quinta-feira, 28 de maio de 2015



A  SENTINELA DO ONOFRE 
MILTON  MACIEL 

Bueno, esta aconteceu quando correu a notícia que o Onofre tinha morrido. Todo mundo um dia bate com as dez. O Onofre bateu com as duas – as duas guampa no chão! Falseô o pé numa escadita de nada, foi ajudá a pegá um rolo de fumo na pratelera de riba, no bolicho do Clemente, e paft! Lá se veio o índio velho, com todo aquele tamanho e peso e estatelou-se no chão. De cabeça! Diz que fez um barulho de porongo rachando tão forte que assustô os vivente tudo que tava por lá charlando e tomando canha. Mas nunca que ele acordô mais!

Bueno, por estas banda não tem médico, tu sabe, que dirá hospital! Mandaram chamá Siá Balbina, benzedera respeitada, uma tripa coalhera velha de quase cem ano, prá benzê e vê se dava pra salvá o home. Mas Siá Balbina, nem bem botô a mão na testa do Onofre, garantiu, com toda a sua autoridade, maior que a de qualqué dotorzinho da cidade: Tá morto, foi acertá as conta com o Patrão Velho lá de Cima; Pode velá e enterrá!

Entonces levaram o Onofre pra casa mesmo e deitaram o índio velho nuns pelego no meio do galpão. É que do jeito que o home era conhecido e relacionado, ia aparecê miles de gentes pra assuntá a sentinela, tomá umas canha, contá causo, mateá e comê uma boa costela. Nunca que o Onofre ia querê que no seu velório faltasse boa carne, bom chimarrão e muita canha!

Tanta gente veio que a viúva até se animô: mandô o Terêncio buscá a cordeona, o Ademar, o violão, e barbaridade! O vanerão correu solto até de madrugada, em honra do finado, que parecia más regalado que nunca, ali espalhado nos pelego, só ouvindo as vanera, as milonga, as ranchera. E, com certeza, arriscando um olho pra dentro das saia das china dançando, que ele podia enxergá lá do chão. Tu precisava vê a cara de feliz do índio velho. Oigalê, velório animado!

Quando se alembraram que tinha que enterrá o defunto, tão distraído tava todo mundo com o baile e com a charla, que o dia já tinha acabado há muito tempo. E a noite também. Não dava pra segui o enterro, já era mui de madrugada. E, pra maior dos pecado, desabô o maior temporal, horas e horas de chuva da grossa que era um causo mui sério.

Não dá, disseram uns, se abrí cova, enche de água na mesma hora, o finado não havéra de gostá, ia pensá que morreu afogadoNão dá, falaram outros, não se pode enterrá cristão em noite alta, vira boitatá! Não dá, disseram mais outros aindaaliás a maioria, que é pecado pará o baile agora que ta tão bom, o falecido não havéra de gostá.Concordaram todos.

Bueno, entonces seguiram com o baile e, como a toda hora chegava mais gente e as carreta com as guria e as china não pararam de cruzá pela portera a tarde toda, tiveram que tirá o Onofre do meio do galpão, que tava atrapalhando. E também que tava levando muita pisotada de bota e espora, que os índio já tava tudo mui mamado e dançava a  lo loco nomás, a toda hora eles tropicava e pisava em cima do defunto sem querê. Os mais borracho dançavam uns com os otro, crente que bailavam com mulher, achando que o poncho do otro vivente era o vestido da china. Por aí tu vê....

Aí não houve outro jeito, tiveram que jogá o Onofre do lado de fora, na chuva, pra mode ele não atapalhá o salão de baile – o galpão. Acomodaram o índio velho debaixo de uma carreta, no barro mesmo, que não valia a pena sujá os pelego. De manhã, antes de levá pra cova, jogava-se uns dois baldes d’água no bruto e pronto: lá ia s’imbora ele, limpito nomás, pra baixo dos sete palmo, todo feliz e orgulhoso da grandeza do seu velório.

Bueno, pensando bem, por que velório? Pois se não tinha vela nenhuma, nem gentes de rezas por ali, todo mundo mui animado bebendo, comendo e dançando. Tinha era um monte de lampeão a querosese e a única vela que acenderam foi um toquinho pro Negrinho do Pastoreio, pra ele ajudá a achá a pá cavadera boa pra hora de abri a cova, que  tava sumida. E claro que o Negrinho achô!

