MILTON MACIEL
Final da parte 15
–
Num si faiz di besta, mano Osmar. Eu num sô como ocê qui pensa cum os bago. Eu
só quero ajudá essa moça. Tirá ela deste lugar onde ela tá tão manjada, levá
pra onde ninguém sabe qui ela foi quenga. I aí nossa famia ajuda ela, dá uma
moradia decente i põe pra istudá. Aí nós garante qui ela num vai mais sê
quenga.
–
Mano Bastião até qui tem razão, si tem – concordou Osmar imediatamente. Acho
qui é uma idéia muito da pai-d’égua. Mano Bastião é inteligente também!
PARTE 16
Bastião não coube em si de contente: então
Osmar, que era estudado, quase um doutor, havia afirmado que ele, Bastião, era
inteligente. Que idéia pai-d’égua, que ele tinha tido, sô! Até Jeremias concordou. Apenas Dito Timbó não
disse A nem B, ficou pensativo, como quem acha que não ia adiantar. Afinal,
quenga é sempre quenga.
Afastou-se dos filhos e foi ter com Marta,
cuja presença bonita o agradava profundamente. Estavam conversando por uns
escassos minutos quando a quenguinha se aproximou deles. Puxou logo conversa:
– Sabe, Dona
Marta, esse povo daqui não vale nada. Só porque a pessoa que achou e cuidou de
Ritinha fui eu, uma quenga, inventaram que a menina também estava na vida. Que
maldade, Dona Marta! A coitadinha estava toda estropiada em cima de uma cama,
como é que ia poder fazer alguma coisa com homem? Pobre criança! Então já não
chega tudo o que ela sofreu, vem essa gente maldosa inventar uma barbaridade
dessas, dizer que a menina é puta. Como é que pode, Dona Marta: uma criança que
não tem nem onze anos!
– Pois é,
minha filha, pra você ver. Quando me chegaram com essa notícia por aqui, é
claro que eu não acreditei. Agora você está me falando isso... Que bom! É bom
que também Dito tenha escutado o que você está dizendo, assim ele não vai
pensar nada errado sobre a filhinha dele. Pobre da Ritinha, meu Deus! Ainda bem
que você apareceu, minha filha, senão a gente perdia ela.
O estratagema de Gabi foi perfeito. Dito
Timbó ficou mais do que convencido da inocência de sua filha Rita. Assim era
melhor: não tinha uma filha quenga. Jamais poderia aceitar uma mulher da vida
em sua casa, fosse ela quem fosse, mesmo uma filha sua. Quenga é quenga!
Por isso, quando no fim daquela noite
memorável, Marta pediu a ele que aceitasse Ritinha e Gabi em sua casa de Missão
Velha, o homem foi categórico e definitivo:
– Ocê mi pede
quarqué coisa, Marta. Menos isso! Mai eu num vô nunca aceitá uma quenga na
minha casa, nunca! Mi adimiro di ocê, querê levá essa minina Gabi para vivê
junto di suas fia mocinha, Ritinha i Manoela. Pois si vai sê a pior influença
pra elas, num sabe? Nem ripita uma coisa dessas!
Quando isso aconteceu, Ritinha, Manoela e
Gabi estavam a uma distância do casal que lhes permitia ouvir a conversa deles.
Não perderam uma só palavra de Dito Timbó, nem uma só das réplicas, súplicas e
lágrimas de Marta. O homem estava irredutível. Por fim, sentenciou:
– Ocê faiz
intão a sua iscolha, Marta. Eu quiria muito le levá pra morá cumigo, gosto di
ocê i por isso aceitei toda as suas cria junto, mais Ritinha qui é obrigação, é
minha fia. Mai a quenguinha, não. Ocê iscolhe. Ocê aceita os meus princípio o
intão fica o dito pelo não dito. Amanhã eu vô s’imbora mais meus minino i num
si fala mais nisso.
Marta calou-se com desânimo. Era evidente
que não devia mais insistir. Não podia sacrificar todos os filhos por causa de
Gabi. Uma lástima que Dito fosse tão ingrato e tão preconceituoso. Gabi era
apenas uma criança. Merecia que alguém lhe estendesse a mão, lhe desse uma
chance. Procurando segurar as lágrimas, Marta fez sinal com a cabeça que estava
certo, que concordava com Dito Timbó. Acabou por falar:
– Então está
bem. Que remédio... Deixe que eu vou falar com as meninas. Ritinha e Manoela
queriam tanto que Gabi ficasse com elas.
