sexta-feira, 31 de março de 2017

OFICINA DE ESCRITA CRIATIVA PARA ADOLESCENTES DO  PROJETO RESGATE
MILTON MACIEL

Neste sábado,1o de abril, e no próximo, dia 8, das 9 às 17 horas, a Academia Joinvilense de Letras estará representada, através de seu presidente, o acadêmico Milton Maciel, num trabalho voluntário em benefício de jovens que recebem apoio humanitário do PROJETO RESGATE. Estes 50 meninos e meninas são bolsistas que o Projeto Resgate mantém em escolas de alto nível da cidade, como o Colégio Bom Jesus, cursando o nível médio. Com explica a coordenação do Resgate:

“Os jovens participam de um trabalho denominado REINVENTANDO JOINVILLE, através do qual devem propor a revitalização de dois pontos da cidade: a Rua dos Ginásticos e a Rua XV de Novembro, na quadra em que se encontra a Harmonia Lyra. A ideia é que essa revitalização seja feita a partir das demandas das pessoas diretamente interessadas nisso, tais como os comerciantes, os gestores das sociedades em questão, os responsáveis pelo Shopping, os que dormem sob as marquises do Ginástico e da Lyra, os que gostariam de desfrutar esses lugares, mas não veem motivo, nem se sentem seguros, etc. Os jovens participantes do desafio terão de identificar esses interessados. E construir uma história completa, com personagens, enredo e imagens, para mostrar à cidade o que eles, com sua pesquisa, trabalho e criatividade, concluem ser o melhor caminho a seguir para a revitalização das zonas afetadas.

 A ideia de criar personagens ficcionais com base em entes reais é para ampliar e aprofundar nos jovens a percepção do ser humano, seus desejos, temores, conflitos, etc. A revitalização deve partir das pessoas e ser feita para as pessoas. As psiques dessas personagens darão o tom para todo o projeto. Quando fizerem a oficina seguinte, “O Olhar do Fotógrafo”, deverão capturar, com seus celulares, imagens dessas áreas, para mostrarem como as personagens veem seus contextos e como veem o mundo. Entendemos que o desenvolvimento da empatia é fundamental para que eles cresçam como cidadãos, como profissionais e como seres humanos de uma forma mais ampla. É o primeiro passo para entendermos melhor nosso semelhante e assim começar a estabelecer relações relevantes.”

Nestes dois sábados, das 9 ás 17 horas, duas turmas, com 25 jovens cada uma, passarão por uma oficina prática de escrita criativa, denominada “O OLHAR DO ESCRITOR”. Nela o escritor Milton Maciel, titular do curso de formação de escritores “O Escritor Publicável” e autor dos livros “A  ARTE E A TÉCNICA DO ROMANCE” e ‘A ARTE E A TÉCNICA DO PERSONAGEM”, da série “Como Escrever Ficção”, ensinará aos alunos como se constrói personagens, enredo, diálogos, cenário, descrição, narração, ritmo, ponto de vista, voz, tema e simbolismo. Tudo através de um áudio visual adaptado para a faixa etária e de conhecimento dos estudantes, e de muitos exercícios práticos, através dos quais os jovens irão construindo um por um os diversos personagens que precisam colocar em ação no seu projeto de reinvenção de Joinville, para revitalização das ruas 15 de Novembro e dos Ginásticos. 

A Sociedade Harmonia Lyra cede o espaço – seu salão nobre, a Sala Mozart. O Projeto Catarse arca com todos os custos de transporte e alimentação dos jovens. E a Academia Joinvilense de Letras dá seu apoio logístico e fornece o know how – através do acadêmico Milton Maciel, que não aceitou cobrar nada pelos dois sábados de trabalho com os adolescentes do Projeto Resgate.

quinta-feira, 30 de março de 2017

O BISCOITO DA SORTE 
MILTON  MACIEL 

Foi um almoço magnífico. Mais um no meu restaurante japonês favorito em Miami, o Ginza Buffet, ali na Biscayne Blvd, quase esquina com a 163. Desenvolvi o costume de levar ao Ginza todo e qualquer brasileiro que conheço em Miami. É bom demais, principalmente para os glutões (ah... como eu!). No exagerado sistema americano, é um ALL YOU CAN EAT fabuloso, com uma inacreditável variedade de comidas japonesas, chinesas e até algumas ocidentais, com todos os peixes, camarão e frutos do mar, crus, fritos, cozidos ou grelhados, à sua escolha.

Aqueles enormes balcões com comidas fazem um L, começando no crus e terminado na outra ponta com uma enorme chapa, onde dois funcionários colombianos, com sua roupinha de sushi man, grelham uma variedade de frutos do mar e de carne em tiras, assim como vegetais e algas. Eu não como peixe cru nem por decreto. Então, com meu ascendente em Aquário, gosto de escandalizar os grelhadores: apanho as tiras de peixes crus e as entrego para que eles a passem na grelha. Eles ficam indignados, é claro, com a minha insensibilidade e grossura, desrespeito total à arte, o que faz com que eu me divirta muito.

Aí vou para a mesa e me esparramo comendo camarão de tudo que é jeito concebível, fora todo o resto. A gente levanta várias vezes, para repetir aquilo de que mais gostou. Mas tem que saber deixar um cantinho reservado, no lado esquerdo superior do estômago, porque há uma enorme mesa gelada com sorvetes, doces e cookies, para arrematar. Isso sem falar no espaço necessário para o chá. Ou gelado ou quente, que as moças a toda hora repõem nos copos da gente. A menos que você prefira água. Nos Estados Unidos, em qualquer restaurante, os garçons não ficam tentando te empurrar uma bebida, cerveja, vinho ou refrigerante, porque você tem direito a água gelada de graça o tempo todo, com o pessoal repondo-a no seu copo nem bem ele se esvazia. No Ginza, água ou chá gelado, à sua escolha, são de graça.

Então você come o que consegue, já que All You Can Eat quer dizer TUDO O QUE VOCÊ PUDER COMER. E no fim, depois desse banquete (para mim. especialmente. de camarões), incluída a sobremesa, você paga por tudo apenas 12 dólares, tip and tax included – com gorjeta e imposto único de 7% incluído: 36 reais! Aí você compreende porque os brasileiros que se mudam para Miami estão condenados a engordar. Também com coisas como o Ginza Bufffet ou o Jumbo Buffet (também ali na Biscayne e que é ainda mais barato, embora menos requintado no ambiente), não há força de vontade que aguente. A única coisa que você pode fazer é evitar entrar num lugar desses. Se entrar, dançou – a sua linha de cintura, entenda-se.