Mas aí aconteceu uma cosa que acabô com aquela alegria toda da morte do Onofre. Pois não é que o Terêncio, que o que tinha de bom gaitero tinha também de borracho, já tinha mamado uns dois litro de canha? Entonces teve uma hora que ele não aguentô más e desabô, com cordeona e tudo, no chão. Ainda tocô uma última marca deitado ali mesmo, mas depois se apagô. Dormiu que nem com um monte de pontapé nas costela acordava mais. Aí o Ademar largô o violão e foi vê se ainda podia corrê umas china, já que o ruim de sê tocador é que tu só pode ficá vendo os outro apertá as mulher e tu mesmo não pode fazê nada!

Entonces, como já devia sê pra lá de três da madrugada, o pessoal, sem a música pra dançá, acabô se desanimando e as canha foram fazendo mais efeito ainda, porque eles tava tudo de corpo quente e pararam de dançá. Não deu nem meia hora e todo mundo tava dormindo embolado por ali. A única coisa que lembraram foi que a viúva do Onofre deu uns grito com os home antes de dormí, que ela não queria sem-vergonhice na sentinela do marido, mandô os home desafastá das guria e das china. E eles que não se fresqueassem, que o Onofre na certa tava olhando tudo ali de riba. Bueno, deu certo, que os bagual e os maula se aquietaram e foram dormi mais pro canto dos arreio. As mulher se espalhô nos pelego do Onofre e nas carreta adonde vieram.

Entonces o dia amanheceu, mas nada do povo acordá cedo pra tocá o enterro do Onofre, que já devia de tá impaciente pra ir s’imbora pra nova morada lá em cima. Só lá pelas sete, com o sol já meio alto naquele verão, é que a indiada começô a levantá e a corrê pra trás dos tronco das árvore, pra descarrega as bexiga. As mulher, a viúva teve que levá pra perto de casa e elas formaram fila pra usá a casinha, cosa que muitas não aguentaram esperá e entonces se desapertaram por ali mesmo, no meio dos eucalipto.

Aí, é claro, o pessoal tava com fome e com sede, entonces botaram as chalera nas trempe de novo, pro chimarrão, fizeram fogo e já aproveitaram pra assá mais umas costela, que era aquilo o café da manhã naqueles tempo. Quando terminaram de mateá e trinchá os dente nas carne, era bem pra lá de nove e meia. Bueno, era hora de pegá o Onofre e levá pro campo em frente ao potrero, que ali é que iam fazê a cova do bruto. Mas o home tava sujo barbaridade, era um barro só, que nem dava pra vê o rosto debaixo de tanta lama. O bueno é que, ao menos, tinha parado de chovê.

O Aldrovando pegô dois balde grande e foi pro poço, puxá água pra lavá o defunto. Ô, água más fria aquela, tchê! Em pleno verão, parecia gelo. Coitado do Onofre, ia ficá incomodado de levá aquela água gelada pelas fuça. Mas não tinha otro remédio. O Gaudêncio veio ajudá e jogô o primero balde no defunto, depois de puxá ele pelas perna de debaixo da carreta O barro respingô pra tudo que é lado, a barba e a cara do Onofre ficô quase limpa, mas sujô uma barbaridade de gente que tava assuntando a lavação ao redor.

Aí o Aldrovando se achegô e falô: Desculpe, meu padrinho, mas é por boa causa. E jogô o outro balde de água gelada. Pra quê!

Pois nessa hora o Onofre deu um pulo, incomodado com a água fria, pos-se de pé na mesma hora e gritô um monte de palavrão. Cuepucha, que foi só paisano espirrando pra tudo quanto é lado!!!

Uns deitaram a corrê pro potrero, pegaram os cavalo sem arreio, pularam em pelo mesmo e saíram a galope berrando com as montaria, tudo trocada, não importava quem era o dono do cavalo. As mulher que estava por perto nem fugiram. Umas quantas desmaiaram na mesma hora, as outra tão ocupadas estavam em gritá, que não pararam mais de fazê isso, até que o Aldrovando, quase ensurdecido, sacô do revólver e deu seis tiro pro ar.  

Funcionô, que o cagaço foi maior e a mulherada parô de berrá! E os guasca que não tinha fugido ainda, pararam pra olhá o que era o tiroteio. E foi aí que o Aldrovando botô as cosa no lugar:

– Seus burro, suas égua, vancês não vê que o padrinho não morreu?! Que ta vivinho da silva aqui na nossa frente!

– Que eu não MORRÍ?! Mas que barbaridade cabeluda é essa, compadre? Me explica o que faz todo esse povo todo aqui na estância, numa hora dessas da manhã.

Compadre Gaudêncio, feliz da vida, correu a abraçá compadre Onofre e começou a contar o que tinha acontecido. O Onofre mal que acreditava.