Mas Marta não precisou falar nada. As três
meninas saíram do alpendre onde estavam e se deixaram ver, lideradas por Gabi,
que já chegou falando:
– Deixe pra
lá, Dona Marta. Não precisa perder seu tempo. Eu compreendo muito bem a
situação. Nunca pensei que eu pudesse ficar com vocês. Conheço a coisa bem
demais. Pode deixar que amanhã mesmo eu desapareço no mundo.
– E eu
desapareço com ela – gritou Ritinha, inflamada, as narinas bufando.
– Que é isso,
minha filha?! Que bobagem é essa? Pois você ia ter coragem de abandonar sua mãe
e seus irmãos?
– Ia, não,
mãinha. Eu vou ter essa coragem sim. E lhe digo mais: eu ia precisar de muito
mais coragem para ir viver junto com esse homem aí!
– O que é
isso, Ritinha! Olhe o respeito com seu pai. Dito, releve essa menina, acho que
o sofrimento deixou ela variando! Filha!
Mas Ritinha era, de fato, uma Timbó.
Irredutível, portanto. Era um assombro ver aquele olhar de decisão e desafio,
aquelas narinas arfando no rostinho delicado, a expressão de raiva que ia
crescendo em sua voz:
– Meu pai?!
Pai agora é? Por que não foi pai quando eu precisei, porque me largou no mundo
como uma porcaria qualquer? E nem venha me falar que ele não sabia, se foi a
senhora mesmo que disse que não adiantava falar pra ele, que ele nunca que ia
dar bola pra uma filha mulher. Pois isso é pai de macho só?
– Pare,
Ritinha, pelo amor de Deus – Gabi suplicou – Pare, por favor. Não se
prejudique, não ofenda o seu pai, ele pode fazer muito por você agora. Pode
fazer o que ele nunca fez.
– Não, não
precisa fazer nada por mim agora. Agora é tarde. Agora eu é que não quero! Eu
não tenho pai! Eu não vou aceitar isso só porque agora ele pode me ajudar,
porque agora ele pode me dar casa, proteção e coisas. Não aceito. Porque se
aceitar, isso sim é que vai ser prostituição! Eu não me vendo por casa, comida
e conforto, vida boa. Não!
– Não, Ritinha!
– era Manoela que falava agora, chorando apavorada – Por favor, não deixe a
gente de novo. Fique com a gente, irmãzinha. Não...
– Eu não
deixo vocês. Vou ficar sempre em contato. Mas eu também não vou com vocês. Fico
com minha amiga.
Finalmente Dito Timbó abriu a boca:
– E ocê vai
fazê o que cum sua amiga? Vai vivê como? Qué virá quenga também, é, sua
desaforada?
– Se for
preciso! Se não tiver outro jeito. Prefiro ser quenga a ser filha de um homem
como o senhor!
Dito Timbó deu um passo em direção à menina,
braço erguido, pronto a estapeá-la, impor respeito. Mas, naquele momento, ele
teve que olhar dentro dos olhos de Ritinha. E o que viu tirou-lhe o ímpeto da
ação.
Nunca, em toda sua vida, Dito Timbó tinha
visto um olhar assim. Inimigos e vítimas, homens que tentavam matá-lo e homens
mortalmente feridos por ele, naquele instante supremo quando os olhos de
algozes e vítimas se encontram por segundos, o haviam mirado com ódio ou com
pavor. Estava acostumado. Mas o olhar daquela criança era completamente
diferente.
Nos olhos de Rita, vindo lá do fundo da alma
da menina, Dito Timbó viu algo diferente: desprezo!
Desprezo, nojo, raiva surda, mágoa guardada há muito, muito tempo. Ante esse
olhar, os olhos do matador se abaixaram. Abaixou-se igualmente o braço
ameaçador. O homem estacou por segundos, o suficiente para ouvir as palavras
cortantes e finais daquela filha tão bonita, tão novinha e tão... Timbó!
CONTINUA
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