Pois é, mas como eu dizia, foi um almoço magnífico, mais um, desta vez com um casal de brasileiros jovens, de Salvador, que tinham uma coisa bem diferente. O cara não tirava os olhos de um americano grandão, formato e altura de guarda-roupa de casal, tipo dois metros por dois metros. Por um momento receei uma tragédia. Se o negão ficasse incomodado, podia levantar e soltar a mão no baianinho. E aí a cabeça dele ia virar sushi. Mas o gringão parecia estar interessado também, de modo que eu relaxei, por que tinha que cuidar de outro problema. A mulher do cara, uma baiana escultural, começou a fazer carga pra cima de mim. Eles tinham pedido vinho e estavam ambos muito alegrinhos. E ao que parece, sob os efeitos etílicos, cada um estava soltando a franga da sua maneira própria.

O namoro do rapaz com o cara com aparência de lutador de sumô africano estava em franco progresso. O da esposa dele (eram casados mesmo, há três anos apenas) comigo evoluía do jeito dela, isto é, arretado demais, xente. Eu ali meio constrangido, afinal o marido estava ao lado dela e a maluca já tinha me passado a mão, por baixo da toalha, duas vezes. Então o negrão levantou para ir ao banheiro e o maridinho foi atrás. Pronto, pensei, danou-se!

Aí a baianinha gostosa veio com tudo, de forma que eu tive que explicar para ela que ali era os States, o pessoal era caretão, que se alguém ficasse incomodado com o amasso dela e fizesse queixa, a gente podia ir em cana direto. Foi nessa hora que chegou a garçonete salvadora, com a conta do cartão de crédito para assinar (eles não usam cartão com chip, como no Brasil, o índice de falcatruas com cartões é muito menor). Assinei, marquei o tip e recebi da mocinha o pratinho com os três biscoitos da sorte chineses (fortune cookies). São aqueles biscoitinhos adocicados de massa fininha, que dentro têm um papel com uma pequena mensagem impressa.

Estendi o pratinho à minha assediadora, que deu uma enorme mordida no dela e mastigou o papel junto, fazendo uma cara de surpresa. Eu fiquei quieto, achando que, se falasse, ela ia se sentir mais envergonhada ainda. Ela enrolou e enrolou, mastigou e mastigou e acabou  engolindo tudo. Eu fiz que não percebia nada e parti com as mãos o meu biscoito da sorte, que se quebrou em vários pedaços e me entregou minha mensagem. Até aí, tudo bem. E o maridinho nada de voltar do banheiro, se estivesse atacando o negão com a mesma sofreguidão da esposinha, eles é que iam entrar em cana, logo, logo.

Mas aí aconteceu a coisa mais estranha do mundo. Quando abri a minha mensagem, fiquei perplexo com o que li. Pois ali estava IMPRESSO: Be careful, this young lady harassing you is mentally sick. She’s dangerous, get out, while you can!

Caramba, ali estava IMPRESSO que a moça à minha frente era doente mental! E que era perigosa e que eu me mandasse enquanto podia. PUXA, ISSO ERA ABSURDO! Como é que uma mensagem que estava impressa dentro de um fortune cookie qualquer podia descrever o que estava acontecendo, que a menina  estava de fato fazendo carga (e eu estava começando a ficar embalado, que só o Iron Man é de ferro). Terminava com um sonoro SE MANDA, ENQUANTO DÁ!

Bem, podia não ser nada, mas eu afinei. Pedi licença para ir ao banheiro e, como a conta já estava paga, saí quase correndo para o estacionamento, saltei no Toyota e me mandei dali pela US-1 à velocidade máxima permitida, 45 milhas por hora. Só parei no  Aventura Mall. Desliguei o celular, fiz um tempo, fui conversar com minhas amigas que trabalham lá, na Sephora e no Nordstrom. Dali fui para a hoje saudosa loja da Barnes and Noble e passei o resto da tarde lendo revistas e livros. Afinal, eu sabia que aqueles malucos iam embarcar naquela noite de volta para o Brasil.

Uns três meses depois, estou eu lépido e faceiro na lanchonete do Costco da Biscayne, mandando meu hot dog semanal (um dia ainda falo dele para vocês, é inacreditável também), e lendo meus e-books calmamente no Galaxy, quando alguém vem por trás de mim e me dá um tapinha nas costas. Era o maridinho! Estava um bocado mudado: Calça de sarja bem justinha, uma blusa (!) que deixava um pedaço de sua barriga tanquinho de fora e os cabelos agora cacheados, pintados de um loiro quase ruivo que era realmente lindo de se admirar. Ele falou:

– Ah, seu danado! Fugiu de nós e nos largou na mão, hein! Tivemos que voltar para o hotel de táxi. O que aconteceu? Não vai dizer que foi aquela maluca da Vivi.

Como resposta, eu peguei minha carteira e tirei lá de dentro o bilhetinho que estava dentro do meu biscoito da sorte. E contei rapidamente o que tinha acontecido.

O rapaz ficou pasmo também. E disse, excitado:

– Vixe, meu Pai! Pois não é que o bilhete estava certo. Terminei o casamento mês passado, aquela maluca tentou me matar com uma faca deste tamanho. Como eu corri dela, ela atacou o porteiro do edifício, mas aí o cara desarmou ela e deu-lhe a maior surra. A doida está internada em Salvador até agora. Aí eu não tive dúvida, peguei os meus pezinhos e a minha malinha e vim voando para Miami. Para o meu Harry.

E voltando-se para o setor da lanchonete às minhas costas, acenou com a mãozinha lisa, de unhas perfeitas e nacaradas em tom róseo. Lá atrás, na mesa onde eles estavam, Harry respondeu ao aceno e me dirigiu um sorriso amistoso. E, muito educado, levantou-se e veio me cumprimentar. Com seus dois por dois metros, uma mão preta que dava duas da minha, Harry era só simpatia. E bondade, foi essa a impressão que tive dele. Falou que fazia questão de me cumprimentar porque ele tinha me apelidado de “my stupid cupid”, uma vez que eu tinha sido o cupido que tinha aproximado aqueles dois corações apaixonados. Não tivesse eu levado o Carlinhos (Charlie honey, agora) ao Ginza...

Pois é. E o biscoitinho da sorte? A mensagem ainda está na minha carteira, conservo-a ali porque ainda estou à procura de um expert que possa me explicar aquilo. Você pode?

terça-feira, 28 de março de 2017

PARA QUEM QUER ESCREVER FICÇÃO
# 6 - ESCREVER SUSPENSE
MILTON MACIEL

Primeiro vamos recapitular algo que escrevi antes sobre diferenças entre suspense e mistério, para deixar as coisas bem claras. Em Mistério eu trabalho com o intelecto do leitor, estimulo-o basicamente a descobrir “quem fez isso”. Há um mistério e ser resolvido pela capacidade intelectual do leitor, que emparelha (e tenta se antecipar) com quem deve solucionar o mistério, que é o protagonista. Mas veja que eu falei: “quem FEZ isso”. Ou seja, via de regra, a coisa já foi feita.