– Sim senhor, iam me enterrá vivo, que barbaridade! Então eu dei uma chifrada no chão lá no Clemente, apaguei e vocês já acharam que eu tava morto, seus maula!

– Foi Siá Balbina, padrinho. Foi ela.

Mas nessa hora a gritaria recomeçô, que agora era a viúva que tava chegando, foram contá a novidade pra ela em casa, que ela tava se emperequetando toda pro enterro e tentando lembrá como é que se fazia as choradera e os grito na hora das pá de terra. Quando chegô e viu que o Onofre tava vivo, ela soltô as gritaria da despedida mesmo, que era o que ela tinha ensaiado.Se agarrô no marido e fez um tal berrero que o Onofre perdeu a paciência e deu-le um pisão com toda a força com o tacão da bota, enlameando todo o chinelo novo e amassando o pé da mulher. A viúva, qué dizê, a mulher do Onofre, deu um baita dum grito de dor e parô na mesma hora a ladainha.

– Caturrita! – ainda rosnou o Onofre entre os dentes.

Mas foi aí que ele se deu conta de toda a barbaridade, da cosa más estranha que tinha se passado com ele. E alegrou-se! Mandô acendê os fogo tudo de novo, que o gaitero tocasse (o do violão, nessa hora, tava na casinha), mando buscá más carne pro churrasco e más canha e aí foi o Onofre que mateô, charlô, churrasqueô e dançô o resto da manhã e a tarde intera com as china e com as guria. Tinha que festejá! E como! Pois se estivera a ponto de ser enterrado vivo...

segunda-feira, 18 de maio de 2015

EM  VOCÊ  SUPÕE-SE  
MILTON MACIEL

Em você
supõe-se
a maciez da alma,
o obtemperar do sonho,
o obliterar do nunca,
o imaginar do antes
e o esbater do belo.

E há o enigma dos olhos,
o indecifrável da intenção,
o sorriso de pétala,
as mãos de nuvens
o flutuar de náiade,
o intangível da leveza...
E o desvanecer.

Em mim...
Esta perplexidade!

quarta-feira, 13 de maio de 2015

 NEGRA VELHA  
MILTON  MACIEL

     Porque hoje é TREZE DE MAIO, torno a postar este meu poema regionalista, que me é particularmente caro ao coração. Nele presto tributo a uma figura real, a TIA BELA, uma parteira e ama de leite que trouxe ao mundo e amamentou um grande número de crianças em Santana do Livramento, Rio Grande do Sul, na minha infância – inclusive dois primos meus. A mãe deles, branca racista convicta, de peitos murchos sem leite, abria uma exceção para essa negra notável, dizendo, com a maior desfaçatez: "Ela é negra, mas tem a alma BRANCA". Que horror! 

     E presto homenagem também a todas as inumeráveis gerações de Negras, que, enquanto escravas, por séculos e séculos se doaram em amor, alimentando do seu peito e cuidando do seu coração seus sinhozinhos brancos. Para, no geral, deles receberem, depois, a mais amarga e cruel ingratidão.

NEGRA VELHA 

Paro a lida pra te olhar, negra velha amiga,
Ver como avanças pouco, no teu passo lento,
Despacito nomás, a mão tateando ao vento.
Hay névoa nos teus olhos e muita mágoa antiga.

Teu peito encarquilhado, que pra frente se curva,
Esconde a vida que ele deu pra tanta gurizada...
Pois quanto piá amamentastes nesses seios então fartos,
Filhos de brancas sem leite de quem fizestes partos!
Mas que hoje te esqueceram, na tua pobreza turva,
Porque, qual vaca velha, tu fostes descartada.

Quantos homens de importância trouxestes tu ao mundo
E quantos deles só viveram pelo leite no teu peito?
Quanto piazito faminto foi no teu seio escuro aceito,
Porque ali dentro batia um coração de amor profundo!

Mas hoje chego aqui e te descubro nesta baita solidão:
Tua velhice desamparada e trôpega, cheia de tristeza.
Essa vista turva, esse abandono cruel, essa pobreza...
E de todos os que por ti passaram... nenhuma gratidão!

Vem, negra velha amiga, vem comigo, apóia no meu braço.
Não mamei do teu leite, mas conheço uma a quem salvastes:
Uma que hoje é a mulher da minha vida e a quem amamentastes.
Vem comigo, nobre negra, tu vais viver conosco, dá um abraço! 

Fac simile do decreto original da Lei Áurea - 13 de Maio de 1888: