sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

ROBOSVALDO E A BOTÂNICA 
MILTON MACIEL 

Robosvaldo Santana tinha mesmo um nome estranho. O velho Santana não cansava de explicar:

– O nome que a patroa queria para o moleque era Osvaldo. Mas na hora do registro, quando a pessoa do tabelionato perguntou o nome do moleque, eu lembrie do susto que levei, quando vi aquele bebê pela primeira vez no berçário: ele tinha nascido com a cara toda achatada e vermelha; e tinha a pele do resto do corpo toda amarela (me explicaram depois que era uma tal de icterícia, sei lá eu o que é isso!). Aí eu pensei: isso não é um bebê humano, mais parece um robô. E, quando saiu o nome, eu lasquei Robosvaldo. A verdade é que eu queria botar nele só o nome de Robô Santana.                     

Pois o Robosvaldo talvez tenha desenvolvido algum trauma por causa do seu nome. Na escola, os colegas o apelidaram do óbvio: Robô!

Depois de adulto, quando começou a trabalhar numa repartição pública e assumiu, com o passar do tempo, a divisão de compras, os colegas passaram a chamá-lo de Roubosvaldo, insinuando, maldosos, que a rápida ascensão econômica do colega tinha duvidosas origens. Maldito nome que se prestava a tal tipo de trocadilho! Roubosvaldo, veja só!

Pois Robosvaldo ou Roubosvaldo acabou casando e tendo duas filhas. Ficou felicíssimo por terem nascido exatamente duas mulheres. É que Robosvaldo tinha uma paixão secreta pela botânica. Não que ele entendesse algo do riscado: lia, lia e não aprendia nada. Mas decorava os nomes lindos das plantas e de suas classificações. Dois em particular ficaram para sempre em sua cabeça: epífita e equinácea (a da foto!).

Não sabia muito o que eles significavam, apenas que epífita é um tipo de planta folgada e sem vergonha, que vive em cima das outras plantas, só curtindo com a cara delas. Já a tal da equinácea parece que era uma planta que os americanos usavam contra resfriado. Mais ou menos isso. Mas não tinha importância alguma, porque o que importava era só a lindeza dos nomes. Assim, quando suas meninas nasceram, lascou-lhes os nomes de Epífita e Equinácea.

Para esta, a primogênita, o funcionário do cartório não entendeu direito e pensou que o nome da menina era Inácia. E lavrou Equina Inácia. O que ficou sendo um problema para a criança. As colegas na escola a chamava de Eqüina (com trema, na época), Cavalar, Inácia Cavalona e por aí vai.

Já Epífita teve mais sorte durante algum tempo, até que, no secundário, colegas maldosos começaram a chamá-la de Epitáfia, desenhando lápides de túmulos nos seus cadernos e livros. A mãe, condoída da situação, conseguiu em juízo uma alteração de nome, passando a menina a chamar-se Epifalda, em homenagem ao pai. Não foi lá uma grande escolha, por que imediatamente ela passou a ser a Epifralda e os desenhos, agora, eram de pequenos cocôs estilizados.

É, os pais podem causar danos permanentes a seus filhos, por causa dos nomes que escolhem para eles, sem pensarem bem no que estão fazendo. É celebre o caso verídico, no interior de São Paulo, de um pai fascinado com os nomes americanos da fábrica de uma margarina em moda na época, a Anderson Clayton. Escolheu esses nomes para o filho. Mas, quer pelo falar caipira do pai, quer pelo entender caipira do homem do cartório, o menino foi registrado e arrastou vida afora o estrambótico nome de Adérso Creitão.


quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

ANGÉLICO INFINDO AMOR 
MILTON  MACIEL 

Chegou o Amor, inebriante, capitoso,
Quando eu errava pelo ervaçal da vida,
Amargurado, tendo a alma destruída,
Desfeita em pó, num percurso desastroso.

Foi quando, à beira de um regato murmoroso,
Eu avistei a mais incrível criatura,
Deitada ao sol, qual helênica escultura,
Tudo ofuscando, com seu brilho majestoso.

Era estonteante, a mais fantástica visão,
Que me foi dada nesta vida contemplar.
Ela se ergueu e então eu vi em seu olhar
Que ela seria a minha própria redenção.

Sorriu-me a musa, estendeu-me a bela mão,
Que tomei trêmulo, nas minhas, vacilante.
Surreal, a luz, que nascia em seu semblante,
Me penetrava, abrindo a mente e o coração.

Os rubros lábios continuavam descerrados,
Ela sorria... e era como se falasse!
E eu compreendia, sem que ela articulasse
Nada com a boca de alvos dentes nacarados.

Seus pensamentos permearam-me a consciência
E então eu soube que por ela era esperado.
E compreendi que meu lugar era a seu lado
E que ela há muito padecia minha ausência.

Só então pude entender completamente
Que eu não era, na verdade, um ser humano.
Por tanto tempo estive imerso nesse plano
Que acreditei ser um deles realmente.

A criatura iridescente à minha frente
Logrou, por fim, expandir a minha mente.
Eu soube que ela era um anjo e eu tinha sido
Por longo tempo, na Terra, um Anjo Caído.

Meu peito quase explodiu bem no momento
Em que entendi quem era a anja revelada:
Nada menos que a minha esposa amada,
A quem perdi – força de um Mau Encantamento.

Vaguei por décadas na Terra como humano,
Entregue ao mundo deletério das paixões!
Meu ser perdido nas mais torpes ilusões.
E crer-me homem foi o meu maior engano.

^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^

Ela me disse: Bem-vindo!
E eu me senti em casa.
Então beijou-me: Flutuei,
Como se tivesse asa.

Subindo alto notei
Que, de fato, eu tinha asa.
E ela voava comigo,
Me conduzindo pra casa.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

SÃO  SEBASTIÃO  DO 20 DE JANEIRO    
MILTON  MACIEL   

Saúde, São Sebastião.
Do meu Rio de Janeiro,
Que vida dura, mermão,
Tu se ferrô por inteiro!
E, nas mão duma cambada,
Morreu cheio de frechada.

Saúde pra tu, meu santinho,
Que eu te brindo, camarada,
Com a pinga deste copinho,
Que afanei duma namorada.
(O nome dela eu nem lembro,
Foi uma das de... Setembro).

Não faça cara de espanto
Porque o copo não tá cheio.
Acontece que o otro meio
Eu derramei pro otro santo:
O de cabeça, sacumé?
(E eu nem sei quem ele é!)

Não que eu tenha muita fé,
Mas eu que não vô arriscá.
O santo é de candomblé,
Vai que quera me ferrá!
E, por um pingo de cachaça,
Eu não quero mais desgraça.

Fé mesmo eu tenho é em tu,
Meu santo São Sebastião,
Trouxe água do Rio Guandu
E pinga do bar do Alemão.
Vim a pé lá de Bangu,
Prá nossa negociação.

Eu te ofereço os bagulho
E essa minha caminhada,
Que me deu um puta orgulho:
Seis quilômetro de esticada!
Sacrifício pra tu, meu santo,
Pra tu tirá meus quebranto.

São Sebastião das frechada,
Tu é o santo dos como eu,
Que vivo levando porrada.
Minha fé eu tu só cresceu.
É que tu é um santo ferrado,
Como este seu camarado.

Só nas mão dos meus patrão
Eu como cada cortado!
Mas tem uma coisa, mermão,
Não nasci pra sê empregado!
E nem patrão! Pra completá:
Não nasci pra trabalhá.

Agora, tocá meu pinho
E entorná minha cachaça,
Enroscado no corpinho
De uma bela cabrocha,
De uma mulata sestrosa:
Isso é que é vida gostosa!

Olha o que eu vim suplicá
No dia da tua festa:
Faz a Jurema voltá,
Aquela cabrocha honesta.
Ela diz que se cansô
E onte me abandonô!

Como a coisa vai ficá
Lá no meu barraco, agora,
Se a Jurema for embora?
Quem é que vai trabalhá?
Quem vai mantê, garantida,
Pinga, cerveja e comida?

Que eu tenho otras cabrocha
Disso se queixa a ingrata.
Ora, pior se eu fosse brocha,
Nem pra ela, nem pras gata!
Ora, pra ela tem sobrando,
Do que que está reclamando?

Por isso, meu santo ferrado,
No instante da minha aflição,
Ajude o seu camarado
E aceite a negociação:
Entenda a minha revolta
E traga a Jurema de volta!

domingo, 23 de fevereiro de 2014

ALLINE DE TROYES – 18a parte: O triunfo, afinal! (último capítulo) 
MILTON MACIEL 

Fim da 17ª. parte:
– Meu Mestre, meu Amor, aqui vou eu com vocês. Me esperem. Nem a morte vai nos separar...

Como que para confirmar o que dissera, teve a nítida visão dos rostos de Kelvin e Lucius, que se abaixavam sobre ela e diziam coisas que ela não lograva entender. Mas sabia que estava pronta para ir com eles. Abriu um amplo sorriso e um último laivo de respiração saiu de suas narinas.

18ª parte : O triunfo, afinal  

Alline descobriu que o outro lado da vida não era como esperava. Maravilhou-se ao perceber que não sentia mais as terríveis dores que dilaceravam seu peito. Mas estava confusa, porque não via nem Lucius nem Kelvin, cujos corpos mortos, crivados de flechas, tinha visto instantes atrás. Mas estava certa que entrevira fugazmente seus rostos amados debruçados sobre ela, portanto logo os encontraria.

Contudo o que ela via agora era um longo, amplo e escuro corredor à sua frente. De repente, pareceu-lhe que deslizava por esse comprido corredor e que, ao cortar o ar com grande velocidade, esse ar produzia um estranho som, como de asas de vespas, em seus ouvidos. O flutuar parecia interminável, mas, à medida que ele continuava, sua alma foi se sentindo cada vez mais calma. À memória vinham-lhe insistentemente os versos finais da Eneida de Virgilio, que tanto estudara com o bondoso e sábio irmão Ildasius, descrevendo a morte de Turnus, sob a espada de Eneias:

“Ast illi solvuntur frigore membra, vitaque cum gemitu fugit indignata sub umbras”

E pensava como sendo os seus os membros que enrijeciam sob o frio da morte, sua própria vida fugindo indignada para sob as sombras, as sombras desse corredor escuro, aparentemente sem fim, por onde deslizava sem parar, após sua morte.

Mas então um ponto luminoso apareceu a uma grande distância no túnel que lhe parecera antes infinito. E a luz foi ficando cada vez mais forte, porque ela se aproximava velozmente desse ponto. A luz começou a mostrar que as paredes do túnel não eram mais escuras e frias, mas que tinham uma luminosidade própria, que se definia, aos poucos como sendo de um azul cada vez mais claro e mais brilhante.

Então a luz a sua frente se fez enormemente mais regulgente. Alline teve certeza que aquela luz em muito excedia a luz plena do disco do sol de meio dia. Se ainda tivesse olhos da Terra, teria ficado cega instantaneamente. Mas, paradoxalmente, seus olhos podiam encarar toda aquela luz, no momento em que seu deslizar foi subitamente interrompido. Deveria estar suspensa no ar, a mais de duzentos passos daquela luz extraordinária, quando teve a certeza que ela emanava de um Ser superior, um Ser de Luz.

No exato momento em que teve essa percepção, um feixe de luz ainda mais forte saiu daquele Ser luminoso e envolveu o corpo espiritual de Alline completamente. E ela se viu também luminosa e resplandecente, seu corpo de mulher passando a perder seus contornos definidos de até então e a se converter numa espécie de aura luminosa prateada, esvoaçante, cheia de pontos luminosos de concentração de energia. Era como se seu corpo anterior, de formas terrenas, se tivesse dissolvido totalmente em luz, na luz descomunal que vinha daquele Ser superior.

Ao mesmo tempo em que se percebia incorpórea, dotada agora somente de um corpo de luz sem forma alguma, Alline começou a se sentir num estado de paz infinita, da mais total bem-aventurança. Do Ser de Luz, emanava a mais completa Felicidade, como ela jamais conhecera na vida terrena.

E, de repente, Alline de Troyes teve a mais ampla certeza de que aquele Ser de Luz era o Cristo. Não lhe via forma alguma, somente a incomparável luminosidade prateada. Mas não tinha qualquer dúvida de que estava frente ao Ser que os cristãos adoravam. Era dele que emanava a Felicidade Absoluta, a Paz Infinita. Alline deixou-se dissolver nessa Luz e nessa Bondade, completamente integrada a ela e reconhecendo agora que a morte era uma experiência infinitamente mais maravilhosa do que jamais pudera supor.

Estava nesse estado de êxtase absoluto, quando uma voz se fez ouvir no ponto onde ela estava. Surpresa, Alline teve certeza que a voz era do bondoso abade Sébastien, falecido anos atrás e a quem seu amado Lucius viera substituir na abadia de Troyes.  Também não teve a menor dúvida quanto à identidade de quem lhe falava, embora não o pudesse ver. E o abade lhe disse:

– Minha filha, deixe que eu mostre para você, em poucos segundos, toda a história de sua curta vida. Nada questione, apenas assista.

De fato, nos momentos seguintes, Alline viu sua vida inteira, numa sequência cronológica, desde o seu nascimento até o momento em que seu corpo se rendera à morte, dentro da tenda de prisioneiros dos alamanos proscritos de Walmaric. Numa profusão absurda de detalhes, nada deixou de ser mostrado e percebido, como se todos os seus dezessete anos e meio terrenos coubessem naqueles poucos segundos. Quando a visão acabou, Alline não tinha mais a sensação de paz e beatitude que experimentara até então. Tinha-lhe ficado agora a sensação de que algo lhe faltara completar em vida, uma premência de algo a realizar.