Em suspense, a coisa ainda não foi feita. Mas está em vias de ser feita ou de acontecer. Então o que eu tenho que fazer é dar informações a meu leitor para que ele saiba de antemão o que pode vir a acontecer. Coisa que meus protagonistas ainda não sabem! Eu preciso fazer também que meu leitor não queira que a coisa aconteça. Que sofra de antemão com meu protagonista, que é a grande vítima potencial do mal que pode acontecer e que tem que ser evitado a qualquer custo. Para isso preciso fazer meu leitor gostar dos meus protagonistas, identificar-se com eles.

Vamos pegar por exemplo o caso clássico da explosão de uma bomba. O antagonista armou a bomba para explodir em 10 minutos. Há um monte de gente no lugar e ninguém sabe que a bomba está escondida ali, pronta para detonar automaticamente em mais x minutos. Minha protagonista descobre que pode existir uma bomba. Mas não sabe se ela existe de verdade, onde está, qual a sua potência e quando explode.

Mas meu leitor sabe de antemão tudo isso. Ele sabe que a bomba existe, sabe o dano que ela pode causar, sabe onde ela está e eu ainda faça a crueldade de mostrar os números digitais escorrendo em contagem decrescente. Quatro minutos para a bomba explodir e o pessoal contando piadas ao redor da mesa. A bomba está em baixo da mesa! Três minutos para explodir e ninguém dá bola quando a protagonista chega apavorada e diz que foi informada que existe uma bomba no salão. Dois minutos para o bum e, para aumentar a tensão, eu faço duas menininhas inocentes entrar debaixo da mesa, brincando de esconder. Pior, são as filhas da protagonista que eu fiz os leitores amarem de paixão, porque é uma criatura admirável.

Eu escrevo: 15:29. Os leitores já sabem que a bomba vai explodir às 15:30 exatamente. Agora as menininhas brincam com um cachorrinho que apareceu em baixo da mesa. O antagonista, que é um terrorista louco e quer se explodir junto com todos, impede a protagonista de se aproximar da mesa, quando ela está a três passos de saber onde está a bomba e descobrir onde suas filhas se meteram.

15:29:50. De nada adiantaria a protagonista achar a bomba ali no pé da mesa, ao lado de suas crianças. Ela não saberia como e nem teria tempo para desativá-la. Esse é o momento de máxima agonia para o leitor, suspense máximo. Meu Deus, qual o milagre que pode acontecer para salvar minha protagonista e suas menininhas, as únicas pessoas pelas quais o leitor sofre e se preocupa, por causa de quem cresce sempre o suspense? Os outros no salão são meramente figurantes para o leitor, embora possam ser velhinhas do asilo ou crianças da escola.

Se fossem só deputados, possivelmente os leitores estariam torcendo agora a favor do vilão. Mas o problema é que, no meio desses políticos, estão nossa amada protagonista e suas crianças inocentes. E elas, junto com o antagonista, estão exatamente ao lado da bomba, no epicentro da explosão. Possivelmente a tragédia seja tão grande que elas morram e os deputados lá das pontas escapem só com as perucas chamuscadas. E os leitores, indignados, nunca mais leem nenhum livro meu.

15:29:59. O fim! Mas, na hora H, o cachorrinho, seguindo o milenar instinto, levanta a patinha e faz xixi no pé da mesa. Bem no ponto onde está escondido o detonador. Molhado, ele não funciona. A santa mijadinha salvou a humanidade. A festa se prolonga até ás 18 horas, todo mundo vai embora contente, as velhinhas, as crianças e os deputados se salvam, a protagonista fica desmoralizada, o terrorista mais ainda. Nossa heroína fracassada vai para casa com suas filhas, decidida a deixar de bancar a detetive, voltará humildemente a dar aulas de física quântica na universidade.

19:30. O terrorista, mudando de opinião e de fé, volta escondido para o salão de festas e, entrando em baixo da mesa, começa a desarmar calmamente sua preciosa bomba para rearmá-la no Congresso. Agora ele sonha converter-se em ídolo popular, ser reconhecido como herói nacional e  salvador da pátria. A última coisa que ele nota é aquele estranho cheiro de xixi. A água acabou enfim de evaporar. Buuuummmm! O salão vazio, a grande casa de festas vazia, o quarteirão vazio, desaparecem no ar.

Nossa heroína é reabilitada, todos pedem perdão a ela, até o maridão reaparece e pede para voltar. Mais por cima do que nunca, ela perdoa só o povo.

Nosso vilão, coitado, morreu em vão, não conseguiu levar ninguém com ele para o inferno, justo quando o potencial para isso era máximo, com todas aquelas centenas de deputados em cena. Maldito cachorro mijão!

Agora, deixando o lado engraçado da história de lado, vamos usar o exemplo para concluir:

Suspense é ANTECIPAÇÃO DA AÇÃO. Assim que a ação acontece, acabou o suspense. No nosso exemplo, houve suspense crescente até que o leitor se convenceu que a bomba não ia mais explodir. Bendito cachorrinho, pensarão muitos. Maldito cachorro mijão! – pensarão os mais politizados. Mas o fato é que ACABOU O SUSPENSE.

Mas COMEÇOU O MISTÉRIO:
Quem montou a bomba naquele lugar? Quem a detonou. Por quê?  Está vendo: “Quem fez isso?”

(Continua) - Na foto, o grande diretor Alfred Hitchcock, o Mestre do Suspense.

segunda-feira, 27 de março de 2017

PARA QUEM QUER ESCREVER FICÇÃO
# 5 – SUSPENSE, MISTÉRIO, TERROR
MILTON MACIEL

Vou procurar responder aqui a certas dúvidas que tenho observado tanto em meus alunos do curso de formação de escritores como em escritores a que venho prestando assessoria à distância. O tema inicial é FICÇÃO DE GÊNERO. E, a seguir, abordo as diferenças entre as modalidades de gênero SUSPENSE, MISTÉRIO E TERROR.

A ficção pode ser Literária, Dominante ou De Gênero. Já me referi a isso no início desta série, desnecessário repeti-lo aqui. Mostrei, inclusive, exemplo de gêneros e de subgêneros. De onde veio essa classificação? Basicamente ela foi criada pelo mercado editorial, que precisou definir os diferentes nichos que os LEITORES preferem, de forma que tanto editores quanto autores pudessem se adequar aos gostos e exigências daquele que manda em qualquer mercado: o consumidor. Ao longo dos anos, esses nichos foram se definindo e estratificando em gêneros e subgêneros, variações especiais dentro de cada gênero.

Por exemplo, na ficção de gênero romântica há regras bem definidas a observar pelo autor. A trama tem que girar em torno de uma relação de amor heterossexual, o conflito e o antagonismo provêm de alguém ou alguma condição que tenta impedir o sucesso dessa relação, a epifania surge quando um dos dois (ou ambos) protagonistas consegue se transformar e, superando suas falhas ou limites, logra alcançar condições para tornar o amor possível. E o fim tem que ser sempre feliz. Para poder fazer parte da forte RWA – Romance Writers of America – não basta pagar a anuidade de 100 dólares. Você precisa provar que já publicou pelo menos um romance com essa estrutura geral e se comprometer por escrito a observá-la sempre em suas próximas obras.

