quarta-feira, 31 de julho de 2013

Os Dois Guris - 4a. parte - FINAL

OS DOIS GURIS - 4a. parte - FINAL
MILTON MACIEL

O facão de Tonhão desceu com velocidade impressionante em direção ao pescoço do negro. E o atacante gritou, triunfante:

– Lo dególo!

Mas o facão passou pelo nada, o negro grande e barrigudo, no último momento, tinha pulado para direita, já abaixado. Tonhão golpeou com tanta força, da direita e do alto, para a esquerda e para baixo, que se desequilibrou, fazendo um giro de meia-volta. No mesmo instante sentiu o primeiro planchaço.

O negro batia nas costas dele com a facão de chapa, um, dois, três golpes, sem usar a ponta da arma. Era a desmoralização total: ele atacava de ponta e de corte, para matar e degolar, o outro contra-atacava de planchaço, para não matar, só debochando dele. De costas como ele tinha ficado, era só o negro enfiar-lhe o facão entre as costelas e ele era um homem morto. Bueno, sorte dele e azar do negro que o desgraçado fosse se meter a debochado. Pois agora ele ia ver.

Virou-se rapidamente e viu que o negro estava de novo parado, imóvel, com o facão na mão abaixada ao lado do corpo. Mas desta vez o bandido olhou por um momento nos olhos do negro. E o que ele viu não era deboche. Os olhos do outro homem eram agora de uma frieza mortal. E ele falou:

– Vem, seu porquera. Vem de novo, que eu vô te ensiná a última lição!

Tonhão compreendeu que agora era tudo ou nada. Aquele negro não era um qualquer. Dava para ver agora que também ele sabia muito bem como pelear de facão. Por isso não podia errar o seu bote. Desistiu de atacar no pescoço e visou a barriga grande e estufada do negro alto. O diabo era mais alto que ele pra mais de palmo. Por isso mesmo, calculou num segundo onde tinha que enfiar a ponta do facão na barriga e atacou de repente, dando um único grito:

– Morre!

Mas o negro veio do nada com aquele facão de baixo para cima e aparou o golpe, lâmina com lâmina, fazendo saltar chispas pelo ar. E o homem tinha tanta força, que, ao erguer o facão de Tonhão para cima, ergueu junto o braço e os pés do bandido, que chegaram a desgrudar um pouco do chão.

Qualquer outro homem menos forte teria largado o facão, que seria arremessado metros de distancia para cima e para o lado. Mas Tonhão segurou firme o cabo. Foi seu erro.

Seu braço subiu com o facão e ele apresentou o peito para o negro. Que, num gesto inacreditavelmente rápido, baixou e recuou o braço e, a seguir, levou-o para frente como uma mola, bem à altura do peito do outro. Todos viram quando a ponta do facão apareceu, um pouco avermelhada, nas costas de Tonhão Dureza.

O melhor facão do Rio Grande caiu de joelhos, com os olhos arregalados, as duas mãos pegando o facão do negro pelo cabo, que sobressaía de seu peito. Tentou puxá-lo para fora, mas não teve forças para tanto. Quis falar um desaforo para o negro, que estava de pé em frente a ele, de braços cruzados, mas alguma coisa líquida encheu a sua garganta e a voz não saiu mais.

Fazendo força, o bandido conseguiu se firmar sobre os pés e começou a levantar. Era impressionante ver aquele homem grande, todo ele um lanho só avermelhado, com aquele facão enorme atravessado no corpo. Mas ele não terminou de levantar. Caiu desequilibrado para trás e ficou deitado no chão. Todos viram que o facão oscilava para cima e para baixo, cada vez mais devagar. Depois parou completamente. Tonhão ficou imóvel, de olhos arregalados olhando a nuvens. O chefe de estação decretou:

– Tá morto o infeliz. O diabo veio buscá mais uma alma. E agora, o que vamo fazê com ele?

– Ora, dá parte pra polícia é que nós não vamo – falou, experiente, o chefe de trem – É melhor vocês levarem esse maldito pro mato, enterrem bem fundo pra não aparecê de novo como assombração. Você não concordam?

Todo mundo falou que sim. Dali a pouco todos começaram a aplaudir Seu Artur. É que os dois piás tinham pulado da charrete em cima do negro e ele agora segurava cada um sentado em um de seus braços enormes, no colo. Na charrete, a menina chorava de susto, de medo de sangue e de alívio. Parecia milagre de Deus, estava livre, não ia ter que se abrir para aquele monstro!

O Menorzinho passou os dois braços ao redor do pescoço largo e suado do negro e começou a beijar as gordas bochechas bonachonas. Seu Artur era de novo a figura tranqüila, quase maternal, de sempre, o ídolo da molecada da fazenda e do Vacaiquá inteiro.

O chefe de estação mandou dois funcionários pegarem o carrinho de mão, amontoarem ali dentro Tonhão Dureza – com facão e tudo, que o negro não quis mais saber dele. Levaram duas pás e tomaram o rumo do capão de sina-sinas, ao redor da Sanga Funda.

– Não deixem marca, espalhem terra e pasto por cima de tudo, não quero sabê onde botaram esse monte de estrume. E depois vocês me voltem aqui, pra lavá toda essa sangüera aqui da frente.

O chefe de trem apertou a mão de Seu Artur, depois que os moleques correram para cima da charrete, para confortar a menina.

– Sim senhor, Seu Artur. Bem que corria um zum-zum por aqui que o senhor tinha sido soldado na revolução de 23. Pois agora todo mundo viu que é verdade. 

O negro soltou sua risada bonachona:

– Que soldado, que nada, seu Xavier! Um peleei em duas revolução, mas sempre contra o governo, contra os soldado. Muito deles acabaram que nem esse maula aí, na ponta do meu facão ou da minha lança. Mas isso é cosa passada, é cosa feia, eu nunca mais quis sabê de violência e de morte. Mas esse bandido, dizendo que ia fazê mal pras minhas criança, não me deixô outra saída. Olhe, vô le dizê, Seu Xavier, faz para mais de trinta ano que não sei o que é matá um homem. Mas, se Deus quis assim... Bueno, paciência. Se tive que respondê inquérito...

– Que inquérito, que nada, homem! Se tivesse, tu tem aqui mais de 30 testemunha pronta pra jurá que o bandido te atacô pelas costa e que tu só te defendeste. A começá por mim. Mas fica sossegado, tchê. Chegando a Dom Pedrito, vou procurá o sargento Melcíades, que acontece de ser meu cunhado. Conto tudo pra ele e ele providencia que a polícia civil nem se meta no caso. Pode considerá o teu caso mais arquivado que o corpo daquele desgraçado.

– Bueno, Seu Xavier, sendo assim eu le sô mui grato. E agora preciso ir andando, que a gurizada deve de tá loca pra chegá na fazenda e se retoçá com os petiço deles e com as brincadera toda. Isso sem falá que a dona Mimosa tá esperando eles com tudo que é tipo de doce que ela sabe fazê. Entonces vô saindo, buenas, até mais ver, E, otra vez, grácias por tudo.

O chefe de estação interveio:

– Mas bah, tchê, tu não tem que agradecê nada. Nós é que temo que te dizê obrigado porque tu nos livrô desse encrequero. E tu é um herói, tchê, tu salvô solito três criança. Tu vai é entrá pra história de Vacaiquá, de Dom Pedrito.

E, ante essas palavras do chefe de estação, ouvidas por todo mundo, uma nova onda de aplausos partiu dos passageiros ali reunidos.

O negro subiu na charrete, fez sinal com a boca para os cavalos e estes começaram a trotar suavemente pela estrada de terra. Ali em cima uma Angélica finalmente alegre ria e conversava com os dois guris. E se desmanchava em agradecimentos a eles, chamando os dois de grandes heróis, contando para Seu Artur tudo o que os dois endiabrados tinham craneado e feito contra o bandido que a levava à força para ser mulher dele.

Os dois guris não podiam estar mais orgulhosos. Alguma dúvida de que eram machos gaúchos? Alguma dúvida de que tinham coragem pra dar e vender, pra enfrentar criminoso ladrão de diligência? Dez e oito anos! Não eram mais crianças, era homens feitos, machos barbaridade!