O abade então começou a ficar visível para ela. E ele era também um ser de luz, de luz pálida e transparente. E se fazia agora perceptível como figura luminosa, porque a grande luz que a tudo dominava começou a se afastar velozmente dentro do túnel. De dentro de seu modesto contorno diáfano, a voz do abade voltou a falar, repetindo os hexâmetros de Virgílio:

–  Ast illi solvuntur frigore membra, vitaque cum gemitu fugit indignata sub umbras.

E continuou:

– Agora você sabe, minha filha, que a morte de uma pessoa justa não tem nada a ver com um frio que enrijece os membros e, muito menos, com uma fuga da alma para sob as sombras. Pelo contrário, sua alma deixou o corpo inerte na Terra e veio integrar-se à Grande Luz. Você sabe que esteve ante o Mestre. E sabe que pode atingir um estado de total paz e plenitude.  Experimentou a bem-aventurança. Só que seu tempo ainda não chegou. Você terá que voltar.

– Como voltar, senhor abade? E por que voltar, se eu posso alcançar a Felicidade total aqui. Certamente aqui posso encontrar as almas de Lucius e Kelvin, que vi mortos também. Será que nosso encontro dentro da bem-aventurança não nos pode ser permitido?

–  Eu sei, minha filha, que esse encontro é o que você mais deseja em seu coração. Ele é, portanto, uma das razões de você ter que voltar à Terra. A outra razão é que sua missão lá ainda não está concluída. Ela é aquilo que você sentiu que ainda não está completo, que você tem que concluir. Por isso tudo a volta é imprescindível. Aproveite seus últimos instantes aqui neste plano, porque sua volta é iminente.

– Mas senhor, por favor, voltar será tão difícil agora que conheci a Paz!

– Creio que você não compreendeu que aqui você não poderá encontrar as almas de seus grandes amigos e companheiros.

– Isso significa que eles não alcançaram condições espirituais de virem para este lugar de Felicidade?

–  Não, significa que eles não alcançaram condições materiais de virem para cá!

–  Como assim, senhor?

– Por que, diferentemente de você, Alline, Lucius Dracus e Kelvin da Bretanha NÃO MORRERAM na Terra.

– O que?! Mas como, se eu vi seus corpos inertes, crivados de flechas?!

– Você viu, no escuro e nos estertores finais de suas forças, dois corpos de homens vestidos com as roupas de seus amigos. Mas esses corpos não eram deles.

Alline sentiu-se estremecer e, imediatamente, percebeu que seu corpo estava deixando de ser o corpo de luz sem forma de há poucos instantes atrás, para voltar a se definir como um corpo terreno de mulher. Perdia todo o seu brilho. Voltava a ver suas mãos, pernas e pés. Mas continuava suspensa no ar, naquele mesmo ponto do túnel. Estava, por assim dizer, ficando “humana” ou “terrena” de novo. O abade disse-lhe por fim:

– Pronta para partir, Alline de Troyes? Pois pode ir. A vida na Terra, para você, nunca mais será a mesma, depois desta experiência que você teve aqui hoje. Volte para os seus, porque é junto deles que você você viverá e completará sua grande missão terrena. Junto a eles e a mais três seres de grande Luz, que, cada um a seu tempo, entrarão também no planeta, através do milagre da sua maternidade. Serão seus filhos. Vá agora, o vento a levará de volta.

Alline sentiu-se suspender ainda mais no ar, seu corpo fez meia volta e o vento veloz passou a zunir em seus ouvidos como asas de vespas. Viu-se deslizar velozmente em direção ao ponto inicial do túnel, que foi ficando cada vez mais escuro, mais escuro, até que sua consciência se esvaiu completamente.

Despertou dias depois, num leito do hospital romano de campanha, na vila de Troyes, onde quatro homens velavam por ela. Estivera em coma profundo durante mais de duas semanas. Várias vezes ouviram-na falar como se dialogasse com alguém, frases desconexas e ininteligíveis. Outras vezes ouviam-na delirar, recitando longos trechos da Eneida de Virgílio em latim, da Odisséia de Homero em grego. Infatigável, o druida Kelvin jamais de afastou de seu leito, ao lado do qual colocou um rústico catre em que dormia somente um par de horas por dia.

Durante todo esse tempo, o mago lutou contra a morte de sua discípula mais querida e talentosa, com todas as armas de que dispunha em seu arsenal de práticas, medicamentos e encantamentos. Também Lucius Dracus não arredava pé dali. E, desde dois dias atrás, o centurião Caius Marcellus e o general Flavius Jovinus passavam ali a quase totalidade de suas horas despertas. Todos tinham razão para essa perseverança, porque o druida Kelvin lhes garantia, o tempo todo, incessantemente, que Alline de Troyes venceria a batalha contra a morte, assim como tinha vencido sempre todos os inimigos que enfrentara até então.

Foi no vigésimo dia após a peleja com o alamano Walmaric, que Alline de Troyes, finalmente sem febre, abriu os olhos e viu que, da névoa indefinida de sua visão ainda incipiente, delineava-se e fazia-se progressivamente mais clara a face de seu mestre Kelvin. Murmurou debilmente:

– Mestre...

Todos os quatro homens que ali estavam presentes voltaram-se vivamente para ela:

– Amor da minha vida! Deus seja louvado! – E Alline viu, com imensa emoção, o rosto amado de seu general abade, que lhe sorria embevecido e se abaixava para beijar sua face.

– Senhor Gilles de Troyes, seu gaulês incorrigível, como ousa dar tal susto em seus amigos leais?!  Será que quer receber aquelas cinquenta bastonadas? – e ela viu que quem falava, exultante de contentamento, era o ex-centurião e agora tribuno Caius Marcellus.

Finalmente sentiu que sua mão estava segura dentro de outra mão. Voltou a cabeça levemente e pôde ver o general Flavius Jovinus ajoelhado a seu lado. O general nada disse, porque não podia falar. Tinha o rosto banhado em lágrimas e a garganta travada. E olhava para sua pequena gaulesa com olhos de adoração. Ah, quem dera tivesse tido uma filha como aquela!

Nos dias seguintes, a convalescença de Alline foi prodigiosa. Depois de uma semana já podia até mesmo cavalgar. O tempo todo ela repetia palavras de reconhecimento a seu mestre druida, seu salvador. E este, contrafeito, o tempo todo proibia-a de repetir essas palavras. Embora já pudesse cavalgar, o general Jovinus mandou preparar uma carruagem especial, dentro da qual colocou a jovem gaulesa, para uma curta viagem até o acampamento romano de Catalaunum, onde uma nova fortaleza romana estava sendo construída por soldados romanos, mestres pedreiros e carpinteiros gauleses contratados e por cerca de seiscentos e cinquenta prisioneiros alamanos, entre os quais muitos dos que estiveram feridos e, tratados por Alline e um único enfermeiro romano, conseguiram se recuperar plenamente.

A visita de Alline de Troyes estava sendo ansiosamente esperada por todos aqueles homens. Romanos e alamanos, movidos pela gratidão e pela admiração que sentiam. E os quarenta gauleses contratados, movidos pela curiosidade de conhecê-la e pelo orgulho de terem uma compatriota tão heróica, a ponto de ser homenageada por toda uma legião romana.

Horas antes de chegar a comitiva de Alline a Catalaunum, o general Jovinus pediu ao tribuno Marcellus que enviasse um grupo de três mensageiros velozes à frente, para que, a pleno galope, dessem aviso da chegada dos dois ilustres homenageados. O próprio tribuno fez questão de ser um desses três homens. Uma das pessoas homenageadas era, evidentemente, Alline de Troyes. Mas o outro homenageado de honra era o general romano Lucius Dracus, lenda e orgulho das legiões de Roma, que agora, num movimento coletivo liderado pelo influente general Flavius Jovinus, inflamavam-se todas numa luta pela restauração da posição de seu grande líder perseguido e ameaçado de morte por Constâncio. Nos vinte dias em que Alline estivera entre a vida e a morte, velozes mensageiros percorreram todo o mundo romano, dando conta da verdadeira onda de revolta que varria todas as legiões do exército. Em centenas de lugares legiões inteiras ou coortes marcharam proferindo gritos de ordem em favor do general Lucius Dracus. A notícia da revolta, espalhando-se velozmente por todo o império, da Hispânia à Germânia, da Síria à Britânia, da Macedônia ao Egito, chegou rapidamente ao conhecimento do imperador Constantino.

Constantino convocou seus generais da corte para ver como poderiam controlar a revolta. Mas seus generais foram os primeiros a lhe mostrar que aquilo seria totalmente impossível. E a quase totalidade deles teve a coragem de se colocar a favor do movimento e confessar sua lealdade a Lucius Dracus. O imperador ficou em estado de choque, ao ver o prestígio daquele homem que ele mesmo mandara proscrever, a instâncias de seu filho primogênito. Bastara que os militares tivessem sabido que o general Dracus não tinha morrido, mas apenas se escondido para evitar os assassinos de Constâncio, para que todo o exército romano se insurgisse abertamente contra uma ordem de seu imperador. Constantino era um pragmático, um grande político e soube reconhecer que estava vencido. Afinal, não poderia contar com seus generais comandantes para fazer cumprir qualquer determinação contra os revoltosos. E os revoltosos eram, na prática, todos os militares de todas as legiões, incluindo-se aí seus próprios generais comandantes!

O imperador compreendeu que obstinar-se na defesa de sua ordem e na defesa de seu filho, poderia desestabilizar sua própria posição de líder supremo. E mais motivado ficou a mudar de posição quando um de seus generais lhe afirmou que a vida de Constancio não valia mais nada, face ao ódio que os militares passaram a nutrir por ele abertamente. E aconselhou o imperador que escondesse seu filho em algum lugar muito distante. E assim mesmo, só depois de uma pública retratação. O próprio Constâncio foi então convocado para uma reunião com os militares e o pai imperador. E compreendeu, apavorado, que poderia ser assassinado a qualquer momento por qualquer militar romano, de um soldado raso a um general. E que, em sã consciência, não poderia confiar em nenhuma guarda militar para escoltá-lo e protegê-lo.

E, como se isso tudo ainda fosse pouco, a família patrícia mais influente do império, justamente a do cunhado do tribuno Caius Marcellus, Eudorus, a quem Alline havia salvado da morte certa, encetou um poderoso movimento dentro do Senado, onde todos os dias oradores inflamados se erguiam para pedir a recondução de Lucius Dracus a seu posto de chefe militar. Alguns, mais exaltados, começaram a exigir a imediata punição de Constâncio. Isso tudo acabou levando o movimento para as ruas, onde turbas exaltadas começaram a marchar em Roma e em Ravenna, pedindo a morte de Constâncio. Em Constantinopla, sua casa foi apedrejada por populares e a guarda não fez absolutamente nada para impedir o ato de hostilidade.

Constâncio fugiu escondido em um navio mercante, disfarçado de marinheiro, mas não sem antes passar rapidamente por uma sessão do Senado, na companhia do pai imperador, única forma de garantir sua integridade física. Ali o filho mais velho do imperador ouviu violentas catilinárias contra suas atitudes mesquinhas de perseguição e expropriação de bens e contra suas tentativas de assassinar Lucius Dracus. Da galeria, populares o chamavam abertamente de covarde e de assassino. O filho do imperador leu então uma longa carta em que assumia seus erros, tributando-os à extrema lealdade para com o amigo morto por Dracus.

O senador mais idoso da casa levantou-se então e, num tom inflamado, mostrou quem era aquele bandido a quem o filho do imperador chamava de amigo e como esse tal amigo havia tentado matar Lucius Dracus à traição, atacando-o covardemente pelas costas com mais dois sicários a soldo. A morte dele por Dracus, ao defender-se, não fora nada mais do que um ato de justiça dos deuses para com um covarde invejoso.

Constâncio ouviu de cabeça baixa a oração fulminante do decano da casa e completou a leitura de sua peça de retratação pública, na qual pedia perdão ao general Lucius Dracus por seus erros acumulados e dizia que o imperador seu pai saberia como recompensar o general pelos prejuízos que o filho lhe causara. E findou assinando a carta de retratação na frente de todos os senadores. Saiu do senado escoltado por um grupo de civis armados e correu, disfarçado, para o cais, para embarcar no navio mercante. Ficou fora por quase um ano, tão escondido como tivera que esconder-se o general vítima de sua perseguição.

O imperador, então, leu um edito em que reintegrava o general Dracus no exército romano, numa posição dois postos acima daquele que ocupava ao ser destituído e exonerado. Todos os soldos que lhe seriam pagos nos anos de perseguição já estavam disponíveis no erário para que o general os sacasse quando quisesse. No mesmo documento, uma relação de todos os bens que foram expropriados do general reconhecia seu direito inalienável à reintegração na posse dos mesmos, sem que os atuais proprietários tivessem qualquer direito a restituição ou indenização por tê-los adquirido posteriormente à expropriação. Com isso o imperador se colocava bem com os militares, senadores e opinião pública, posto que, sabia-se em todo o império, quem havia ficado com quase todos os bens tomados de Lucius Dracus fora o próprio Constâncio. Finalmente, uma substancial quantia em ouro foi outorgada ao general como forma de indenização e compensação por todos os prejuízos sofridos. Dessa forma exemplar, Constantino resolveu definitivamente a explosiva crise que ameaçara seu império, e que ficou conhecida como a Grande Revolta por Dracus.