Caramba, mas isso não é caretice, não é engessar a criatividade do autor? Olhe, pode até ser, mas acontece que as editoras já sabem que há um gigantesco público consumidor para este tipo de gênero literário, apenas o maior de todos para ficção. Então elas não vão investir dinheiro na publicação de uma obra de ficção romântica que não esteja adequada a estes cânones. Ou seja, se você quer ser publicado e vender ficção romântica, então você tem que escrever dentro desses estreitos limites de estruturação. É simplesmente uma questão de escolha. Ela é fundamentalmente mercadológica e, não, artística. Se o seu par romântico é formado por pessoas do mesmo sexo, sua história será reclassificada para outro importante nicho de mercado, que é a ficção de gênero LGBT.

Pois bem, da mesma forma que para o gênero de ficção romântica existem essas regras particularíssimas, outras regras se aplicam a cada um dos outros gêneros e subgêneros.

Agora passo a responder e esclarecer as dúvidas sobre o que é adequado aos gêneros de Suspense, Mistério e Terror.  Enfatizando, outra vez, que é tudo uma questão de adequar-se àquilo que o mercado editorial aceita publicar, que é o reflexo exato daquilo que os leitores aceitam comprar. Você pode, perfeitamente, escrever fora da caixinha, rebelar-se contra essas imposições de gênero, operar dentro de um nicho híbrido menos comum. Apenas lembre que vai ser mais difícil que as editoras aceitem o seu manuscrito, nada que uma boa autopublicação não possa resolver. Contudo, depois, nas livrarias, você vai notar a mesma má-vontade com a exposição e difusão de sua obra. Fazer o quê?, são as regras do mercado. Mas, insisto, isso não é razão para você desistir da luta, você pode ir em frente por conta própria nas etapas de produção, distribuição e comercialização, desde que aprenda a se estruturar para isso.
SUSPENSE é a grande mãe desse e dos outros dois gêneros também. É óbvio que o Mistério e o Terror bem-sucedidos são também movidos a suspense. A diferença está em como você cria e gradua esse suspense, onde o aplica, qual a situação do protagonista, do crime, da solução.

Há pelo menos um crime ou uma tragédia natural no enredo de qualquer dos três gêneros
No Suspense, o leitor fica ali, roendo as unhas, antecipando o crime que pode acontecer.
No Mistério, o crime normalmente JÁ aconteceu ao começar a história.
No Terror, mais brutal, o leitor VÊ o crime acontecendo, conhece o criminoso

Qual é a grande questão do enredo:
No Suspense é: Como evitar que o crime aconteça.
No Mistério é: Quem praticou o crime.
No Terror é: Como vai morrer a vítima.

Como o autor orienta o leitor:
No Suspense, o leitor conhece perigos que os protagonistas ainda não sabem que vão correr.
No Mistério, o leitor recebe e procura indícios que lhe permitam descobrir o criminoso por si.
No Terror, o leitor vê as ações, não existe mistério, o leitor conhece o segredo.

Como funciona no leitor:
Suspense: Emoção, coração. Preocupação com os protagonistas e sua sobrevivência.
Mistério: Pensamento, cérebro. Dedução intelectual.
Terror: Visceral, medo. Susto.

No próximo bloco vamos falar mais detalhadamente sobre como criar suspense em seus escritos, de um modo mais geral, não restrito apenas a estes três gêneros aqui mencionados.

CONTINUA


sábado, 25 de março de 2017

POEMA DE OUTONO   (Celebrando a estação)
MILTON MACIEL  

Tomba a folha mansamente, em seu último suspiro,
rutilante em tons de rubro, de um brilho adamantino.
Despede-se da luz, do bosque ‘inda verde, do retiro
em que viveu sua vida e onde cumpriu o seu destino.

Vezes sem conta tragou sol, regurgitando oxigênio,
como fazem sempre as folhas, milênio após milênio.
Generosa supriu flores, frutos, ramos, troncos, galhos,
Até fazer de sua árvore o mais frondoso dos carvalhos.

Mas então o inevitável: eis que seu ciclo terminou
e a folha, agora velha, foi perdendo a serventia.
Foi-se o verde, escureceu, perdeu seiva, ressecou.
E então, se desprendendo, alcançou o último dia.

Suave flutuou ao vento, tão tranquila a trajetória,
e chegou serena ao chão, encerrando sua história.
Estendeu-se feliz: era o final, missão cumprida;
Olhou pro céu, sorriu... e despediu-se desta vida.


quarta-feira, 22 de março de 2017

PARA QUEM QUER ESCREVER FICÇÃO
 # 4 – INDÍCIOS NÃO-VERBAIS – 4ª. parte
MILTON MACIEL (Esta série oferece contribuições à técnica de quem quer escrever ficção)

Agora vamos, finalmente, dar atenção ao assunto proposto no título, os indícios não-verbais. Eu não poderia chegar a ele sem passar pelas etapas anteriores, principalmente sem ressaltar a diferença entre contar e mostrar.

Não-verbal é tudo o que não tem a ver com o que é dito, verbalizado, diretamente, seja pelo narrador, seja pelos personagens. Se eu escrevo:

“Escondeu-se nos arbustos, com receio de ser percebido”, eu estou contando.

Mas se eu escrever:

“Dois minutos? Três? Quanto tempo levariam para perceber sua presença? Deus, se eles me pegam aqui, estou liquidado! Contraiu-se de bruços entre os arbustos, ofegante, um suor frio escorrendo da testa, uma estátua de sal”, então eu estou mostrando.

E aqui nem tudo o que eu escrevo tem apenas denotação direta. As conotações, analogias, comparações, metáforas ou metonímias que são usadas num texto assim transformam a narrativa de um simples contar em um intenso mostrar.

A narrativa linear do contar: “Escondeu-se nos arbustos, com receio de ser notado” não passa ao leitor a intensidade dramática da situação e da condição em que o personagem se encontra. “Escondeu-se entre os arbustos”. Sim, e daí? “Com receio de ser notado”. Ah, não quer ser visto. Sim, e daí? – outra vez. Não que ser notado porque vai dar um susto, vai fazer uma brincadeira, vai espiar as meninas no banho – vai se divertir, enfim. Eu vou ter que expor que o personagem enfrenta uma situação de risco com pelo menos mais uma frase da narrativa direta.

Veja agora a outra construção:

“Dois minutos? Três? Quanto tempo levariam para perceber sua presença” transmite a ideia de tempo, de urgência. Começa a desenhar a situação de risco, que se completa na frase seguinte. Mas nesta o personagem ponto de vista (PPV), o narrador, deixa de ser o onisciente em terceira pessoa e passa a ser o próprio protagonista da cena, que narra em primeira pessoa: “Deus, se ele me pegam aqui, estou liquidado!” Nesse momento o leitor entra na pele do personagem e passa a viver sua tensão, que só se intensifica a seguir.

E, a partir daqui, temos uma série de indícios não-verbais que informam o leitor sobre a situação do protagonista: “Contraiu-se de bruços” mostra um esforço muscular para ocupar menos espaço, esconder-se ainda mais, conota tensão extrema. Mas você não diz que ele está tenso, não verbaliza. “Ofegante” pode acentuar ainda mais o medo, mas é dúbio, pois pode ser também consequência de o personagem ter corrido antes. “Um suor frio escorrendo da testa”, no entanto, é inequívoco. Aqui a palavra-chave é o adjetivo frio. Suor frio é sintoma de medo. E a expressão “suor frio” resgata e qualifica assim o “ofegante”. Mas você não diz que ele está com medo, não verbaliza. “Uma estátua de sal”, metáfora que traz à mente a imagem bíblica da mulher de Lot, arremata de forma contundente a narrativa, mostrando o personagem rigidamente paralisado, tal sua tensão, tal o seu medo. Mas você não diz que ele está com tanto medo que fica paralisado. Não verbaliza.

Isso tudo são indícios não-verbais.

Eu poderia estragar a força deste texto substituindo a metáfora implícita “uma estátua de sal” por uma comparação: “Ficou paralisado como uma estátua de sal”. Isto é uma comparação, está ali a palavra como para fazê-lo. Veja que a construção perde força e, ao mesmo tempo, você rouba o leitor da delícia de fazer ele mesmo a metáfora viver dentro de sua mente, sua memória (mulher de Lot) e sua imaginação.

Veja agora trechos da construção que usei no nosso Romance “A Guerra de Jacques”, que mostrei na parte 2 desta série sobre Indícios Não-verbais:

“... preferiu descer para a adega, no subterrâneo. Os sapatos soaram pesados na escada de madeira, o odor de cerveja e serragem inundaram-lhe o nariz e a luz mortiça consolou sua vista dolorida. Deu alguns passos irresolutos e, de repente, jogou-se sentado sobre a serragem no chão, em um vão entre barris de chope. Fechou os olhos, segurou a cabeça pela fronte com as duas mãos e deixou-se enfim desabar. Estava só, poderia chorar, a dor que fazia cabeça e peito doerem tanto exigia isso. Mas não! Estava com raiva demais para poder chorar. Gemeu, encolhendo-se e viu-se novamente como uma criança na escola quando as outras...”

Aqui uso um recurso forte para trazer o leitor para dentro da situação do personagem, para mostrar: Exploro os sentidos físicos! Audição (o som dos sapatos na escada), olfato (cheiro de cerveja e serragem), visão (luz mortiça). Pronto, o leitor está dentro da adega agora, sua imaginação lhe traz inevitavelmente o cheiro de cerveja, quiçá até mesmo o de serragem, que provavelmente lhe é menos comum no dia-a-dia). Você não se detém para pensar nisso enquanto está lendo ali, na corrida, seguindo atento a narrativa; mas você ouviu, sim, um ruído de sapatos numa escada de madeira, o SEU som de sapatos na madeira, sua particular experiência de ruídos desse tipo, que você já ouviu na vida real e nos filmes.

Essa é a essência mesma do trabalho do escritor de ficção: combinar palavras de tal forma que o leitor embarque em sua viagem, viva as emoções da cena e dos personagens, à sua própria maneira – porque não pode ser de outra maneira, simplesmente.

Cada um de nós, ao ler em menos de um segundo(!) a menção aos passos dos sapatos na escada íngreme de madeira, formou automaticamente sua imagem, viu a escada, ouviu os passos. Só que viu a SUA escada, íngreme dentro do seu conceito subjetivo ou memorizado de íngreme; e ouviu os passos DA SUA MANEIRA. Mas viu, ouviu e até cheirou o ar impregnado de aromas de cerveja e serragem – mas os SEUS aromas mentais de serragem e cerveja.

Por coisas assim é que MOSTRAR é tão importante. É levar ao máximo nossa cumplicidade com nossa leitora, com nosso leitor, nossos grandes parceiros nessa jornada gloriosa da literatura de ficção.

Veja agora este outro trecho:

“...De repente um salto, pôs-se em pé! Deu um chute num barril pequeno, que rolou pelo piso até estatelar-se na parede em frente. Burocratazinho sem vergonha! Maldito! Desgraçado!  Os passos no porão o levavam errático como uma fera enjaulada.  Eu fiz tudo por este país – a cabeça latejava! – Corri todos os perigos, ajudei as transmissões clandestinas, enganei a Gestapo, nunca traí um companheiro! Deu um tremendo murro no ar, extravasando a fúria: Fui prisioneiro e escravo na Krupp. “Chamem o belga, o belga traduz”, os alemães diziam, os franceses diziam, os prisioneiros holandeses. O Belga!  Eu era...”

O salto, o chute no barril, traduzem raiva. Não preciso dizer isso, não verbalizo. “A cabeça latejava” traduz dor. Não digo isso, não verbalizo, deixo como metáfora para o leitor terminar a construção dentro de sua própria mente.

Deu um murro tremendo no ar, extravasando a fúria. De propósito usei esta construção no artigo, para poder comparar agora com a que deixei no livro:

Deu um tremendo murro no ar: “Fui prisioneiro e escravo na Krupp, etc... Quer dizer, não disse para o meu leitor que aquele gesto era para extravasar a fúria, porque é óbvio que o leitor é inteligente e perspicaz o suficiente para saber isso. Mas ele vai ter o prazer de chegar a essa conclusão por si mesmo, de forma automática. Essa é a tal parceria com o leitor a que me refiro. E a que Ernest Hemingway se refere em sua Teoria do Iceberg, quando insiste que o autor não pode encher o leitor de descrições e pormenores nos mínimos detalhes, como se este fosse um incapaz sem imaginação. Concordo com Hemingway e uma das formas mais brilhantes de fazer isso na pratica é usar – de forma ocasional e bem calculada, sem exageros – os indícios não-verbais.

Para concluir, mais um trecho:

“... O ronco de um caminhão na rua, lá em cima, estremeceu a adega, inundou o seu silêncio, calou o ruído ensurdecedor das forjas, das calandras, das esteiras, dos altos fornos, das bombas dos aliados caindo em Essen diariamente, do fragor mortal da parede do hospital desabando sobre seu corpo, soterrando-o em meio à neve. Ele afrouxou as pernas sobre os joelhos, ficou um só instante assim e então jogou-se de bruços no chão...”

Aqui o leitor sabe, porque já leu nos capítulos anteriores, que o protagonista passou por todas essas experiências e ouviu todos esses ruídos, que agora assombram sua mente na adega, quando foi prisioneiro na Alemanha. Forjas, calandras, esteiras, altos-fornos, bombas, desmoronamento. Todos esses sons, bem descritos nos capítulos já lidos, voltam instantaneamente à cabeça do leitor, que reconstrói de forma automática, em sua própria mente, tudo o que se passa na mente atormentada do personagem naquele instante. E eu não preciso dizer nada disso, não preciso verbalizar, meu esperto leitor já sabe de tudo, lembrou de tudo, reviveu tudo, todas as emoções! Intensamente. E numa fração de segundo! FIM

Adaptado de "A ARTE E A TÉCNICA DO ROMANCE" - Milton Maciel, IDEL, 2017)
 A frase de Hemingway acima: "Sempre faça sóbrio o que você disse que faria bêbado. Isso vai lhe ensinar a manter sua boca fechada"



terça-feira, 21 de março de 2017

PARA QUEM QUER ESCREVER FICÇÃO
 # 3 – INDÍCIOS NÃO-VERBAIS – 3ª. parte
MILTON MACIEL (Esta série oferece contribuições à técnica de quem quer escrever ficção)

MOSTRE, NÃO CONTE

Você pode ficar confuso com essa história de “Mostre, não conte”. Porque, a rigor, tudo é contar. Eu sou obrigado a contar ao meu leitor aquilo que eu quero que ele saiba e, principalmente, que ele imagine. Porque, afinal, eu não tenho uma câmera cinematográfica, para mostrar – e só mostrar – para ele.

Já o contar é que é o grande problema para o cinema e a TV. Eu filmo uma cena mostrando uma rua de um bairro popular, numa noite de chuva, passeando com a câmera ao longo das fachadas das lojas e das paredes desbotadas e pichadas. Mas eu não tenho como dizer ao meu espectador que aquela é a rua onde o personagem X viveu sua infância e que ele está ali num retorno nostálgico, em busca de uma antiga namorada. Eu não posso abrir a cena com uma narração ou um texto. Essa informação não entra pela câmera em seu passeio, vai ter que ser colocada em cena através de algum diálogo ou monólogo em voz alta nesta cena. Ou isso acabou de ser feito na cena anterior.

Já num livro eu posso abrir a cena com a narrativa, contando a localização exata no espaço e no tempo, o narrador sabendo da história, do passado e do que se passa agora na cabeça do personagem principal. Mas, em compensação, eu vou ter que me virar e trabalhar muito se eu quiser dar muita informação sobre as tais fachadas das lojas, os grafitis desbotados sobre as paredes, as portas, as vitrines, os automóveis, a iluminação, os transeuntes, os clientes dos bares, a cara do tempo, a chuva ou neblina.

No filme isso é fácil demais. A câmera é especializada em mostrar. Ela desliza no trilho e nos informa instantaneamente sobre aquilo que o escritor vai ter que suar para dar uma ideia limitada, sem cansar ou desinteressar o leitor com descrição em excesso, uma das coisas mais chatas da literatura.

Para nós que, escrevemos ficção para leitura, contar é muito fácil, mostrar é mais difícil. Exatamente o contrário do acontece com o roteirista, para quem mostrar é muito fácil e contar é mais difícil.

Porém, é justamente no talento para mostrar que se concentra a maior ou menor qualidade do escritor de ficção. Exatamente porque mostrar, para nós, é mais difícil. E, quanto mais bem você souber mostrar, mais bem-sucedido você será ao contar sua história.

Veja, num nível muito mais rudimentar, o caso do bom piadista. Além de ter uma memória afiada para desfiar um alentado repertório, o que mais agrada aos seus ouvintes é sua capacidade de representar, de dramatizar a piada, de puxar a risada no momento certo e culminante. Ele é um artista de teatro. Ele mostra, não conta. Por outro lado, você conhece certamente um bom punhado de contadores de piada absolutamente sem graça. Eles são sem graça, não a piada! Eles contam a anedota, não mostram. Você não conta uma piada, você mostra uma piada, se quiser ser bem-sucedido na empreitada.

Da mesma forma, você já deve ter ouvido um pianista sem talento tocando um prelúdio de Chopin. Parece um mecânico martelando a lataria do seu carro. Depois você ouve um virtuose que não toca, interpreta a mesma peça, e você é capaz até de levitar. Tocar é contar, interpretar é mostrar. Interpretar transmite emoção em altas doses.

Mas atenção: isso não quer dizer que, em ficção, você não deve contar, só deve mostrar. Nada disso! Você vai ter que aprender a usar os dois recursos e dosá-los tecnicamente de acordo com a importância da cena e com o ritmo que você quer imprimir a ela. Contar acelera, mostrar ralenta. Contar sumariza, mostrar dramatiza. Contar é objetivo, mostrar é subjetivo. Contar é de fora para dentro, mostrar é de dentro para fora.

Contar vem pronto e acabado da cabeça do narrador (que é o escritor, afinal) para a do leitor. E isso às vezes é não só conveniente, como altamente necessário. Mostrar é falar com o leitor de dentro da cabeça do personagem, mobilizar seus cinco sentidos, seus pensamentos, suas emoções. E fazê-los passar para a cabeça do leitor com liberalidade, deixando-o com certa liberdade para imaginar, para criar, para supor possíveis desdobramentos nas páginas seguintes. Esse é o verdadeiro jogo da ficção. Um jogo sutil entre contar e mostrar, em que, no fundo, tudo é contar.

Mas isso depende de como você conta: contou sintético, foi objetivo, é contar propriamente dito. Contou dramatizando, foi subjetivo, transmitiu emoção e pensamento, inclui o leitor no bolo – aí é mostrar. Ou seja, é contar e contar. Só que tudo depende de como você conta.

Porque você não tem uma câmara na mão para mostrar. Você vai ter que mostrar com palavras, nossas unidades benditas de trabalho. As palavras e a sua mestria, como autor, em alocá-las e combiná-las é que vão construir a sua tomada de cena: luzes, câmera, ação!

CONTINUA

segunda-feira, 20 de março de 2017

PARA QUEM QUER ESCREVER FICÇÃO
 # 2 – INDÍCIOS NÃO-VERBAIS – 2ª. parte
MILTON MACIEL (Esta série oferece contribuições à técnica de quem quer escrever ficção

Na primeira parte deste tema eu fiz uma descrição da situação em que se encontrava meu protagonista, cujo pedido de naturalização havia sido negado pelo governo belga. E disse como poderia construir a passagem:

Eu posso fazer isso escrevendo deste jeito a cena que sucede a chegada da má notícia:

Jacques sentiu uma profunda revolta. Toda uma vida vivida nesse país, apenas os primeiros três meses fora dele, uma luta dedicada na Resistência, um período de sofrimento atroz como prisioneiro e escravo. E era assim que esse país lhe retribuía? Negava-lhe uma assinatura num simples pedaço de papel! Papel que faria toda a diferença para ele, pois ninguém mais poderia chamá-lo polaco sujo!”

Isso é dizer. Vamos agora misturar o dizer com o mostrar e ver onde chegamos nesse capítulo:

Às 3 da tarde daquele outono, a luz no grande salão do Bistrot des Amis pareceu forte demais para Jacques, ofuscava-lhe os olhos, fazia-lhe doer ainda mais a cabeça. Sobravam-lhe quase 3 horas até abrir as portas do negócio, por isso preferiu descer para a adega, no subterrâneo. Os sapatos soaram pesados na escada íngreme de madeira, o odor de cerveja e serragem inundou-lhe o nariz, a luz mortiça consolou sua vista dolorida. Deu alguns passos irresolutos e de repente jogou-se sentado sobre a serragem no chão, num vão entre barris de chope.

Fechou os olhos, segurou a cabeça na fronte com as duas mãos e deixou-se enfim desabar. Estava só, poderia chorar, a dor que fazia cabeça e peito doerem tanto exigia isso. Mas não! Estava com raiva demais para poder chorar.

– Meu Deus, meu Deus! – gemeu, encolhendo-se. Jean-Luc e Tristan gritavam no pátio da escola:

– Polaco sujo! Polaco sujo! – as outras crianças, de 8 anos como ele, riam e debochavam também.

– Não sou polonês. Eu sou belga!

– O polaco sujo fugiu da Polônia. É polaco!

– Mas eu só tinha 3 meses. Sou tão belga como vocês. Não sei falar polonês. Sempre vivi aqui.

– Mentira, Polaco é sempre polaco. Estrangeiro. Miserável, mineiro sujo de carvão.

– Ele diz que não é polonês, Jean-Luc. Vai ver é judeu, como quase todos os polacos.

– Mentira! Meus papeis dizem eu era alemão lá, minha mãe é alemã.

– Pior: é polaco sujo e é alemão desgraçado, que invadiu nosso país na Primeira Guerra.

– Polaco! Judeu! Alemão! – berrou Tristan no seu ouvido.

Jacques poderia ter chorado. Era a vontade que sentia. Mas não! A raiva era demais para chorar. De repente saltou em cima dos dois meninos e os três se engalfinharam no chão. Ganharam uma semana de suspensão os três.

Agora Jacques tinha 24 anos, rolava as pernas sobre a serragem do chão e as vozes dos meninos enchiam-lhe os tímpanos, como sempre fizeram, ano após anos de sua vida infantil e adulta.

Um salto, em pé! Um chute num barril pequeno, que rolou pelo piso até estatelar-se manso na parede em frente:

– Burocratazinho filha da puta! Maldito! Desgraçado!

Os passos agora o levavam errático com uma fera enjaulada, para lá e para cá:

Eu fiz tudo por esse país – a cabeça latejava! – Corri todos os perigos, ajudei as transmissões clandestinas, enganei a Gestapo, nunca traí um companheiro!

Deu um tremendo murro no ar, extravasando a fúria:

Prisioneiro e escravo na Krupp. “Chamem o belga, o belga traduz”, os alemães diziam, os prisioneiros franceses diziam, os prisioneiros holandeses diziam. O Belga!  Eu era o belga, o único belga num pavilhão com mais de 200 operários estrangeiros escravizados na Alemanha. E eu adorava que me chamassem de belga, porque belga eu me senti a vida inteira. Eu tinha orgulho de ser belga.

O ronco de um caminhão na rua, lá em cima, inundou o seu silêncio, calou o ruído ensurdecedor das forjas, das calandras, das esteiras, dos altos fornos, das bombas dos aliados caindo em Essen diariamente, da parede do hospital onde ele estava desabando sobre seu corpo e soterrando-o em meio à neve.

Jacques afrouxou as pernas sobre os joelhos, ficou um só instante assim e então jogou-se de bruços no chão. Enfim a explosão inevitável chegou. E ele chorou pela primeira vez desde que, três dias atrás, recebeu a terrível notícia: cidadania belga negada em caráter definitivo!

O choro convulsivo dominou todo o seu corpo por muito tempo. A dor mudou no peito, na garganta, nos olhos, intensificando-se primeiro. Depois, bem aos poucos, arrefeceu, o cansaço chegou dominador e total, uma lassidão dolorosa tomou conta de todos os seus músculos.

E, com isso, a necessária distensão chegou a seus pensamentos. E, com ela, uma lucidez que não lhe fora possível ter até então.

Jacques sentou outra vez e começou a respirar mais forte, superando a sensação de dor no peito. Mas, muito mais, superando a sensação de vergonha, derrota, revolta, frustração, de ódio que havia engolido durante todas as horas daqueles três dias infernais.

Levantou, firmou-se nas pernas. Uma nova ideia, muito clara, cresceu até dominar toda a sua mente. E ele disse, em voz alta, decidida, ostentando uma serenidade que lhe pareceu totalmente despropositada:

– Belga não sou. Polaco sujo também não. Pois bem, se este país não me quer, então eu é que não quero mais este país.

Enxugou de vez os olhos, caminhou calmamente em direção à escada e falou outra vez, dirigindo-se aos barris de chope e cerveja, seus interlocutores e testemunhas dos momentos finais de sua agonia:

– Nunca fui polonês no meu coração. Sempre fui belga, mas belga nunca serei. Então serei cidadão de outro país, que eu queira e que me queira.

Momentos depois, o homem que reentrou no salão de seu Bistrot era outro. Havia afundado no porão da adega com olhos de desespero, com alma de revolta, era um homem magoado e perdido. Mas agora aquele par de olhos tinha um brilho estranho, os passos tinham a força da certeza, eram do andar firme de um homem apaziguado e renascido.

FIM desse trabalho. Você viu a enorme diferença entre contar e mostrar. Contar SINTETIZA. Mostrar DRAMATIZA. Quando eu preciso acelerar o passo da história, eu conto simplesmente. Quando a cena é mais importante, eu me detenho nela e mostro. Posso trocar um parágrafo sintético por duas, três páginas inteiras ou mais.

Ainda vamos voltar a este tema, para, enfim, desenvolver mais o tópico dos indícios não-verbais.

CONTINUA

domingo, 19 de março de 2017

PARA QUEM QUER ESCREVER FICÇÃO
# 1 – INDÍCIOS NÃO-VERBAIS
MILTON MACIEL (Esta série vai oferecer contribuições à técnica de quem quer escrever ficção – romance, novela e conto)

O tema dos Indícios Não-verbais não é quase mencionado nos manuais e cursos de escrita criativa e não é quase percebido pelo escritor iniciante ou pelo antigo mais desatento. Aplicando o princípio do “mostrar, não dizer(que, por favor, não é universal e nem é um axioma!), nós podemos usar muito sinais indiretos para comunicar o que queremos ao leitor, sem precisarmos dizer isso diretamente.