Quando a charrete chegou à fazenda, já havia um ajuntamento de gente esperando por ela na porteira. É que Lair Vesgo, um peão da fazenda vizinha, tinha assistido tudo, estava na estação esperando por uma carta que não veio. E antes que Artur tocasse a charrete da frente da estação, já o vesgo tinha partido a todo galope e chegara à fazenda dos vizinhos mais de dez minutos antes da chegada da charrete. Todos já sabiam da briga, do feito de Artur, todos por ali já conheciam de nome o tal bandido Dureza. Estavam orgulhosíssimos de seu peão, o heróico Artur Coelho.

Dona Mimosa, feliz demais com o relato que seus sobrinhos estavam chegando e que não precisaria temer pela segurança deles. Por que seria, no entanto, que o bandido quis matar as crianças? E quem era a tal mocinha que vinha com eles na charrete?

Quando chegaram, os três homens foram recebidos com efusão. Artur, cumprimentado por todos como herói, foi logo contando que heróis mesmo eram os meninos de Livramento, eles é que tinham enfrentado o bandido sozinhos, eles é que tinham resgatado a menina que o safado levava a pulso para ser mulher dele.

Os quatro filhos de Doma Mimosa, que tinham de 18 a 25 anos, estavam interessados era na loirinha bonita. Quando todos souberam da história da garota, se assanharam ainda mais. Mas a mãe deles foi calmamente até à charrete e pegou o chicote de ponta avermelhada de Seu Artur. Brandiu-o uma vez no ar com destreza e falou:

– Olha aqui o que espera qualquer um, filho meu ou não, que se meter a desrespeitar essa menina. Entra no chicote! E vou ser eu mesma a dar surra primeiro. Depois ainda peço pro Artur terminar de sovar o desgraçado. Tudo mundo entendeu bem? 

Ô, se tinham entendido! E a madrinha do Menorzinho continuou:

– Venha, minha filha, esta casa é sua. Eu não vou consentir que você volte para um pai monstruoso, que jogou você num carteado e entregou você para um bandido. Você fica aqui comigo até o dia que não quiser mais. Eu vou tratar você como uma filha e os meus filhos vão ter que tratar você como uma irmã.

 F I M 

terça-feira, 30 de julho de 2013

Os Dois Guris - 3a. parte

OS DOIS GURIS - 3a. parte
MILTON MACIEL

RESUMO da parte 2: Os dois guris decidiram libertar a garota das garras do bêbado Tonhão Dureza. Para isso manietaram o bêbado que dormia pelas botas, acordaram-no na hora em que o trem fazia uma acentuada curva à esquerda e abriram de repente a janela. Uma lufada de fumaça da locomotiva entrou e encehu os olhos do homem de fuligem. Pretestando ajudá-lo e dizendo que foram buscar água para lavar os olhos dele, na verdade jogam neles o conteúdo de um vidrinho com VINAGRE, que pegaram no carro restaurante. Fazem isso no momento em que o trem está parando na estação da Música, em Vacaiquá, onde os moleques são esperados pelo bonachão peão da fazenda da madrinha, o negro Artur Coelho. Descem do trem levando a mocinha com eles e, quando estão para sair da estação na charrete, levam o maior susto vendo que o bandido já conseguiu se recuperar e, saindo do trem, investe contra eles, empunhando um porrete:

– Desgraçados, eu mato os três!

O grito vinha de um homem com a camisa toda ensangüentada, com a testa cortada sangrando, com os olhos vermelhos como dois tomates, que trazia um enorme porrete na mão. Era Tonhão Dureza, no auge de sua fúria! O que falhou no plano dos meninos foi o tempo de recuperação de Tonhão, muito mais rápido do que eles imaginaram

PARTE 3
Assim que o vinagre foi jogado em seus olhos e a ardência ficou dez vezes pior, a bebedeira completamente dissipada, o homem deu um pulo do banco, para correr para a torneira do banheiro. Mas não contava com aquela coisa enrolada em suas botas. Caiu feio e rebentou a testa no encosto de um banco. O sangue esguichou sobre a camisa.

Quando viu a corda nos pés, através dos olhos em fogo, compreendeu imediatamente o que tinha acontecido. Traição! Aquilo era coisa daqueles dois moleques do diabo. Tinham armado aquilo tudo contra ele. O cheiro de vinagre era inconfundível. O gosto dele, misturado com sangue, também o era. O maldito guri tinha jogado vinagre nos olhos dele! Nos dois olhos! Ah, mas ele ia degolar os dois desgraçados! E também aquela puta que tinha fugido com eles, ela que era propriedade legítima dele, ganha em jogo honesto, dada com concordância plena pelo pai, que era o dono anterior.

Sentou no banco, levou a mão às costas, que veio de lá com a adaga afiada e cortou a corda fina que prendia suas botas uma à outra. Aí, deixando a adaga sobre o banco, correu para o banheiro e foi lavar os olhos em água corrente abundante. Em pouco tempo a sensação horrorosa nos olhos foi passando e ele já conseguiu olhar para fora. Na certa os desgraçados tinham descido ali, naquela estação de Vacaiquá. E foi aí que os viu, os três, já fora da estação, se aproximando de um negro alto e gordo, parado à frente de uma charrete. Correu para o banco, para pegar a adaga, com a qual ia degolar aqueles três filhos da puta.

Mas, quando chegou ali, não viu adaga nenhuma. Olhou ao redor, algum daqueles desgraçados tinha tido a coragem de roubar a adaga de Tonhão Dureza! Mas não tinha tempo de fazer nada agora, tinha que pegar aqueles três antes que eles sumissem com a carroça. Ia ser na mão mesmo, estrangulava todos. Quando saiu dali, uma mulher grávida pôde enfim se livrar do problema de uma adaga que estava incomodando sua bunda pesada.

Tonhão Dureza soltou um urro, correu para a plataforma de descida, esbarrou e jogou do vagão, ao chão lá fora, o Chefe Xavier. Já na estação, viu um monte de madeiras velhas. Pegou um toco de sarrafo, que lhe serviu de porrete. Ah, mas agora ia quebrar em pedaços a cabeça de cada um daqueles piás malditos e também a daquela maria-mijona.

A menina foi a primeira a notá-lo e gritou apavorada:

– O Tonhão! O Tonhão! Ele vai me matar!

Os guris se viraram para ver e levaram o maior susto com aquela verdadeira assombração toda manchada de sangue. O homem vinha que nem um louco, ia bater neles também, sem dúvida. Gritaram para seu Artur:

– Acode, Seu Artur. É um bandido que assalta diligência! Qué nos matá!

Artur Coelho, viu o perigo, não se importou em saber o que era aquilo, apenas que o sujeito avançava com um porrete contra suas crianças. Sua cabeça treinada de ex-combatente de duas revoluções registrou rápido: era o inimigo!

Com uma velocidade impressionante para seu porte rotundo, virou-se para a charrete a apanhou o chicote. E deu dois passos em direção ao homem que avançava rápido. Tonhão estacou e rosnou entre dentes:

– Sai do caminho, negro de merda! Não te mete que isso é coisa minha. Aqueles dois bosta tão robando a minha mulher! Desafasta!

– Desafasta tu, seu loco! Quem tu pensa que é, pra ameaçá os meus guri?

– Pois eu sô Tonhão Dureza! Nunca ouviu falá? Parece que não, senão já tava se borrando de medo. Sai da frente, negro, senão eu quebro primero a tua cabeça e depois esmigalho os miolo daqueles piá. Se tu qué vivê, não te mete, não diz que eu não te avisei, seu tição retinto, seu filho duma... Ai!

Um silvo agudo no ar precedeu a chegada da ponta do relho na cara de Tonhão Dureza. Um enorme lanho cortou-lhe a bochecha do lado direito e mais sangue começou a sair na hora. Aí Seu Artur, com uma destreza impressionante, começou a dar chicotada atrás de chicotada no homem parado, que largou o porrete para tentar se defender com os dois braços, procurando proteger a cara das batidas. Mas era inútil: uma saraivada de lategaços cobria-lhe o corpo todo, que sangrava por todos os cortes, rasgada em tiras a camisa e até a bombacha.

Tonhão Dureza caiu ao chão, deixou-se ficar numa posição fetal, os braços lanhados protegendo o rosto, enquanto o negro grande continuava a bater nele com o relho, com toda sua força. Depois de alguns segundos, vendo que o homem ficava quieto, Seu Artur olhou ao redor e viu que o chefe de estação, o chefe de trem e outros funcionários da viação férrea estavam ali ao redor. Viu também que os passageiros vinham descendo em massa do trem, para poderem ver ainda melhor aquilo que se passava em frente à estação. O negro falou:

– Vocês pode fazê o favor de levantá esse coisa ruim do chão? Bota ele de volta no trem e ele que vá s’imbora pra sempre daqui.

Os funcionários da ferrovia apressaram-se a erguer o homem. Nunca na vida que podiam esperar que o negro Artur, a pessoa mais risonha e de mais boa paz que conheciam em toda aquela linha de trem, pudesse derrotar dessa forma o afamado Tonhão Dureza. Que sova de laço que o negro tinha dado no desgraçado! Aquilo estava era desmoralizado agora, pra sempre, que fosse embora com o rabo no meio das pernas, curar suas feridas.

Mas não foi o que se viu. Assim que se viu em pé e firme em suas pernas, assim que viu que ele era um lanho só, sangrando por todo o corpo, ardendo como se tivesse entrado picumã com vinagre em cada corte daqueles, o assassino Tonhão Dureza ficou ensandecido:

– Tu acha que tu me ganhô, negro de merda, só porque tu me pegô a traição com esse relho. Queria vê se fosse na briga de facão, tu tava era varado agora! Mas fica sabendo tu duma coisa: Tu é um negro morto! Tu não me escapa, desgraçado. E nem esses piá de bosta. E essa mijona aí. Eu até posso ir agora, que to mui cortado. Mas vocês não perde por esperá, eu volto e acabo com todos vocês. Com todos, não escapa um, entendeu?!

Seu Artur sacudiu a cabeça para os lados, deu um longo e alto suspiro e disse:

– Bueno, eu não queria fazê isso, mas tu não me deixa escolha. Então é tu ou eu. Pior, é tu ou os meus piá e a prendinha ali. Bueno, então tá decidido: vai sê tu!

E, ante o olhar surpreso dos presentes, mais de 30 pessoas ao redor, o negro grande falou:

– Tu disse que se fosse no facão a coisa ia sê outra. Pois bem, olhem aqui o facão que eu tô tirando da charrete. Alguém tem um aí do mesmo tamanho?

O chefe de estação disse que tinha e Seu Artur pediu que ele fosse buscar lá dentro. O chefe voltou em dois tempos e o negro falou:

– Bueno, entrega pra esse maula, tira da bainha, a briga não vai sê de planchaço. É batalha de vida ou morte. Daqui só sai um vivo.

– Tu tá morto, negro do diabo! – gritou Tonhão Dureza, pegando o facão e já pulando em direção a Seu Artur Coelho – Todo mundo sabe que Tonhão não tem rival no facão. Sô o melhor nisso em todo o Rio Grande.

E desferiu seu golpe mortal em direção ao pescoço do negro, que continuava imóvel no mesmo lugar, com o facão pendente na mão direita, ao lado do corpo. O olhar do negro parecia de puro deboche, havia um sorriso nos lábios daquele maluco.

O ajudante de maquinista fechou os olhos, murmurando:

– Negro loco, não se defende, o outro vai acabá com ele! Arranca-lhe a cabeça fora!

O facão de Tonhão desceu com velocidade impressionante em direção ao pescoço do negro. E o atacante gritou, triunfante:

– Lo dególo!

Mas o facão passou pelo nada, o negro grande e barrigudo, no último momento, tinha pulado para direita, já abaixado. Tonhão golpeou com tanta força, da direita e do alto, para a esquerda e para baixo, que se desequilibrou, fazendo um giro de meia-volta. No

CONTINUA 

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Os Dois Guris - 2a. parte

OS DOIS GURIS - 2a. parte
MILTON MACIEL

RESUMO da 1a. parte:

Dois meninos, de 8 e 10 anos, viajam sozinhos num trem e aprontam de tudo, Até que entra no trem um homem mal-encarado e bêbado, trazendo uma mocinha chorosa a pulso. O homem dorme e os guris conversam com a menina, quando ficam sabendo que o homem é perigoso e a ganhou do pai dela num jogo de cartas. Ela a leva à força, para ser mulher dele. Os meninos ficam indignados:

– Mas nós podemo te ajudá – falou, inchando peito o Maiorzinho. Deixa com a gente.

– Mas o que vocês podem fazer? – estranhou a mulher grávida.

2a. PARTE:
– Pois nós vamo denunciá isso pra autoridade, ora!

E saiu, levando a reboque o Menorzinho, à procura do chefe de trem. Quando o encontraram, derramaram aflitos tudo o que sabiam. Mas o Chefe Xavier desconversou:

– Não é que eu não possa fazer nada. Sou a autoridade máxima no meu trem. Nem preciso dos outros funcionários, como vocês disseram, posso muito bem dar uma sumanta de pau nesse tal de Tonhão sozinho, já cansei de fazê isso, sou muito do macho e me garanto. Mas nesse caso, não posso me meter. O homem ganhou a menina num jogo honesto e o próprio pai entregou ela. Então está tudo certo.

– O senhor acha certo uma moça ter que virá mulher dum bandido só porque o pai dela qué? O pai dela que é um borracho sem-vergonha também? – objetou o Maiorzinho.

– Se fosse tua filha, o senhor entregava?! – berrou-lhe na cara o Menorzinho.

Mas não teve jeito, o chefe Xavier fez meia-volta e foi para outro vagão, deixando os meninos indignados.

– Covarde! – exclamou o Maiorzinho

– Tá se cagando de medo do tal Tonhão, esse velho mentiroso. Bueno, a aí? Como é que fica a situação da guria, então?

– Vamo tê que salvá ela nós mesmos – inflou o peito de novo o Maiorzinho. Eu me garanto!

– Pois eu também me garanto! Não tenho medo desse borracho. Vamo pensá no que nós podemo fazê pra tirá a guria dele.

E os dois foram para o carro restaurante, sentaram à mesinha e começaram a traçar um plano. Depois de uns vinte minutos, voltaram a seu vagão. Tinham um plano enfim. E vinham com uma arma secreta na mão do Maiorzinho. Graças a Deus que tinham sentado àquela bendita mesinha! E graças a Deus, também, que tinham levado picumã pelas fuças e pelos olhos!

Voltaram para o vagão deles e foram falar com a menina e com a mulher grávida.

– Escuta, nós temo um plano. Tu foge com a gente do trem, quando chegá a nossa estação – disse o Maiorzinho, confiante.

– Só que tem que sê já, porque a nossa estação é a seguinte, a gente sabe – afirmou o Menorzinho, enérgico.

A mulher grávida objetou:

– Mas e o borracho? Se ele acorda antes, como é que vai sê?

– É, ele não vai me deixar sair do vagão. Agora ele é meu dono.

– Mas ele tem que acordá antes! Nós dois vamo fazê ele acordá. Tu só tem que dizê se aceita fugí com a gente, só isso!

– Aceito! Pior do que eu estou, não tem como ficar. Eu vou!

– Pois então a senhora nos dá a corda da sua canastra?

A mulher grávida abaixou-se, retirou a corda com a qual dera várias voltas ao redor da canastra, protegendo-a para que ninguém abrisse as duas tampas e deu-a ao Menorzinho. O pequeno esgueirou-se imediatamente no espaço à frente das pernas da menina e começou a passar a corda ao redor das botas do bêbado adormecido. No fim pediu à garota:

– Me ajuda a dá um nó bem apertado, eu não tenho força sozinho. Puxa duma ponta que eu puxo da outra, ó... Isso, assim!

– Agora vamo cuidá as curva, tchê! – ordenou o Maiorzinho.

E ficaram olhando para ver quando a locomotiva faria uma curva à esquerda. Só que isso nunca acontecia. E estrada era uma reta sem fim, duas curvas surgiram apenas, mas foram para a direita. O Menorzinho começou a ficar aflito.

– Puxa, tchê, que barbaridade, essa maria-fumaça só vira pro lado errado. Será que falta muito poco tempo pra chegá na estação da Música?

Como resposta o Maiorzinho apenas lhe ditou nova ordem:

– Anda, diz pra guria saí do banco e vai pro lado do homem. Vai dá tudo certo. Eu já to com os trinco aberto, na curva eu levanto a janela sozinho, sô muito macho pra fazê isso sem precisá de ninguém mais.

O Menorzinho assumiu o novo posto, a garota saiu para o corredor. Segundos depois o Maiorzinho avisou:

– Tá virando, tá virando! É agora. Acorda o bruto! Grita! Sacode ele!

O Menorzinho começou a gritar no ouvido do bêbado, que mal se mexeu. Deu-lhe dois tapas na cara, descarregando a raiva que tinha dele, O homem abriu os olhos, olhou para ele inexpressivamente e preparou-se para seguir dormindo. Ô bêbado maldito, duro de acordar.

– Vai, vai, acorda o bicho, faz ele abrí os ólho. Agora, seu flocho! Os ólho, os ólho!

O menorzinho, em desespero de causa, e por não saber mais o que gritar no ouvido do bebum, começou a berrar, cantando uns versos que havia aprendido na escola, com os colegas maiores:

“Quem diz que cagá não custa,
Tá muito mal enganado.
Um sorete curto e grosso
Trás um cú atropelado.”

Seja como for, funcionou. O homem sentou direito no banco, arregalou bem os olhos para tentar entender onde estava e...

E nesse momento, o Maiorzinho levantou completamente a janela do seu banco. Mas tanto ele como o Menorzinho, a menina e a grávida fecharam bem os olhos. O homem bêbado deu um berro, fechando as olhos atingidos em cheio pela lufada quente e mal-cheirosa, sem poder saber quem havia aberto a janela.

– Fecha, fecha isso, infeliz! A picumã, a picumã! Ai, ai , ai, meus ólho!

E cometeu o erro de todos, levando as mãos aos olhos, que se fecharam automaticamente, esfregando-os com força. Isso só aumentava o efeito de erosão das partículas de fuligem e fazia a dor ficar muito mais forte, somada a uma ardência brutal.

O Menorzinho continuou seu papel:

– Fica de olho fechado, moço. Foi um home lá da frente que abriu pra cuspí. Espera que meu irmão foi buscá água pra jogá nos seus ólho. Agüenta só mais um poco.

O bêbado gemia e esfregava os olhos em desespero. O Maiorzinho, com toda calma, deixava passar um tempo coerente com ir buscar água no banheiro ali no fundo do vagão. Então “chegou” no seu banco à frente do do bandido e falou:

– Pronto, moço, eu peguei água neste vidro aqui. Agora abre bem os ólho, bem aberto mesmo, pra eu podê lavá. Segura com os dedo.

O homem fez isso. Abriu os olhos que ardiam infernalmente e puxou as pálpebras inferiores para baixo. Então o menino maior jogou com força uma parte do líquido do vidrinho em cada olho escancarado. O bêbado deu um berro novo, ainda maior que o primeiro.

O Maiorzinho falou:

– Agüenta moço, que é assim mesmo, daqui a poco passa!

O que arde, cura! – gritou o Menorzinho, sem conseguir segurar a gargalhada.

Rindo mais baixo, o Maiorzinho jogou no chão, embaixo do seu próprio banco, o vidrinho onde estava escrito VINAGRE!

Naquele instante, o chefe de trem, que não tinha coragem de entrar no vagão onde Tonhão estava, de medo que os moleques exigissem que ele tomasse alguma providência, gritou da plataforma:

– Estação da Música, Vacaiquá. Os dois moleques de Donha Joaquina descem aqui. Venham logo.

Os meninos pegaram suas malinhas e a mocinha, sua trouxa. Acenaram para a mulher grávida. Correram para a plataforma. Mas aquela na outra ponta do vagão, onde o chefe de trem não estava. Desceram os três. Os dois guris correram por fora do trem e vieram ter com Chefe Xavier, que desceu, para entregá-los ao chefe de estação de Vacaiquá. A menina correu nesse momento, a esconder-se por trás de uma pilha de madeiras velhas.

O chefe de trem deu sua missão por cumprida:

– Aí estão os dois filhos de Donha Joaquina e Seu Acelyno, lá de Livramento. Agora, tu só me entrega eles pra pessoal dá fazenda de Dona Mimosa.

– Macanudo, tchê. O Seu Artur já tá aí faz mais de hora, esperando os piá com a charrete grande.

Chefe Xavier voltou contente para seu trem, daqueles dois encrenqueiros estava livre. Imagine só o perigo, se ele ia se meter com um criminoso como Tonhão Dureza! Só criança mesmo pra imaginar uma loucura dessas. Melhor ser covarde que defunto!

Os meninos viram, felizes, Seu Artur parado em pé, ao lado da charrete, do lado de fora da estação. E, no momento que Chefe Xavier ficou de costas, subindo os degraus do vagão, fizeram sinal para a menina, que correu para juntar-se a eles.

Chegaram triunfantes a Seu Artur, que os esperava de braços e sorriso abertos. O negro grande estranhou a mocinha junto com eles, o chefe de estação, também.

– É nossa prima Maria, lá de Livramento. Na última hora nosso pai resolveu mandar ela com a gente também. Mandou uma carta pra madrinha, mas pode que não tenha chegado ainda ­ – Ô menininho pra mentir bem, aquele Menorzinho!

Seu Artur estendeu a mão enorme e calosa à mocinha bonita e lhe falou:

– Buenas, prenda. Mui bem-vinda a Vacaiquá. Quem vai ficar mui contenta com sua vinda é Dona Mimosa, nunca vem menina passá as férias aqui e ela só tem aqueles quatro marmanjo em casa.

Ajudou a garota a subir na charrete, pois os dois piás já tinham pulado lá em cima com a maior facilidade. Estavam os três felizes e exultantes, o plano tinha dado certo nos mínimos detalhes. Angélica – a menina falou enfim seu nome – estava livre afinal.

Seu Artur se preparava para subir também no banco da charrete, quando veio aquele berro infernal:

– Desgraçados, eu mato os três!

O grito vinha de um homem com a camisa toda ensangüentada, com a testa cortada sangrando, com os olhos vermelhos como dois tomates, que trazia um enorme porrete na mão. Era Tonhão Dureza, no auge de sua fúria!

O que falhou no plano dos meninos foi o tempo de recuperação de Tonhão, muito mais rápido do que eles imaginaram.
CONTINUA 

sábado, 27 de julho de 2013

OS DOIS GURIS

OS DOIS GURIS
MILTON MACIEL

Esta é a saga de dois piás heróicos e de um negro mui grande – de porte e de coração – que acontece dentro de um trem, puxado a maria-fumaça, lá pela fronteira do Rio Grande com o Uruguai. E que culmina em eventos tais na pequena estação, que encheram a memória do povo, a ponto de não serem esquecidos nunca mais. Tanto que aqui estou eu, contando o causo mais uma vez. Bueno, chega de prosa e vamos começar:

Na estação de trem da Santana do Livramento, uma cidade brasileira a bem dizer no Uruguai, a azáfama era intensa. Carregadores com malas e sacos enormes, passageiros retardatários, piás com recados, parentes apinhados nas portas de embarque, agarrados pelas mãos com os que já estavam sentados dentro dos vagões... uma balbúrdia! Corriam soltos os três idiomas oficiais locais: alguém falava em português, a resposta vinha em espanhol, os menos estudados hablavam o portunhol mesmo. E todo mudo entendia todo mundo.

A única coisa que incomodava os dois guris era a choradeira das mulheres.

– Mulher é bicho flocho! (= frouxo) – exclamou com desdém o Maiorzinho, que já tinha 10 anos.

– Home que é macho não chora! Mas mulher é bicho flocho mesmo – ressoou o Menorzinho, que ainda tinha que fazer 8 anos, mas já era aprendiz dedicado das lições do machismo álacre da fronteira.

Na verdade, o que os incomodava era a choradeira da mãe deles, lá do lado de fora do trem. Nem bem chegaram à estação e viram o trem parado, saíram correndo em carreira desabalada, deixando a mãe e as duas malinhas para trás. Pularam na plataforma do primeiro vagão onde viram gente embarcando e entraram igualmente correndo, esbarrando em meio mundo que atrapalhava seu caminho.

– Ô, guri infeliz, quase me derruba!

– Moleque é coisa do diabo mesmo!  Olha os pé dos otro, desgraçado!

Mas os dois guris não deram bola pra ninguém. Descobriram logo que podiam passar de um vagão para outro e estenderem incontinenti sua marcha exploratória pelos corredores dos vagões normais, pelos estreitos passadiços dos carros-dormitório, sempre aos encontrões com os passageiros cheios de bagagens, procurando aflitos seus lugares. O que os piás queriam era chegar na locomotiva, que os encantava e entusiasmava.

– Vamo, tchê, corre! A máquina é pra este lado, anda!

Mas não chegaram lá coisa nenhuma! De repente uma voz adulta e cheia de autoridade se fez ouvir. Vinha de um homem alto e magro, vestido de paletó e calça azul-marinhos e com um quepe especial da mesma cor na cabeça. Era o chefe de trem:

– Onde vocês pensam que vão, seus piás de bosta? Podem voltá, que o lugar de vocês é no vagão número três. E a pobre da Donha Maria tá correndo que nem loca lá fora, campeando vocês, seus porquera. Vamo, dá meia volta já.

Como notasse a imobilidade recalcitrante dos piás, o chefe usou de sua larga experiência para resolver casos assim, que podiam ser tudo, menos incomuns no seu trem. Catou cada moleque por uma orelha, que apertou forte entre o indicador e o polegar de cada uma de suas mãos ossudas, e começou a tangê-los através dos vagões. As antigas vítimas de esbarrões e pisoteadas nos pés, agora já calmamente sentadas em seus bancos, os viram passar pelos corredores e receberam-nos com uma acolhida a caráter, com xingamentos e um monte de “bem-feito!” e outros que tais.

– Isso, Seu Xavier, mostra pra esses piás o que é respeito!

Os guris, fulos de raiva e de vergonha, as orelhas ardendo, não tendo como se desvencilhar das tenazes de ferro do velho Xavier. Que só se afrouxaram quando ele os fez sentar à força no banco número 16 do vagão três. No caminho viram que a mãe os acompanhava do lado de fora, com as duas malinhas nas mãos. Quando foram obrigados a sentar, pela janela aberta tiveram que ouvir a ladainha de Donha (Doña = Dona) Maria:

– Por que que vocês fazem isso com a pobre da mãe de vocês? Vocês querem me matar do coração? Vocês não têm sentimento, não vêm que mãe tá chorando de saudade desde agora, que vocês vão ficar longe da mãe três meses lá na fazenda?

Os guris só se olhavam, impacientes com aquilo, mortos de vergonha de serem tratados como criancinhas, ele que já eram uns homens feitos de oito e dez anos, todo mundo dentro e fora do vagão vendo e ouvindo aquela barbaridade. E o diabo daquele trem que não saía do lugar, para livrar os dois daquela vergonheira!

De repente veio o apito salvador. A locomotiva resfolegou seu grito de guerra, o chefe de estação usou seu apito fininho em três longos silvos, logo secundados pelos do chefe de trem, que fez o mesmo.

– Desafasta, que o trem vai saí! ­– ralhou o chefe de estação com os que estavam do lado de fora, muito juntos dos vagões.

– Me solta, mãe, que o bicho já vai – reclamou o Menorzinho, puxando o braço de dentro das mãos aflitas da mãe chorosa.

O Maiorzinho, nessa hora, no auge da excitação, não se aguentou e começou a pular em cima do banco de madeira. A locomotiva deu o primeiro puxão para a frente, o vagão tremelicou e o Maiorzinho foi se estabacar de encontro ao encosto do banco da frente. Doeu, mas macho que é macho não chora! E, além do mais, tinha que fazer parar a risada impertinente do Menorzinho, que apontava para ele e ria. Soltou-lhe um tapa na orelha do puxão, que ficou mais avermelhada ainda.

Doeu, mas homem que é macho não chora! E, além do mais, tinha que aproveitar a maravilha daquele momento da partida. Continuou rindo do irmão que, dor já passada, caiu na gargalhada também. O trem começava a ganhar velocidade, as pessoas e a estação começaram a andar para trás. Os moleques ajoelharam no banco e viram, sobre o encosto, que a mãe ia ficando pequeninha, acenando com o lenço braço na mão. Pronto, estavam livres, a aventura ia começar!

Era a primeira viagem de trem da vida deles. Era também a primeira vez que se separavam da mãe. As duas coisas os deixavam quase loucos de tanto entusiasmo. Iam andar de trem e, ainda por cima, iam poder provar que eram homens feitos, machos de verdade, sem medo de largar das saias da mãe, capazes de sobreviver perfeitamente longe da proteção segura do pai.

Incharam de orgulho, olharam sorridentes para os outros passageiros nos bancos atrás do deles, deviam de estar todos admirados com a proeza daqueles dois guris valentes. Uns turunas! O Menorzinho não se aguentou e gritou para todos ouvirem:

– A gente tá acostumado a viajá sozinho, tchê!

Os passageiros de trás menearam a cabeça para os lados. Duas mulheres riram. Não acreditavam, os desgraçados!

Os dois piás, contrafeitos, sentaram no banco pela primeira vez. A viagem ia ser longa, coisa de três horas, lhes haviam falado em casa. Iriam no trem para Dom Pedrito, mas desceriam bem antes, na estação da Música, que ficava em Vacaiquá, por onde se espalhava a fazenda da tia Mimosa, irmã do pai e madrinha do Menorzinho, que já era viúva por esse tempo. Tocava a fazenda de criação de gado de corte com a ajuda dos quatro filhos rapazes.

Para dois guris afogueados nessa idade, três horas e uma era geológica inteira são a mesma coisa. O que iam fazer para passar essa eternidade de tempo? Inventaram de tudo um pouco. Começaram  por ajoelhar no assento de novo, voltados para os passageiros de trás e começaram a fazer caretas, usando as duas mãos sobre o rosto para ajudar, repuxando o nariz, os lábios, dobrando as orelhas, arregalando os olhos. E morrendo de rir da cara dos outros o tempo inteiro. Rendeu um bom tempo de distração para eles aquela legítima palhaçada, até que, de repente, um velho lá no fundo pareceu se encher com aquilo, levantou do banco, remexeu em algo que tinha ali embaixo e se ergueu com um enorme facão dentro da bainha. Olhou feio para os guris, agitou o facão em direção a eles e as caretas logo se fizeram reais, sem auxílio das mãos, eram caras de puro cagaço.

Os moleques sentaram no banco, de olhos arregalados, esperando para correr na hora que o velho do facão chegasse neles. Mas não aconteceu nada. Continuaram quietos, quase petrificados, por um longo tempo, tão longo que, quando o Maiorzinho teve coragem de espiar para trás outra vez, o velho já dormia a sono alto, roncando refestelado no seu banco. O facão dormia no colo dele, o que para os piás era aviso claro que a brincadeira das caretas e das gargalhadas tinha mesmo acabado de vez.

Passaram então a se ocupar com espiar e tentar adivinhar o que os passageiros do vagão traziam em suas canastras. Essas eram umas cestas de vime e palha típicas da região. Eram de secção retangular, tinham uns dois palmos de fundura e duas tampas inclinadas em cima, que se abriam para fora. Quase todos por ali viajavam com canastras, fora as malas; e as sacolas e sacos grandes de pano. As canastras deixavam antever, pela sua trama aberta, o que havia lá dentro. Então os piás levantaram do banco e passaram a inspecionar canastra por canastra que viam no chão, geralmente embaixo dos bancos. E faziam apostas:

– Eu digo que é goiabada. E aquilo pra mim é charque.

– Esse aqui tem uma garrafa, só pode sê de canha. (= cana = cachaça)

– Olha, umas gajetas das grandes (gajeta = galletas = bolachas grandes)

– Essa aqui tá tudo embrulhado, não dá pra sabê

– Vai vê é uns mijado de guri, ela tem um piá grudado nos peito, mamando nela.

E assim foram matando o tempo infinito da viagem, sem jamais pararem. Depois resolveram ousar de novo a incursão à frente do trem. Entravam no vagão seguinte, olhavam com cuidado se o chefe de trem não estava por ali e atravessavam o vagão rapidamente. No terceiro, encontraram algo que os fascinou e os fez esquecer da locomotiva: era o carro-restaurante!

Havia algumas mesinhas presas ao chão, cadeiras idem-idem, algumas poucas pessoas sentadas comendo e/ou bebendo. Havia um balcão cheio de guloseimas e os moleques ficaram ali namorando os bombons e balas. O rapaz que atendia piscou o olho e escorregou, escondido, duas balas de leite para eles, que agradeceram e foram sentar a uma das mesas, para abri-las e come-las bem devagar, para durar mais a sensação.

– Olha – disse o Menorzinho – esses vidrinho engraçado. Está escrito pimenta, sal e vinagre. Prá botá na comida.

O Maiorzinho apanhou um quarto vidrinho e experimentou a tampa, que se soltou. O conteúdo vazou um pouco sobre a toalha branca. Limpando os dedos na mesma, o menino falou:

– Xi, tchê, é azeite! Vamos s’imbora logo, antes que o moço veja o que eu fiz.

E correram de volta para o seu vagão, voltando a sentar no mesmo banco 16. Ficaram quietos outra vez.

O trem parou em outra  estação. Os moleques se assanharam de novo. Descia um ou outro passageiro, muitos mais subiam e aí os meninos voltavam às apostas:

– Eu digo que entra mais homem que mulher

– Pois eu digo que vai tê mais gente de alpargata do que de bota.

– Aposto que entra mais um desses remelento chorão no colo da mãe, pra enchê nosso ouvido!

– Pois eu digo que entram dois piás de bosta desses!

– Eu aposto que quem vai sentá no banco vazio bem da frente é mulher!

De repente a coisa mudou de novo. Um homem alto, de barba, bigode e cabelo preto desgrenhado, botas de cano alto e bombacha marrom, subiu no vagão carregando a pulso uma mocinha. A garota devia ter algo em torno de seus quinze anos ou pouco mais. Era loirinha, estatura média, delgada, rostinho bonito e carinha de assustada. Os olhos estavam vermelhos de chorar. Já o homem tinha uma expressão feroz e parecia estar visivelmente embriagado.

A menina entrou no banco atrás daquele dos garotos, que tinha ficado vago com o desembarque dos outros passageiros. Sentou-se à janela e escondeu o rosto, vermelha de vergonha com a situação. Mas o homem de barba e bigode deu-lhe um safanão, fazendo-a levantar-se:

– Chispa daí! Eu que vou na janela – e puxou-a com violência para fora do banco. Entrou, sentou-se à janela e sempre puxando a garota pelo pulso, forçou-a a desabar sentada sobre o banco, no lado do corredor. A menina escondeu o rosto ainda maie e voltou a chorar silenciosamente.

– Bah, tchê – disse o Menorzinho – o pai dessa aí é brabo demás!

– E tá borracho que dá pré sentí o cheiro daqui.

Ajoelharam outra vez no assento e começaram a olhar para o estranho casal do banco de trás. O homem dirigiu-lhes um olhar de tal ferocidade que os dois rolaram sobre seus joelhos imediatamente e sentaram outra vez. Falaram baixinho:

– Cuepuxa! O homem tem cara de furioso.

– Pois pra mim ele tem cara de bandido de filme. Acho que ele é um bandido, desse que assalta diligência – falou convicto o Maiorzinho.

–  Mas aqui não tem diligência, só nos filme de mocinho.

– Pois então ele assalta lá no lugar dos filme de mocinho e depois se escondê aqui na Campanha.

Minutos depois, ouviram o ronco do bêbado, alto como um motor de carro.

– Tá dormindo, o bandido – disse o Menorzinho – Vamo falá com a guria.

Saíram do banco, ajoelharam-se no corredor perto da menina. Puxaram conversa.

– É teu pai? – perguntou o Maiorzinho

– Não, é o Tonhão Dureza. Ele é um homem perigoso.

– E o que que ele é teu, então? – quis saber o Menorzinho.

– Ele me ganhou num carteado. Meu pai jogou baralho com esse desgraçado e me apostou. E aí me perdeu. E me entregou pra ele. E ele agora está me levando com ele, vou ter que ser mulher dele.

– Mulher dum borracho! Mas que barbaridade! – rosnou o Maiorzinho.

– Mas por que teu pai te entregou? Um pai não faz uma coisa dessas com uma filha.

A menina olhou para o Menorzinho e lhe respondeu:

– Meu pai também bebe demais. E ele até gostou de me entregar para um homem, porque assim não vou dar mais despesa para ele. Meu pai é um homem ruim, bate na minha mãe quando bebe. Só que esse homem que me ganhou é pior ainda, falam que ele tem crimes de morte pelas costas.

O Maiorzinho exultou:

– Um bandido! Eu não disse que ele era um bandido! E assalta diligência, tenho certeza.

A senhora grávida, do assento do outro lado do corredor, que havia ouvido toda a conversa, falou então:

– Mas bah, que cosa más horrível, guria! Que maldição a gente nascer mulher neste mundo! Os homes podem fazê tudo o que querem com a gente. Até um pai jogá uma filha num carteado...

– Mas pior ainda é ser obrigada a ser mulher de um estranho, um bandido, que a gente detesta só de olhar, que dá nojo. E eu vou ter que me entregar a esse monstro, vou deixar de ser moça, a senhora sabe como é...

– Pois é, minha filha, foi justo isso que eu pensei. Fico com tanto dó de você.

– Mas nós podemo te ajudá – falou, inchando peito o Maiorzinho. Deixa com a gente.


– Mas o que vocês, uns piá, podem fazê? – estranhou a mulher grávida.
CONTINUA

sexta-feira, 26 de julho de 2013

TIA  MEMÉIA – Uma história de felicidade 
MILTON  MACIEL 

Ela era realmente uma figura sui generis. Não havia, não poderia haver nada igual na nossa cidade pequena. E tão sui generis era que eu insisto em dizer NADA – e, não, ninguém, o que seria o óbvio. Mas Tia Meméia era mesmo única no gênero. Provavelmente, vocês vão me dar razão também.

A começar pelo nome: Meméia. Claro que esse não era o nome dela. Esse é o nome da bruxinha desastrada de Stanley, a Little Itch (Coceirinha), que no Brasil nós ficamos conhecendo através das histórias em quadrinhos da Luluzinha.  Meméia, ainda criança, era a aprendiz de bruxa de sua tia malvada, a bruxa Alcéia. Acho que a pessoa que deu o apelido à Tia Meméia, não só tinha lido muita Luluzinha, como sabia muito bem o que estava fazendo.

Porque a Tia Meméia tinha fama de ser bruxa. Muitas pessoas tinham medo dela, chegando algumas a garantir que ela realizava terríveis rituais de magia negra. Mas essas pessoas eram todas adultas. Porque, entre as crianças, Tia Meméia tinha uma enorme popularidade. Era a tal da bruxa aparecer pela cidade e elas corriam a cercá-la, a conversar com ela, ouvi-la contar histórias e mais histórias, brincar de roda e esconde-esconde com elas, pular amarelinha, ensinar canções infantis.