A recepção em Catalaunum
Quando o general e sua comitiva chegaram ao acampamento de Catalaunum, todos os homens explodiram em aplausos e gritos de saudação que pareciam não ter fim. Primeiro gritaram sem cessar o nome de Alline de Troyes, que alternavam com coros que homenageavam Gilles de Troyes. Mas o ponto mais alto da cerimônia foi quando o tribuno Caius Marcellus trouxe à frente do acampamento todos os alamanos prisioneiros e deu a palavra ao oficial Agenaric, a quem Alline também havia salvado de morte certa. O oficial discursou em sua língua, compreendido somente pelos seus, por Alline, Lucius e Kelvin, quando apresentou seus votos de gratidão e lealdade, por terem suas vidas salvas pela heróica gaulesa. E, numa demonstração impressionante desse reconhecimento, o oficial retirou de suas vestes um punhado de moedas de ouro. Esclareceu que ali havia uma moeda ou duas de cada um dos prisioneiros, cuidadosamente enterradas pelo acampamento, para serem usada nos dia em que, esperavam eles, reconquistassem a liberdade, para ajudá-los a voltar para casa. Mas, reconheciam, jamais poderiam ter como voltar para casa, se tivessem perdido a vida. E esta, eles a deviam, todos eles, à corajosa defesa que a gaulesa fizera, opondo-se à execução sumária deles, como tinha sido decidida pelos oficiais romanos.

Nesse momento, o oficial grego Aristides, que havia se tornado o intermediário entre os alamanos e os romanos, esforçando-se, para isso, em aprender cada dia mais palavras do idioma deles, pediu para falar e externou também sua gratidão a Aline, por tê-lo enfrentado, vencido e poupado em combate. E, principalmente, por ter evitado que ele e seus companheiros oficiais tivesse feito uma chacina totalmente desnecessária e inútil.

Alline agradeceu a todas as homenagens, tendo chegado às lágrimas quando os prisioneiros alamanos lhe deram as suas escassas moedas de outro, judiciosamente escondidas e seus potencias salvo-condutos para a longa e difícil volta à pátria, no meio da hostilidade geral dos gauleses. Alline pediu publicamente ao general Jovinus que mantivesse sob sua guarda aquela pequena fortuna e que, no dia em que os alamanos fossem libertados, todo aquele ouro lhes fosse restituído, moeda por moeda. O acampamento inteiro explodiu de novo em aplausos e vivas.

Depois disso foi a vez do general Jovinus apresentar à tropa o famoso general Lucius Dracus, que muitos já tinham conhecido pessoalmente e cuja história de glórias e perseguições estavam conhecendo agora. Outra extraordinária ovação explodiu em todo o acampamento, longa de vários minutos. Quando enfim teve silêncio suficiente para falar, Dracus fez uma rápida oração de agradecimento e apresentou a todos aquele a quem ele mesmo e Alline de Troyes deviam muito do que eram e a própria vida: o druida Kelvin da Britânia.

E então Lucius Dracus contou como o grande mago bretão, num ato de enorme capacidade e inteligência, havia salvado a vida de Dracus e a dele mesmo, ao agir rapidamente na noite em que Walmaric tentou matá-los. Com sua grande sensibilidade paranormal, o mago teve certeza que os romanos estavam muito próximos e que Walmaric, assim que percebesse isso, viria matá-los. Então, com a maior facilidade, ele se livrou da corrente que o prendia pelo tornozelo ao poste central da tenda. E, a seguir, como se os elos de ferro fossem de manteiga, desfez igualmente a ponta da corrente que prendia Lucius Dracus. Então os dois saíram silenciosamente da tenda e atacaram por trás os dois sentinelas, usando essas mesmas correntes para enforcá-los rapidamente.

Logo os dois trocaram de roupa com os sentinelas abatidos, colocando-os de borco no chão, com roupas de abade e de druida. E foram de postar de sentinelas à entrada da tenda, até o momento em que ouviram o primeiro toque da trombeta romana. Então correram para trás da tenda e tiraram as roupas dos alamanos, ficando quase nus. Pegaram as correntes e se manietaram um ao outro, superficialmente, para darem aos romanos, que chegariam ao acampamento abandonado pelos alamanos, a impressão de que eram o que eram na verdade: prisioneiros. Só assim poderiam evitar que os legionários os matassem sumariamente.

A ideia genial do druida funcionou a contento, exceto pelo fato de que não viram Alline atirando flechas contra os alamanos à entrada da tenda, nem a luta dela contra Walmaric. Quando os romanos chegaram, minutos depois disso, e os “libertaram” das correntes, eles foram direto à tenda para apanhar o que pudessem de suas coisas. Foi quando deram com o corpo de Alline, que agonizava. Gilles de Troyes expirou instantes depois, no colo de seu desesperado abade. Mas, ao lado deles, estava o maior curador da Gália e da Britânia. O grande mago Kelvin não aceitou a morte de sua amada discípula. E começou ali mesmo o seu trabalho hercúleo de ajudá-la a lutar contra as sombras da morte. Sua incrível percepção e sua inquebrantável fé lhe diziam que Alline sobreviveria. Pegou uma das carroças dos alamanos, atrelou cavalos a ela e foi ao lado de Alline para o pequeno hospital de campanha dos romanos em Troyes, não mais se afastando do lado dela até que ela voltasse a viver plenamente.

Foi a vez de explodir a terceira grande ovação no acampamento romano, onde o coro de vozes alamanas se fez ouvir distintamente também, saudando Kelvin da Britânia.

No coração do Império
Depois disso, começou a longa viagem de Lucius Dracus e Alline de Troyes até a capital do império, onde o general ia receber de volta tudo aquilo que lhe fora tomado. O general Flavius Jovinus os acompanhou, junto com toda uma coorte de elite, deixando o acampamento e o resto da legião sob o comando do competente tribuno Caius Marcellus. Com eles ficou também o druida.

Na capital, foram recebidos por uma multidão entusiasmada, que os acompanhou na passagem pelo arco do triunfo, que o imperador mandou erigir para  os três. Ali passaram o general Flavius Jovinus, o grande vencedor dos invasores alamanos. O grande general Lucius Dracus, honra e glória de Roma. E a incrível gaulesa Alline de Troyes, guerreira de incomparável técnica e coragem, que tinha salvado uma legião romana inteira e a quem o império teria que demonstrar sua grande gratidão.

