sexta-feira, 10 de maio de 2013

RITINHA - 16  
MILTON  MACIEL

Final da parte 15

– Num si faiz di besta, mano Osmar. Eu num sô como ocê qui pensa cum os bago. Eu só quero ajudá essa moça. Tirá ela deste lugar onde ela tá tão manjada, levá pra onde ninguém sabe qui ela foi quenga. I aí nossa famia ajuda ela, dá uma moradia decente i põe pra istudá. Aí nós garante qui ela num vai mais sê quenga.

– Mano Bastião até qui tem razão, si tem – concordou Osmar imediatamente. Acho qui é uma idéia muito da pai-d’égua. Mano Bastião é inteligente também!

PARTE 16  
   Bastião não coube em si de contente: então Osmar, que era estudado, quase um doutor, havia afirmado que ele, Bastião, era inteligente. Que idéia pai-d’égua, que ele tinha tido, sô!  Até Jeremias concordou. Apenas Dito Timbó não disse A nem B, ficou pensativo, como quem acha que não ia adiantar. Afinal, quenga é sempre quenga.

  Afastou-se dos filhos e foi ter com Marta, cuja presença bonita o agradava profundamente. Estavam conversando por uns escassos minutos quando a quenguinha se aproximou deles. Puxou logo conversa:

– Sabe, Dona Marta, esse povo daqui não vale nada. Só porque a pessoa que achou e cuidou de Ritinha fui eu, uma quenga, inventaram que a menina também estava na vida. Que maldade, Dona Marta! A coitadinha estava toda estropiada em cima de uma cama, como é que ia poder fazer alguma coisa com homem? Pobre criança! Então já não chega tudo o que ela sofreu, vem essa gente maldosa inventar uma barbaridade dessas, dizer que a menina é puta. Como é que pode, Dona Marta: uma criança que não tem nem onze anos!

– Pois é, minha filha, pra você ver. Quando me chegaram com essa notícia por aqui, é claro que eu não acreditei. Agora você está me falando isso... Que bom! É bom que também Dito tenha escutado o que você está dizendo, assim ele não vai pensar nada errado sobre a filhinha dele. Pobre da Ritinha, meu Deus! Ainda bem que você apareceu, minha filha, senão a gente perdia ela.

   O estratagema de Gabi foi perfeito. Dito Timbó ficou mais do que convencido da inocência de sua filha Rita. Assim era melhor: não tinha uma filha quenga. Jamais poderia aceitar uma mulher da vida em sua casa, fosse ela quem fosse, mesmo uma filha sua. Quenga é quenga!

   Por isso, quando no fim daquela noite memorável, Marta pediu a ele que aceitasse Ritinha e Gabi em sua casa de Missão Velha, o homem foi categórico e definitivo:

– Ocê mi pede quarqué coisa, Marta. Menos isso! Mai eu num vô nunca aceitá uma quenga na minha casa, nunca! Mi adimiro di ocê, querê levá essa minina Gabi para vivê junto di suas fia mocinha, Ritinha i Manoela. Pois si vai sê a pior influença pra elas, num sabe? Nem ripita uma coisa dessas!

   Quando isso aconteceu, Ritinha, Manoela e Gabi estavam a uma distância do casal que lhes permitia ouvir a conversa deles. Não perderam uma só palavra de Dito Timbó, nem uma só das réplicas, súplicas e lágrimas de Marta. O homem estava irredutível. Por fim, sentenciou:

– Ocê faiz intão a sua iscolha, Marta. Eu quiria muito le levá pra morá cumigo, gosto di ocê i por isso aceitei toda as suas cria junto, mais Ritinha qui é obrigação, é minha fia. Mai a quenguinha, não. Ocê iscolhe. Ocê aceita os meus princípio o intão fica o dito pelo não dito. Amanhã eu vô s’imbora mais meus minino i num si fala mais nisso.

   Marta calou-se com desânimo. Era evidente que não devia mais insistir. Não podia sacrificar todos os filhos por causa de Gabi. Uma lástima que Dito fosse tão ingrato e tão preconceituoso. Gabi era apenas uma criança. Merecia que alguém lhe estendesse a mão, lhe desse uma chance. Procurando segurar as lágrimas, Marta fez sinal com a cabeça que estava certo, que concordava com Dito Timbó. Acabou por falar:

– Então está bem. Que remédio... Deixe que eu vou falar com as meninas. Ritinha e Manoela queriam tanto que Gabi ficasse com elas.