Algumas mães ficavam apreensivas, proibiam suas crianças de se aproximarem da bruxa malvada, mas era em vão. As crianças desobedeciam, fugiam, parecia que adivinhavam quando Tia Meméia estava por perto. Isso deixava aquelas mães ainda mais aflitas, crentes que aquilo era um sortilégio, um mau encantamento para atrair crianças, sabe-se lá com que malévola intenção!

Uma outra coisa que chamava atenção em Tia Meméia é que os animais também tinham um verdadeiro fascínio por ela, tanto ou mais do que as crianças. Também eles a cercavam e seguiam por onde ela fosse. Não só os cães que estavam soltos pelas ruas, mas os que estavam nas casas, limitados pelos muros e portões. Estes procuravam, aflitos, escapar para juntar-se ao grupo de Meméia. E, claro, isso deixava os moradores adultos ainda mais convictos que aquela mulher era mesmo uma feiticeira malvada, usando magia negra para atrair seus animaizinhos inocentes, para depois, com toda certeza, submetê-los a sacrifício em horrendos rituais de feitiçaria.

Só que, apesar de toda essa má fama com os adultos, nunca ninguém soube, em toda a cidade, que um só animal tivesse desaparecido. Assim como fugiam, horas depois eles estavam de volta, mostrando grande contentamento e muita fome e sede.


Eu era um moleque de onze anos quando mudei para aquela cidade e me tornei, imediatamente, um dos fãs de carterinha de Tia Meméia. Ela, desde o começo, mostrou uma atenção toda especial comigo. Achei que era por minha condição de novato, mas fiquei com receio que as outras crianças ficassem com ciúmes de mim. Mas não ficaram. Com o tempo passei a perceber a razão disso: perto de Tia Meméia, era impossível ter sentimentos ou até mesmo pensamentos ruins. Havia nela algo que nos levava a ver sempre o lado bom das coisas. Me dei conta disso uma tarde, quando duas meninas estavam se xingando quase ao ponto de se pegarem aos tapas. Pois, quando Tia Meméia se aproximou, elas mudaram completamente o tom de voz e saíram correndo, de mãos dadas, em direção a ela!

Tia Meméia era uma figura muito diferente mesmo: gorducha, bonachona, usava estranhos cabelos vermelhos armados em longas tranças e umas roupas compridas e largas, extremamente coloridas e berrantes. Usava sempre uma enorme sombrinha, multicolorida como um arco-íris, para proteger do sol a sua pele extremamente branca, mas um tanto avermelhada, que tinha um sem número de pequenas sardas espalhadas pelo rosto.

Ela morava numa casinha pequena, num terreno enorme na saída da cidade, com suas companheiras: uma cachorra bege, chamada Fulustreca, e uma égua branca, chamada Pombinha. Estranhamente, quando ela saía, nem mesmo a Fulustreca costumava segui-la, embora o portão da frente estivesse sempre aberto. Aliás, como vim a descobrir depois, a porta da casa nunca era trancada e as janelas permaneciam geralmente escancaradas, estivesse ela em casa ou não.

Bem, aí morava, para mim, não só a Tia Meméia, mas também o maior dos mistérios. Eu tinha uma grande vontade de entrar na casinha dela. Mas as outras crianças não tinham. Convidei diversas delas para tentarmos uma visita surpresa, de bisbilhoteiros mesmo, mas elas nunca se interessaram. A maioria nem sabia onde ficava a tal casinha.

Então eu resolvi aparecer lá sozinho. Uma certa tarde, em que Tia Meméia não apareceu na cidade logo depois do horário do almoço, como usualmente fazia, não tive dúvida. Inventei qualquer coisa em casa e saí apressado, quase correndo, só parando para pedir informações a respeito do lugar onde queria chegar. Em coisa de vinte minutos eu estava lá. Vi de longe a Pombinha pastando solene no amplo gramado atrás da casa. Mas estaquei apreensivo, pois acabava de avistar a Fulustreca, que avançava calmamente em minha direção. Fiquei com medo que ela latisse ou, quem sabe, até tentasse me morder. Nós nunca nos tínhamos visto, eu apenas sabia da existência dela através de Tia Meméia.

Quando vi aquela cachorra de porte médio, de cor bege claro, caminhando para mim, fiquei paralisado junto ao enorme portão escancarado. Mas, para minha enorme surpresa, Fulustreca, quando chegou a dois metros de mim, começou a abanar o rabinho e a me fazer festa, emitindo pequenos ganidos que me pareceram de contentamento. Achei aquilo incrível e ganhei então coragem de me aproximar mais da casa. Fui andando agachado, com um espião infame, que era exatamente o meu papel naquele instante.

A porta da casa estava aberta, a janela ao lado também. Enfiei cuidadosamente a cara através dela, para ver o que tinha lá dentro. Era a janela da sala e ali tudo o que havia eram livros, livros e mais livros: nas estantes, no sofá, sobre as cadeiras, sobre um tapete velho no chão. Nada de apetrechos de bruxa, que é o que eu receava encontrar em minha investigação. Apurei bem o ouvido, tentando deduzir em que peça da casa poderia estar Tia Meméia. A casa era pequena, só podia ter, no máximo, dois quartos.

Foi quando ouvi, distintamente, a voz de Tia Meméia conversando com Pombinha, a égua branca. E notei que Pombinha como que respondia, porque cada vez que Tia Meméia parava, dali um pouco a égua emitia uns relinchos suaves e longos.  Esquisito aquilo, mas na hora fiquei aliviado, porque isso significava que eu podia entrar na casa. Hesitei só um pouquinho, pensando no mau-caratismo do meu gesto, mas já que eu tinha chegado até aquele ponto, achei que não podia mais recuar. E entrei na casa. Que percorri, igualmente agachado e o pé ante pé, peça por peça.

E outra vez, agora para meu claro desapontamento, nenhum sinal de apetrechos de bruxa. Nenhum caldeirão, frascos com poções ou asas de morcego, nenhuma gaiola com corvos ou outros bichos, nem mesmo um gato preto, acompanhante fundamental de uma bruxa que se preze. Nada! Para variar, mais um monte de livros espalhados nos dois quartos. Havia também uma velha máquina de costura, que foi o mais que consegui encontrar de anormal. Finalmente entrei na cozinha, pequena e escrupulosamente limpa, com panelas areadas rebrilhantes penduradas numa parede. Nada de coisas de bruxa também.

E então a grande surpresa e o grande abalo: através da janela aberta da cozinha eu pude divisar Tia Meméia no quintal. Em frente a uma fogueira de lenha, mexendo um enorme caldeirão com uma grande pá de madeira. Ela mexia e cantava, aí parava a cantoria e conversava de novo com Pombinha – e a égua respondia, tenho certeza! E Tia Meméia mexia e remexia o caldeirão sem parar. E dele saía um vapor esbranquiçado e abundante, o que me assustou ainda mais.

Fiquei paralisado de medo. E de decepção. Justo eu, que gostava tanto de Tia Meméia, acabara de descobrir que ela era, realmente, uma bruxa! Sua atividade ao caldeirão não deixava qualquer dúvida. Céus, eu estava correndo um grande perigo! Se ela me descobrisse e soubesse que eu conhecia agora o seu macabro segredo, certamente ela não ia deixar barato. Fiquei gelado ao pensar no que ela poderia me transformar: num sapo, com toda certeza. Mas podia ser ainda pior: numa cobra peçonhenta. Ou numa barata asquerosa. Ou pior ainda, num monte de esterco da égua. Comecei até a sentir meu fedor de esterco, foi horrível.

Numa tentativa desesperada de fuga, me arrojei de barriga no chão e comecei a rastejar para a sala. Meu susto aumentou: Puxa, será que já estou começando a virar cobra?! Mas, na soleira entre a cozinha e a sala, Fulustreca me contemplava imóvel. Vi que agora ela não sacudia o rabinho. Pronto, é agora que eu ia virar uma cobra estraçalhada por um canídeo! Num gesto de desespero, arreganhei meus dentes, para a cadela ver o tamanho que já deveriam ter, àquela altura, as minhas presas cheias de veneno mortal. Fulustreca não mostrou o menor medo. Continuou a me observar com aquela cara de quem está olhando um doido rastejar pelo chão. E nesse momento eu quase tenho uma síncope fulminante, o maior cagaço da minha vida até então: Lá do quintal, a voz de Tia Meméia, com seu timbre agradável, nítido e quase musical, falou MEU NOME!