Receberam as três coroas de louros e foram recepcionados no palácio pelo imperador Constantino. Este, depois de se estender longamente em pedidos de desculpas oficiais e pessoais ao general Dracus e de cumprimentar efusivamente o general Jovinus, anunciando-lhe sua nova promoção e o governo de uma grande parte da Gália romana, passou todo o resto da noite grudado em Alline de Troyes, por quem se mostrou absolutamente fascinado. Nunca tinha visto uma mulher guerreira como aquela e, de tanto lhe suplicar, ela acabou aceitando fazer algumas demonstrações de salto, tiro ao alvo com flechas e punhal e luta livre. Um joelho e dois narizes quebrados depois, quatro furos de flecha e três de punhal no primeiro círculo do alvo e a superação de obstáculos de dois metros de altura com um único salto, a gaulesa se converteu no mais novo fenômeno do império.

Na tarde seguinte, os mesmos três foram homenageados em uma sessão do Senado. Por iniciativa deste, a jovem gaulesa recebeu o reconhecimento de Roma materializado na posse de um enorme trecho de terras na Gália, espalhando-se por muitas léguas ao redor da abadia de Troyes, que passou também a pertencer a ela. E havia também uma respeitável quantia em ouro destinada a ela. Efetivamente, Roma soube ser grata a sua grande aliada: Alline de Troyes era agora uma mulher rica e poderosa.

E, para culminar a cerimônia, o general Flavius Jovinus leu um longo documento perante o senado, assinado por ele e por seu filho único Claudius, pelo qual o general adotava Alline de Troyes como sua legítima filha e herdeira. A surpresa e a comoção de Alline foram imensas. Sua gratidão, maior ainda. Com aquele gesto o general demonstrava clara e publicamente, que a amava como uma filha, justamente a filha que ele sempre quisera ter e nunca tivera. Já a assinatura e a mansa aceitação de Claudius de uma estranha para dividir com ele a futura herança do pai surpreendeu a todos. Mas o rapaz, de trinta anos de idade, pediu a palavra e explicou:

– Meu pai sempre quis ter uma filha e não teve. Meu pai sempre quis ter um filho militar corajoso e não teve. Mas agora esta moça, dona de uma história e de um caráter admiráveis sob todos os pontos de vista, aparece de repente na vida de meu pai e pode lhe dar, ao mesmo tempo, a filha que ele nunca teve e o guerreiro valente que ele nunca teve como filho. Eu, como um filho que respeita e ama seu pai, triste por não ter sido nunca aquilo que ele sonhou, só posso ficar muito feliz com a adoção da valente Alline de Troyes. E muito honrado fico em recebê-la como a irmã que eu também sempre quis ter e nunca tive.

O senado em peso aplaudiu longamente o rapaz. O pai, compreendendo pela primeira vez a tristeza que impunha ao filho continuamente, abraçou-o longamente e lhe pediu perdão por sua intransigência militarista. E disse que, daquele dia em diante, se esforçaria para entender seu filho como o poeta e o historiador que ele era, reconhecido amplamente nos melhores círculos intelectuais do império. 

Alline, comovida, aproximou-se dos dois e ambos lhes abriram os braços, ficando os três unidos por um longo tempo assim, na tribuna. Claudio aproveitou para falar-lhe suavemente ao ouvido:

– Não sei como lhe agradecer, irmã, por ter trazido tanta alegria e tanto entusiasmo à vida de nosso pai. E pode ter certeza, se foi tão fácil assim para você conquistar o coração dele, muito fácil também será conquistar o deste seu irmão.

Quando saíram do senado, foram todos para a casa do general Jovinus. A partir daquele dia, ele fez questão de hospedá-los em sua grande vila, que era agora também a casa de sua filha. E de uma hora para outra, aquele general Dracus, por cuja recuperação de prestígio ele tanto tinha lutado, passara a ser seu genro. De imediato se estabeleceu uma enorme relação de amizade entre Alline e Claudius, por causa dos interesses intelectuais em comum. Juntos ficavam horas a fio lendo e declamando poesia. Claudio tocava lira divinamente e Alline quis logo aprender a tocar o instrumento. Tentou o tempo suficiente para se convencer que nunca conseguiria fazer aquilo direito. Então falou para seu novo irmão:

– Acho que meu instrumento natural é mesmo um arco com flechas.

– Irmãzinha, você é demais! E claro que você aprende a tocar lira se quiser.  Aliás, acho que aprende qualquer coisa, já que aprendeu a quebrar narizes e salvar legiões. Já eu, não vou aprender nunca essas coisas que meu pai diz que são coisas de homem.

– Sim, irmão, eu compreendo você. E pode crer que eu admiro essa sua feminilidade. Pena que nosso pai não esteja à altura de reconhecer que alma nobre ele tem dentro desta casa.

– Pois é, você percebeu logo que meu negócio não é mulher. Mas eu tenho que fingir namoros e noivados, pagar mulheres para se passarem por noivas minhas, para não dar esse desgosto ao general Jovinus. Imagine, o grande general pai de um... um frutinha qualquer.

– Você não é um frutinha qualquer, meu irmão, você é o maior poeta latino da atualidade, no meu entender. Você disse que ficou honrado em me receber como irmã. Pois eu agora posso lhe dizer também que é uma enorme honra ser irmã do grande poeta Claudius Jovinus.

E, por todo aquele mês em que ficaram na casa do general Jovinus, Alline de Troyes e Claudius Jovinus se fizeram unha e carne. Não se largavam para nada. Alline foi ficando, no entanto, cada vez mais nostálgica, com saudade de sua vida simples no campo e, principalmente, na abadia. Desabafou com Claudius e ele passou a colocar isso em poemas, que musicou depois.

O retorno a Troyes
Depois desse mês na capital, o general Jovinus, sua filha Alline e seu genro Dracus empreenderam, com seus soldados, a longa viagem de volta à Gália. Ali, em Lutécia, Flavius Jovinus ia assumir seu novo posto de governador da Gália do Sul.

Lucius Dracus havia surpreendido a todos, generais, senadores e imperador, com uma inimaginável decisão: recém reintegrado ao exército, pediu baixa imediata e declarou para sempre encerrada sua carreira militar. Retirou seus soldos acumulados de vários anos e mandou vender todas as suas propriedades em Roma e Ravenna. Com a coorte que voltava para a Gália, ia, muito bem guardada, a fortuna de Lucius Dracus e a fortuna de Alline, transformadas em ouro puro.

Alline e Dracus tinham um plano certo e definido. Iam se fixar definitivamente em Troyes. O tio de Dracus, abade de Lugdunum, mantivera a abadia de Troyes sem a nomeação de um novo abade, esperando pela definição de seu sobrinho, que sabia agora um rico e influente militar reintegrado às pompas e glórias do império, mas que ainda era oficialmente o abade de Troyes. Foi com enorme surpresa que recebeu o convite de Dracus para que se deslocasse para Troyes, com a escolta que ele lhe mandava. Chegando à abadia, ficou maravilhado com o plano de seu sobrinho.