   Mas Marta não precisou falar nada. As três meninas saíram do alpendre onde estavam e se deixaram ver, lideradas por Gabi, que já chegou falando:

– Deixe pra lá, Dona Marta. Não precisa perder seu tempo. Eu compreendo muito bem a situação. Nunca pensei que eu pudesse ficar com vocês. Conheço a coisa bem demais. Pode deixar que amanhã mesmo eu desapareço no mundo.

– E eu desapareço com ela – gritou Ritinha, inflamada, as narinas bufando.

– Que é isso, minha filha?! Que bobagem é essa? Pois você ia ter coragem de abandonar sua mãe e seus irmãos?

– Ia, não, mãinha. Eu vou ter essa coragem sim. E lhe digo mais: eu ia precisar de muito mais coragem para ir viver junto com esse homem aí!

– O que é isso, Ritinha! Olhe o respeito com seu pai. Dito, releve essa menina, acho que o sofrimento deixou ela variando! Filha!

   Mas Ritinha era, de fato, uma Timbó. Irredutível, portanto. Era um assombro ver aquele olhar de decisão e desafio, aquelas narinas arfando no rostinho delicado, a expressão de raiva que ia crescendo em sua voz:

– Meu pai?! Pai agora é? Por que não foi pai quando eu precisei, porque me largou no mundo como uma porcaria qualquer? E nem venha me falar que ele não sabia, se foi a senhora mesmo que disse que não adiantava falar pra ele, que ele nunca que ia dar bola pra uma filha mulher. Pois isso é pai de macho só?

– Pare, Ritinha, pelo amor de Deus – Gabi suplicou – Pare, por favor. Não se prejudique, não ofenda o seu pai, ele pode fazer muito por você agora. Pode fazer o que ele nunca fez.

– Não, não precisa fazer nada por mim agora. Agora é tarde. Agora eu é que não quero! Eu não tenho pai! Eu não vou aceitar isso só porque agora ele pode me ajudar, porque agora ele pode me dar casa, proteção e coisas. Não aceito. Porque se aceitar, isso sim é que vai ser prostituição! Eu não me vendo por casa, comida e conforto, vida boa. Não!

– Não, Ritinha! – era Manoela que falava agora, chorando apavorada – Por favor, não deixe a gente de novo. Fique com a gente, irmãzinha. Não...

– Eu não deixo vocês. Vou ficar sempre em contato. Mas eu também não vou com vocês. Fico com minha amiga.

   Finalmente Dito Timbó abriu a boca:

– E ocê vai fazê o que cum sua amiga? Vai vivê como? Qué virá quenga também, é, sua desaforada?

– Se for preciso! Se não tiver outro jeito. Prefiro ser quenga a ser filha de um homem como o senhor!

  Dito Timbó deu um passo em direção à menina, braço erguido, pronto a estapeá-la, impor respeito. Mas, naquele momento, ele teve que olhar dentro dos olhos de Ritinha. E o que viu tirou-lhe o ímpeto da ação.

  Nunca, em toda sua vida, Dito Timbó tinha visto um olhar assim. Inimigos e vítimas, homens que tentavam matá-lo e homens mortalmente feridos por ele, naquele instante supremo quando os olhos de algozes e vítimas se encontram por segundos, o haviam mirado com ódio ou com pavor. Estava acostumado. Mas o olhar daquela criança era completamente diferente.

 Nos olhos de Rita, vindo lá do fundo da alma da menina, Dito Timbó viu algo diferente: desprezo! Desprezo, nojo, raiva surda, mágoa guardada há muito, muito tempo. Ante esse olhar, os olhos do matador se abaixaram. Abaixou-se igualmente o braço ameaçador. O homem estacou por segundos, o suficiente para ouvir as palavras cortantes e finais daquela filha tão bonita, tão novinha e tão... Timbó!

   Sim, agora ele podia reconhecer, aquela femeazinha era tão Timbó como qualquer dos seus filhos machos matadores. Nunca nenhum deles tivera a coragem de erguer a voz contra o pai. Bastião ainda há pouco mostrara coragem, ao se por contra a opinião dele, mas mesmo assim se desmanchando em desculpas, com medo de ser forçado a calar-se. Mas essa menina era corajosa por demais. Faltava-lhe com o respeito e, ainda por cima, deitava-lhe aquele olhar que nunca ninguém, em toda sua longa vida de mais de sessenta anos, tivera alguma vez coragem de deitar.
CONTINUA

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