprendi há muito tempo a confiar cegamente nas sacerdotisas celtas e sua fantástica vidência, em seus poderes infalíveis. Se vocês mesmos são capazes de duvidar ainda, depois das demonstrações que Alana acaba de lhes dar, então...

 – Sim, sim – gritou, afoito, Merval – Inclusive a demonstração de força e de poder comigo mesmo. Ela me subjugou, poderia me matar e me poupou. E depois todos viram: ela fez meu sangue estancar! 

– Bem, senhores, o que vocês vão resolver não é assunto meu. O que eu vim fazer aqui, rei Teodorico é simples: vim lhe pedir um pequeno destacamento de cavaleiros visigodos muito bem treinados, capazes de enfrentar cavaleiros hunos em campo aberto!

– E por que razão, minha cara?

– Porque a guarnição de Châlons está sendo atacada por um grupo de cerca de 2000 hunos. A guarnição é pequena e não tem cavaleiros, não pode enfrentar os hunos em campo aberto, terão que resistir ao cerco que lhe será imposto. Mas eu, com apenas 200 cavaleiros dos melhores, posso dar um jeito nisso. Posso contar com seus homens, meu rei?

– Certamente que sim, sacerdotisa Alana. Embora eu não tenha a menor idéia do que se passa e do que a senhora pretende fazer, pode ir agora mesmo com meu general Lidéric aqui presente e ele providenciará tudo para a senhora. Quando pretende sair?

– Esta noite mesmo, majestade, assim que seu destacamento estiver pronto.

– Mas por que essa pressa?

– Porque, como lhes disse, meu rei, os ataques em Châlons já começaram. E eu sei que tenho que chegar lá o mais depressa possível, para ajudar na defesa. Por outro lado, os senhores já perderam tempo demais e Átila, embora avance com um pouco de lentidão, já lhes leva grande dianteira. Dois dias mais que percam, e não poderão mais alcançá-lo a tempo, antes quer cruze o Marne. Não esqueçam que daqui até Châlons há uma distância de 200 quilômetros(*). Eu levarei meus cavaleiros pela noite, sairemos da estrada principal quando estivermos nos aproximando da retaguarda de Átila e sua gente. Isso deverá ocorrer, com a velocidade que vamos galopar, umas duas horas antes do nascer do sol.

Os homens no salão estavam todos de queixo caído com as ações planejadas por aquela moça, de aparência tão enganadoramente frágil e dócil agora. Alana, ignorando-os prosseguiu:

– Daí em diante temos uma dura jornada pela mata e pelos desfiladeiros das primeiras gargantas do rio. Mas poderemos voltar ao leito do caminho principal assim que tivermos ultrapassado, pela mata, a vanguarda dos cavaleiros hunos. E agora, vamos, general Lidéric, temos muito pouco tempo para tratar de escolher os homens e os cavalos e fazer todos os preparativos. Obrigado, meu rei. Até breve, em Châlons, para todos os o demais.

– Mas porque Châlons para nós também, sacerdotisa? – quis saber Aécio, o romano.

– Os Campos Catalaúnicos os esperam, soldados. É tudo que posso dizer! Mexam-se, parem de beber e discutir como meninos, e tratem de avançar: a glória os espera em Châlons. Ou a vergonha e a destruição de seus lares, se continuarem aqui. Vamos embora, general.

E, num último ato, que deixou todos os homens estupefatos e se lambendo de desejo, Alana, com um único e rápido golpe da mão direita, arrancou de si a veste branca de sacerdotisa, que foi enrolando no braço enquanto caminhava para a grande porta. De sob a túnica sacerdotal emergiu um corpo de mulher simplesmente perfeito e enlouquecedor, vestido em justas calças celtas de montaria, em couro escuro e flexível, encimadas por uma espécie de blusa curta de cor azul celeste.

A visão daqueles quadris, daqueles glúteos e coxas deixou os homens enlouquecidos, por muito tempo não houve outro assunto na reunião. Sorridente e enigmático, Teodorico observava a todos com ar de superioridade. Havia inventado uma mentira, mas na verdade ele sabia o quanto se fartara naquelas carnes generosas, macias, perfeitas, perfumadas. A mulher mais linda que jamais tivera em toda sua longa vida. Sorriu ainda mais, enquanto pensava: Sim, agora ele poderia até  morrer que morreria feliz, depois dessa experiência tão maravilhosa.

Quando os ânimos se acalmaram um pouco e o traseiro e as coxas de Alana deixaram de ser o único assunto, voltaram o tema da lição que ela havia dado em Merval, repetido principalmente pelo próprio e o assunto vital da perseguição imediata aos hunos.

E, quando este último tema foi novamente discutido com profundidade, todos demonstraram pressa. E a votação, feita com o levantar do braço direito, deu resultado unânime: atacar já! Mentalmente, Flávio Aécio não parava de agradecer à sacerdotisa celta. Muito provavelmente, aquela criatura maravilhosa havia mudado o curso da história para sempre.