Este lhe fez ver que, embora o celibato estivesse se tornando uma norma não oficial para o padres, ele ainda não era obrigatório. A esta altura, o tio abade já era mais um fã apaixonado de Alline de Troyes. Por isso mesmo, ele aceitou o pedido de Lucius e oficiou o casamento cristão dele c Alline, que, soube-o antes, já estavam casados pelo druida Kelvin.

 A cerimônia foi o maior acontecimento de toda a região. O pai e os irmãos de Alline, agora todos funcionários residentes na abadia, os irmãos como professores, eram os convidados de honra. A mãe e a irmã, mortas de inveja, vieram apenas para pedir dinheiro, vestidos e jóias a Alline, no que não foram atendidas. Ofendidas, preferiram voltar para a fazendola da família, onde continuariam a viver, corroídas de despeito. A recomendação expressa de como tratar aquelas duas parentas partira do druida Kelvin.

Então, para surpresa e encanto de todos, Lucius Dracus foi confirmado pelo tio na posição de abade de Troyes, com o nome de abade Lucinus. O grande general romano abria mão de carreira e fortuna para continuar sendo apenas um abade católico, pronto a servir sua abadia e sua comunidade. O mesmo fazia sua esposa, a incrível e gloriosa Alline que, um dia, fora o jovem Gilles de Troyes.

Os cônjuges juntaram suas fortunas em ouro e as investiram em Troyes, construindo uma grande instituição de ensino; e reformando e fortificando o castelo da abadia, agora propriedade de Alline. E também construindo um verdadeiro e amplo hospital, para tratar os doentes de toda a região. A coordenação de toda a instituição de ensino e do hospital foi dada ao sábio druida celta Kelvin da Britânia. Outra parte dos recursos foi investida em atividades de produção de uvas e vinhos da nobre casta e em atividades agropecuárias outras, nas imensas terras recebidas de Roma por Alline. Centenas de pessoas passaram a ter emprego na abadia, nas escolas, no hospital e nas fazendas. E Troyes conheceu o apogeu de seu crescimento e desenvolvimento.

Dentro da abadia, nos mesmos aposentos que viram o alvorecer de seu amor, o abade Lucinus e a senhora Alline, para sempre deixados para trás, no passado, o famoso general Lucius Dracus e o ladino senhor Gilles de Troyes, dedicavam-se a dar continuidade à história de seu amor perene. O abade queria somente ser um bom cristão e um bom líder. E a gaulesa, por conseqüência da visão que tivera do Ser de Luz, entendia finalmente qual seria sua missão, o que havia confirmado também com Mestre Kevin.

Alline de Troyes seria uma boa cristã ela também. Mas não deixaria sua fé na Grande Deusa. E, como líder inconteste que era, trataria de fortalecer essa fé no coração das mulheres da Gália, iniciando, dentro da Abadia de Troyes, um movimento para formação de sacerdotisas celtas da Deusa, que teriam também o Cristo em seu coração. Essas mulheres seriam treinadas para serem guerreiras e sacerdotisas ao mesmo tempo. E casariam as duas tradições, a antiga, druídica e a nova, cristã, facilitando a transição para os novos tempos.

E, como lhe traduzira Mestre Kelvin, das palavras ouvidas por Alline do abade Sébastien na outra dimensão, os três seres de Luz que ela receberia em seu ventre, cada um no seu devido tempo, seriam:

– Um menino, que haveria de ser o sucessor e continuador da obra de seu pai, o grande abade Lucinus.

– E duas meninas, que chegariam para ser sacerdotisas celtas e as continuadoras da obra da grande Alline de Troyes.  FIM      (MM)

sábado, 22 de fevereiro de 2014

ALLINE DE TROYES – 17ª parte - A luta pela vida (penúltimo capítulo) 
MILTON MACIEL 

Fim da 16ª parte:
– Mas eles são prisioneiros. Estarão manietados, acorrentados!

– Outro engano seu. Eles não são somente prisioneiros. São Kelvin da Bretanha e Lucius Dracus. Eles estarão prontos, pode ter certeza! Eles lutarão. Nós lutaremos.

– Que os deuses os protejam, então, Alline de Troyes. Boa sorte. Vou preparar o cerco agora.

– Boa sorte, centurião. Estou entrando na floresta agora.

17ª parte: A luta pela vida (penúltimo capítulo)

Alline desapareceu rapidamente de vista e Caius Marcellus ficou por um momento olhando para o ponto da escura floresta onde ela havia sumido, pensando, admirado: que coragem! Embrenha-se sozinha numa floresta com mais de quatro centenas de bandidos da pior espécie, armada apenas com um arco, flechas e um punhal. Lá dentro os dois homens mais importantes de sua vida são mantidos prisioneiros, manietados, totalmente incapazes de se defender, que dirá de lutar. O centurião, por um momento, sentiu um aperto no coração. Algo lhe dizia que havia visto Alline de Troyes com vida pela última vez. Com iria sentir falta daquela gaulesa valente e generosa!... Mas teve que afastar de si esses pensamentos, porque precisava coordenar o avanço dos legionários na manobra de cerco ao acampamento dos alamanos de Walmaric.

Alline, travestida em Gilles de Troyes, avançou rapidamente, numa corrida veloz contra o tempo, exigindo o máximo de sua força nas pernas e de sua resistência respiratória. Levou mais de quinze minutos correndo, até avistar, ao longe, as luzes das fogueiras dos alamanos. Então parou de correr e começou a caminhar com muito cuidado, para não fazer nenhum ruído que pudesse chamar a atenção de sentinelas mais avançados. 

Quando chegou suficientemente perto, começou a circundar o acampamento a uma distância prudente, à procura de uma tenda que tivesse guardas postados à entrada. Finalmente conseguiu identificá-la. Ali estavam, com certeza, seus dois homens. Como sempre fazia em tais casos, Alline procurou uma árvore convenientemente alta e convenientemente próxima, do alto da qual pudesse flechar quem estivesse próximo à tenda dos prisioneiros. Subiu com muito cuidado, tratando de se movimentar apenas quando os sentinelas estavam voltados para o outro lado ou conversando entre si, encarando-se mutuamente. Quando se sentiu suficientemente segura e oculta, relaxou, preparou o arco para o arremesso, conferiu a firmeza da aljava e relaxou. Agora era esperar e tratar de fazer a calma imperar sobre o tumulto em que estava seu coração. Precisava o máximo de lucidez e sangue frio, para não falhar quando os alamanos viessem executar seus homens.