– Carlinhos, venha aqui no quintal, venha ajudar Tia Meméia.

Eu estava lascado! Tinha sido descoberto! Como, se eu tinha certeza que não me expusera à bruxa? Mas o fato é que ela, confirmando sua condição de feiticeira, tinha sido capaz de me ver ou me pressentir, mesmo estando o tempo todo no quintal, a uns vinte metros da casa e de costas para ela, onde eu me esgueirava corajoso e intrépido como 007.

Que remédio, era melhor atender à sua ordem. Levantei do chão da cozinha. Notei que ele estava estranhamente molhado no lugar onde eu estivera. Olhando melhor, vi que minha calça curta também estava molhada na frente. Céus, eu tinha me mijado de medo! Ia passar a maior vergonha com a bruxa, antes de ser transformado em cobra ou cocô. Mas, afinal, até mesmo uma vergonha dessas fica desimportante quando você está pra enfrentar a ira de uma bruxa má. Mesmo assim, tive um certo pudor. Passei a mão num pano de secar louça e o segurei displicentemente na frente do lugar envergonhado. E fui atender ao comando da feiticeira, morrendo de medo do que ia ver dentro do enorme caldeirão. Pedaços de animais ou pedaços de crianças al sugo?

Fui me aproximando em câmara lenta, tremendo de medo, pensando em manter os olhos fechados até o fim. Foi quando Tia Meméia falou com sua voz alegre de sempre:

– Que bom que você resolveu me visitar justo hoje, Carlinhos. Bem agora quando eu estou precisando de ajuda para mexer esse tacho pra mim. Venha, meu filho, é só por uns dois minutinhos, enquanto eu viro o tacho nas formas.

Tacho? Formas? Resolvi abrir os olhos. O caldeirão não era o dos filmes de bruxa, não era alto e preto. Era igualmente grande, mas era baixo e de cobre brilhante. Surpreendentemente, o cheiro, que eu agora podia sentir, era extremamente agradável e não me era de todo estranho.  E o que Tia Meméia falou então me fez cair das nuvens:

– Pegue a pá e mexa como eu estou fazendo, tem que fazer força, porque eu já dei o ponto e agora a massa está muito pesada. E continue mexendo enquanto eu viro o tacho e faço a massa escorrer para as formas. E aí procure usar a pá para remover a massa do lado do tacho, enquanto ela escorre. Ah, esta pessegada de hoje vai ficar um espetáculo!

Peguei a pá e comecei a mexer a massa do doce de pêssego com determinação e alegria. Meus olhos se encheram de lágrimas. Não me importei, podia botar a culpa no vapor. Mas eu estava comovido e alegre até às lágrimas, porque a minha boa, a minha querida, a minha adorada Tia Meméia não era uma bruxa malvada! Era uma doceira! Eu tinha acabado de descobrir como é que ela ganhava a vida!

Minutos depois eu estava sentado na varanda da frente da casa com minha Tia Meméia. MINHA tia! Ela havia colocado para esfriar uma pequena quantidade de pessegada e agora nós dois comíamos o doce com enorme deleite. Que doce maravilhoso! Eu nunca tinha comido algo tão bom assim... Repeti mais duas vezes, Tia Meméia me servia com evidente satisfação, enquanto passava os dedos carinhosamente entre meus cabelos escorridos. E aí é que veio a surpresa mesmo, tudo virou outra vez na minha cabeça:

– Meu filho, agora você vai no banheiro, toma um banhozinho rápido para tirar esse xixi. Aí você sai enrolado na toalha que eu já vou estar lavando e pondo pra secar essa sua calça curta. O sol está bem forte, vai secar ligeirinho.

Senti minha cara inchar, de tão vermelha que deve ter ficado na hora. Ela sabia! Mas como? E então, como se ouvisse minha pergunta, ela disse calmamente.

– Carlinhos, eu sabia que você vinha aqui hoje, então resolvi antecipar em um dia a minha fabricação caseira de pessegada. Assim eu teria quem me ajudasse na hora H. Sempre tenho que fazer isso sozinha e isso me faz perder um pouco de massa.

Engoli em seco e gaguejei:

– A... a... senhora... a senhora SABIA que eu vinha aqui hoje? Mas como?

– Ora, criança, por que eu sou uma feiticeira, é óbvio. Ou uma bruxa, como eles dizem por aí que eu sou. Pois é verdade, a mais pura verdade.

Voltei a gelar. Um arrepio percorreu minha espinha e eu fiquei totalmente sem voz.

– Não precisa ficar com medo, meu filho. Eu sou uma bruxa, mas sou uma bruxa DO BEM. Eu só uso os meus poderes para ajudar as pessoas, alegrar as crianças, curar os animais, cultivar flores, verduras e frutas. Nós, as bruxas do Bem, temos Dedo Verde, sabe o que é isso?

Fiz com a cabeça que sim, mais aliviado, dedo verde é um dom para fazer as plantes crescerem fortes e saudáveis, eu sabia, tinha lido o livro.

Fui tomar meu banho, Tia Meméia foi lavar minha calça e colocá-la para secar. Durante o curto tempo daquele banho, eu coloquei as minhas idéias e sentimentos no lugar. Sim, não havia mais dúvidas para mim: Tia Meméia era mesmo DO BEM, aliás era mais do que isso, era da Alegria, da Bondade, da Compaixão. Tia Meméia era a coisa mais linda e mais fofa que eu já tinha visto em toda a minha curta vida. Eu adorava aquela mulher, simplesmente! E me decidi: eu ia grudar nela, ia ficar o mais próximo dela que eu pudesse. E naquele momento me deu um enorme desejo de ser como ela, exatamente como ela era.

Saí enrolado na toalha e ela me levou para a varanda de novo. Sentei na mesma cadeira e ela então me falou:

– Carlinhos, hoje todas nós estávamos esperando por você, meu filho. Não é verdade meninas?

Fulustreca sacudiu o rabinho e pulou para o meu colo. Pombinha caminhou até mim, desceu a enorme cabeça até tocar o meu peito e esfregou-se nele três ou quatro vezes. As meninas concordavam!

– E sabe porque isso tudo aconteceu? Porque você foi a única criança desta cidade que teve vontade de vir aqui. E sabe por que nós já sabíamos que você vinha e estávamos à sua espera?

Balbuciei um tímido e ansioso não. Tia Meméia arrematou, então:

– Porque VOCÊ É UM DE NÓS, MENINO! Você é um bruxinho também. E nós viemos para esta cidade, alguns anos antes de você, para preparar as coisas para a sua chegada. Porque você não é só um bruxinho, você é um dos grandes na hierarquia, meu bem. E nós estamos aqui para acelerar agora a sua preparação, a sua longa formação. Você vai me suceder em tudo o que eu faço para a Natureza neste lugar. E depois, quando estiver pronto, vai partir para as suas maiores missões. Entendeu?

Sim eu tinha entendido TUDO. Não só o que ela havia falado naquele instante, como também tudo o que viria depois. Ela ia falando e eu ia vendo tudo com uma clareza infinita. Sim. Eu era um deles. Eu era como Tia Meméia, como Pombinha, como Fulustreca. E vi que eu viria morar ali com elas, a partir do dia seguinte. Ao ir embora hoje, eu levaria uma caixeta de pessegada para minha família. E meus pais e irmãs a comeriam e adorariam. E o filtro mágico faria seu benéfico efeito. Então, já no dia seguinte, viriam todos visitar Tia Meméia. E a amariam. E compreenderiam que tinham que trazer meus pertences com eles, numa malinha.

Sim eu era um deles! Ali era o meu lugar. Com minha Tia Meméia. Tudo ia mudar na minha vida: Enfim eu ia começar a ser eu mesmo!