(*) NOTA IMPORTANTE: Os nomes das cidades e lugares são os atuais: Orleans atual é a antiga Aurelianum, Châlons atual a antiga Catalaunum, Paris é a antiga Lutecia, Lion a antiga Lugdunum, etc. E as medidas são todas apresentadas dentro do Sistema Métrico Decimal, que só começou a valer no século XX. Essas conversões visaram manter a história livre de nomes hoje estranhos e de complicadas formas de medir espaço, área, volume,etc. Evidemente medidas dadas em palmos, braças, côvados, pés, léguas só iriam dificultar o imaginário do leitor.

quinta-feira, 18 de junho de 2020

ONOFRE E O VEGETARIANO   
 MILTON  MACIEL   

Pues nem le conto, vivente! O Onofre andava abichornado pelos canto,  más atropelado que cusco em procissão, más perdido que cego em tiroteio. Eu é que tirei ele dessa situação. Encontrei o índio velho no bolicho do Ademar faz dois dia e ele tava mesmo incomodado. Nem bem me viu, e antes mesmo que eu pudesse pedi uma canha, o turuna veio pra mim com essa pergunta isquisita:

 - Buenas, tchê! Me responde uma cosa: é verdade que existe vegetariano?

- Buenas. Que existe o quê?!...

- Vegetariano.

- Mas bá, tchê! Que que é isso, esse nome más estranho? Vegeta... o que?

- Ta-ri-a-no! Vegetariano. Tá com cera nos ovido?

- Bueno, isso eu não ouvi nunca. Que que é essa cosa?

- Pues foi o Nicanor que me garantiu que existe. Más eu não acredito.

- E por quê?

- Bueno, ele veve pra cima e pra baxo, tu sabe como é. O índio velho não tem paradero, não isquenta banco, viaja más que tropero dos tempo antigo, dá más volta que bolacha em boca de velho desdentado. Más agora, quando ele me veio com essa do tal vegetariano, eu fiquei foi mui brabo com o desgraçado. Fiquei foi com vontade de le dá uns planchaço com o facão. Más ele me garantiu que viu gente assim numa das viage dele...

- E viage pra donde?

 - Pues foi lá pras estranja, prum lugar longe demás, um país de nome Curitiba, deve ficar a miles e miles de léguas daqui da frontera, de Santana do Livramento.

- Curitiba? Nunca ouvi falá. Vai vê nem existe, é só invenção desse farolero, tá só fazendo farol.

- Bueno, olha que tu pode tá com a razão. Esse Nicanor é mesmo mui farolero, veve contando umas história mui sem pé nem cabeça, a maior parte deve sê mesmo mentira. Foi como eu respondi pra ele:

- Ah, pára Nicanor! Tu ta atochando, contando vantage. Más nunca que um índio assim pode de existí!

E o Onofre continuou, fulo de raiva:

- Mas ele me garantiu, me jurô pelo que hay de más sagrado e no fim casamo uma pelega de mil numa aposta. Ele diz que existe, eu digo que não existe, ele diz que prova, eu digo que não prova, que é mentira dele. É por isso que to perguntando pra todo mundo que vejo, se eles acredita que existe o tal de vegetariano.

- Mas cumpadre, me diga o que é esse tal de bicho isquisito, com esse nome de xarope pra tosse.

- Bueno, agora tu é que não vai acreditá. Sabe o que o cabortero do Nicanor disse que é o tal de vegetariano?

- Desembucha.

- Pues é um índio isquisito que não come carne nunca! E não come carne porque não qué!

- Ah, más manda esse falsero contá otra! Más é claro que não pode tê home assim. Imagina, não comê carne porque não qué! É atochada dele, pode tê certeza.

- Pues não lhe disse! É claro que o patife tá mentindo. Diz que o tal do isquisito não come carne porque não qué, tá sentindo o cheirinho da costela na brasa e nem enche a boca de água.  Não fica com vontade de trinchá os dente numa chuleta, nuns miúdo de boi. Más diz que nem churrasco de ovelha o vivente come, por aí tu já vê.

- Barbaridade!

- Agora olha o pior: o índio não come carne porque não qué, não é que não possa comprá um bom quarto pra assá,  uma costela gorda pra fazê no fogo de chão. Pode comprá, tem a plata, mas não compra porque não qué!

- Mas entonces o loco não come otras carne, uma galinha que seja, cosa más sem graça, o então um tatu mulita o uma perdiz do banhado?

- Pues que nada! Diz que não come nada que seja de carne, nem um mondongo. Nem mesmo pexe, cosa más sem graça também.

- Que não come o que! Não existe! O então, se o Nicanor acha que viu, o índio tava era tomando o pelo dele, disse que não comia más foi comê iscondido.

- Bueno, quero vê é ele prová essa barbaridade. Não prova!

- Não prova!

- Pues não hay esse tipo de gente aqui em Santana. Nem em Dom Pedrito, nem em Bagé, que conheço algo das terra de fora aqui no Brasil. Também a castelhanada não tem desse pessoal. Nem em Rivera, nem em Salto, nem em Mata Ojo Chico, que é o que conheço do Uruguai, não hay gente estranha assim. E sabe o Juan Pedro, o esquilador, aquele de Tacuarembó, que é uruguaio? Pues também ele nunca ouviu falá de vegetariano no Uruguai.

- Entonces le garanto também eu, cumpadre. Sossega. Não hay vegetariano!

- Bueno, tu me convenceu. Não hay! E vamo tomá uma canha pra isquecê essa bobage. Como vai a cumadre?    (MM)