A gaulesa, viveu um instante de expectativa que parecia interminável, infindos minutos, até  que o fatídico toque de trombeta se fez ouvir repetidas vezes. O toque veio do norte e Alline compreendeu imediatamente a manobra de Caius Marcellus. Provavelmente um trombeteiro com, no máximo, uma centúria de legionários, devia ter se deslocado para o norte. Ao som de sua trombeta, os alamanos pensariam imediatamente em fugir para o sul. Mas tinha sido exatamente pelo sul que os legionários tinham chegado. Então, dispondo seus homens numa espécie de meia lua, com centro na posição sul, o centurião conseguiria abocanhar o grupo em fuga com um mínimo de deslocamento de sua tropa. Mentalmente, a jovem cumprimentou Caius Marcellus. Ali estava um centurião que, sem dúvida alguma, mereceria sua promoção a tribuno.

O soar repetido da trombeta romana despertou e causou o maior alarido no acampamento alamano. Todos os homens correram, já com suas armas, para preparar os cavalos para a fuga. Walmaric berrava como um louco, ao mesmo tempo em que afundava suas mãos dentro de um dos carroções, para apanhar sacos de objetos valiosos, que amarrou à sela do seu cavalo. Outros alamanos o secundaram, fazendo a mesma coisa. Imediatamente, eles seguiram a trilha deixada por seus companheiros montados, que já tinham se embrenhado desordenadamente pela mata, em direção ao sul, para fugirem dos romanos que vinham do norte.

Mas Walmaric, retendo alguns homens consigo, fez exatamente aquilo que o druida, Lucius e Alline imaginaram que ele faria. Caminhou rapidamente para a tenda dos prisioneiros. Do alto da árvore, Alline viu que eram onze homens ao todo, contando com o chefe. Os sentinelas não estavam mais lá, já haviam fugido. Mas onze eram homens demais! Quando eles se aproximaram da entrada da tenda, Alline ficou em pé sobre a árvore e começou a disparar suas flechas tão rapidamente quanto conseguia rearmar seu arco. Cinco homens foram atingidos mortalmente, mais dois feridos gravemente, antes que os alamanos atinassem que o ataque vinha de um único ponto acima deles, situado na copa de uma árvore alta. E não da legião romana, que já tivesse chegado.

Walmaric ordenou aos outros três homens que revidassem com seus arcos e eles passaram a alvejar a árvore de onde lhes parecia ter vindo o ataque. Alline, tendo que se abaixar e esconder atrás do largo galho que escolhera para ser seu escudo, viu angustiada quando Walmaric, armado de arco, entrou na tenda. Ela estava completamente impedida de fazer qualquer coisa. O desespero a invadiu e, por causa dele, ela fez algo impensável: jogou-se do alto da árvore, numa queda livre de mais de seis metros, tentando atingir o solo sobre os pés. Com inacreditável agilidade e destreza, resultado de centenas de saltos treinados com seu abade-general, conseguiu aterrissar na vertical, por trás do grosso tronco da árvore, flexionando as pernas para absorver a maior parte do impacto. Presos ao corpo, levava aljava e arco.

Com a surpresa, os três arqueiros alamanos se desconcentraram e, por instantes, não conseguiram localizar o alvo de suas flechas. Mas o mesmo não aconteceu com Aline: os três alvos eram perfeitamente focalizáveis. E detrás daquele tronco partiram as três setas que prostraram por terra os três saqueadores. Alline correu então em direção à tenda, a tempo de ver sair de dentro dela o cruel Walmaric, que tinha nos lábios um sorriso de triunfo. Ao ver aquele franzino gaulês com uma flecha apontada para ele, o chefe alamano deu um salto para o lado, impressionantemente ágil para um homem com toda sua corpulência, e a flecha que o atingiu cortou-lhe apenas a carne do ombro.

Walmaric armou seu arco antes que o gaulês rearmasse o seu e despediu sua seta. O homem foi atingido em pleno peito e tombou para trás, mortalmente ferido. Então o alamano correu para o inimigo e, sacando de sua espada, levantou-a para cortar o pescoço do homem. Mas nessa hora, de forma não só inesperada, como inimaginável para ele, o pequeno adversário ergueu-se parcialmente e afundou-lhe um punhal no ventre.

O bandido levou as duas mãos ao ponto da ferida e, reequilibrando-se, retirou o punhal de seu ventre e cravou-o fundo no peito do inimigo. Depois, ele mesmo tombou ao chão, de barriga para cima, perdendo muito sangue. Mas tinha a certeza que o maldito gaulês morreria e que ele poderia resistir, porque a área atingida não era letal. Precisava, contudo, rolar para a parte da mata cheia de arbustos e esperar escondido, torcendo para os romanos não o vissem.

Foi quando começou a se mover para levantar que viu o impossível à sua frente: o gaulês, com uma ferida de punhal no lado esquerdo do peito e uma flecha enterrada fundo no lado direito, esvaindo-se em sangue, estava de pé, sobre ele. Como é que aquele demônio não morria? Pois o homem pequeno fez algo ainda mais inacreditável: reuniu todo o restante de suas forças, agarrou a flecha com as duas mãos e, dando um grito impressionante de dor, arrancou-a de um só golpe do fundo ferimento. E a seguir, reposicionando-a nas duas mãos, abaixou-se sobre Walmaric e espetou-lhe fundo o peito, na altura do coração.

Uma última surpresa colheu o cruel Walmaric, que morria, quando o gaulês falou, no mais perfeito idioma alamano, entre gemidos e palavras entrecortadas:

– Irônico: Você me mata com meu punhal e eu mato você com sua flecha. É o fim, maldito! Para nós dois... Que o inferno lhe seja... pesado...

A última visão da vida do bandido alamano foi a de um pequeno gaulês claudicante, que se arrastava pelo chão, apoiado em um arco, em direção à tenda dos prisioneiros.

Quando Alline de Troyes conseguiu penetrar na tenda e seus olhos se acostumaram à pouca visibilidade proporcionada pelas  fogueiras lá fora, sua pior expectativa foi brutalmente confirmada:

Ali, deitados de costas, o homem com roupa de druida tinha duas flechas cravadas profundamente nas costas. E o homem com vestes de abade tinha três flechas nas costas. O maldito alamano os tinha flechado enquanto dormiam, de barriga para baixo.

Alline de Troyes, no limite de suas forças, sentiu-se feliz por estar às portas da morte. Não havia mais por que lutar e resistir. E suas últimas palavras, mais pensadas do que faladas, pois voz não havia mais, foram:

– Meu Mestre, meu Amor, aqui vou eu com vocês. Me esperem. A morte não vai poder nos separar...

Como que para confirmar o que dissera, teve a nítida visão dos rostos de Kelvin e Lucius, que se abaixavam sobre ela e diziam coisas que ela não lograva ouvir. Mas sabia que estava pronta para ir com eles. Abriu um amplo sorriso e um último laivo de respiração saiu de suas narinas.
CONTINUA: Há um triunfo, afinal  (último capítulo)