Vejamos um exemplo, tirado de um romance de 360 páginas (o décimo que publico, décimo-sexto contando também aqueles em que sou ghost writer), que estou terminando este mês e que vai se chamar “A Guerra de Jacques”. O protagonista chegou com 3 meses de vida à Bélgica, trazido da Polônia; ali cresceu falando francês e flamengo, foi herói da Resistencia belga, foi levado prisioneiro para a Alemanha e forçado a trabalhar como escravo na indústria metalúrgica. Finda a 2ª. Guerra e de volta a seu país, casa-se, abre seu negócio e pede sua naturalização como cidadão belga, aos 24 anos de idade.

E, por razões meramente burocráticas, a naturalização lhe é negada!

Preciso transmitir para meu leitor a decepção, a revolta, a raiva, a angústia, o sofrimento, o desespero pelos quais o protagonista passa. E que o levarão à epifania do livro, quando ele amadurece sua decisão final: “Se este país não me quer, eu também não quero este país!” E troca a Bélgica pelo Brasil.

Eu posso fazer isso escrevendo deste jeito a cena que sucede a chegada da má notícia:

Jacques sentiu uma profunda revolta. Toda uma vida vivida nesse país, apenas os primeiros três meses fora dele, uma luta dedicada na Resistência, um período de sofrimento atroz como prisioneiro e escravo. E era assim que esse país lhe retribuía? Negava-lhe uma assinatura num simples pedaço de papel! Papel que faria toda a diferença para ele, pois ninguém mais poderia chamá-lo polaco sujo!”

Veja que, escrevendo desta forma, eu estou apenas DIZENDO, como narrador onisciente e na terceira pessoa, o que está acontecendo com meu protagonista. EU, narrador, SEI o que ELE sente. E DIGO isso a meu leitor. Não estou mostrando nada, entrego o fato consumado, não deixo o leitor entrar mais fundamente na pele do meu protagonista num momento crucial de sua vida, justo na grande crise que precede a epifania.

Num momento desses eu preciso ser mais técnico. E, paradoxalmente, mais emocional. Preciso saber fazer meu leitor VIVER as emoções do protagonista, SENTIR sua revolta e sua raiva, chorar as mesmas lágrimas, gritar os mesmos ou piores palavrões, sentir ímpetos assassinos de estripar o burocrata, mesmo que o protagonista não sinta. Então nesse ponto eu devo trazer a voz para a primeira pessoa. Eu, autor, não estou mais vendo de fora, confortavelmente, o sofrimento do herói, que EU sei que vai passar. Eu tenho que estar dentro dele, sentir tudo o que ele sente, assumir sua identidade, SER ELE, sofrer o que ele sofre, chegar à mesma epifania pelo mesmo caminho doloroso.
E, principalmente, cumprir meu contrato de parceria e fidelidade com meu leitor e minha leitora. O protagonista sente, eu sinto, o leitor sente! Quando, juntos os três, depois de um desgaste emocional fabuloso, nós chegamos à grande transformação que é a epifania, vamos compartilhar a sensação de superação, a certeza da mudança, o triunfo da coragem. Fechamos o livro no fim do capítulo com uma euforia que é autêntica, se choramos as lágrimas secam em riso, respiramos fundo de novo, a dor no peito desaparece e encaramos o capítulo seguinte, o primeiro do clímax, com um entusiasmo renovado. A vitória do herói é a vitória do leitor!


Vamos ver amanhã, na continuação, como é que eu resolvo essa situação toda do capítulo 37. E o que são e como se usa os tais Indícios Não-verbais. Interrompo neste ponto de propósito, para lhe dar tempo de se exercitar: Procure você também MOSTRAR essa cena para o seu leitor, encarnando COM ELE o protagonista. Escreva, porque não há, em princípio, razão alguma para você não poder chegar a uma solução ainda melhor do que a minha.

sábado, 18 de março de 2017

É POSSÍVEL ENSINAR ALGUÉM A ESCREVER BEM?
MILTON MACIEL

Muitos apregoam aos quatro ventos que não, abrindo exceção somente para os casos em que se usa um caderno de caligrafia, para melhorar a letra cursiva desse alguém. Como é óbvio que nossa intenção aqui é bem outra, nada tendo a ver com letra cursiva, vou dar minha resposta:

É possível, SIM!

Você só não pode ensinar, a rigor, uma pessoa a escrever melhor, porque melhor é superlativo de bom e você não ensina alguém a escrever mais bom, ensina a escrever mais bem. Mas esta construção fica imperfeita, porque implica em que essa pessoa já escreve bem e você a ensina a escrever mais bem ainda.

Voltemos, portanto, ao conceito inicial: escrever bem. Cujo oposto óbvio é escrever mal. E a primeira pergunta que coloco aqui é seguinte:

Alguém pode escrever bem, sem estudar a arte e a técnica da escrita?

Minha resposta é SIM, um acachapante sim.

Muitas pessoas possuem esse dom inato e, via de regra porque intensas leitoras – donas, portanto, de um alentado vocabulário e de um conhecimento quase intuitivo de gramática prática – são capazes de escrever corretamente. Se conseguem completar esse dom mais básico com uma capacidade de observação/imaginação prodigiosas, podem chegar também ao cerne mesmo do ato de escrever, que é a concepção da IDEIA original sobre a qual vão escrever bem. Estas são as pessoas qualificadas como “diamantes em bruto”. Se chegarem a ser lapidadas, por esforço próprio de estudo ou com a ajuda de outros, viram gênios da literatura.

Só que tem uma coisa: os “diamantes em bruto” são exceção absoluta, não são a regra geral. O engraçado é que, de um modo geral, quase todos os principiantes se sentem diamantes previamente polidos, gênios em potencial, que aqueles cretinos dos revisores, editoradores e editores não sabem reconhecer, iluminados que não precisam aprender e praticar nada sobre as técnicas de sua profissão, as quais, obviamente, já nasceram sabendo!

Futebol e música

Para entender melhor esse processo de lapidação a que me refiro, proponho fazer uma pequena digressão pelos campos do futebol e da música. Comecemos, para arrasar, logo pelo rei do futebol: Pelé, o gênio da bola. Todos tendem a achar que Pelé foi um caso único no mundo, um prodígio, porque...  nasceu pronto! Bem poucos sabem que o menino Gasolina, 15 anos, moleque de recados dos jogadores adultos do Santos F. C., deu um duro danado nos treinamentos, tornando-se em pouco tempo o mais aplicado de todos, aquele que continuava em campo quando todos já tinham ido para casa e ficava sozinho no estádio apagado, treinando dribles e batidas de faltas, sob a escassa luz esparsa da noite da cidade, apoiada ocasionalmente pela benevolência da lua cheia.

Seu pai, Dondinho, que havia sido um bom jogador profissional de futebol, reconheceu muito cedo o talento extraordinário do filho. E, por isso mesmo, não deixava o moleque ficar usando seu dom só nas inúmeras peladas com os outros moleques, onde ele se divertia e se destacava. O pai obrigava o filho criança a fazer contínuos treinamentos e Pelé adulto relembra o quanto detestava isso. E que chegava mesmo a chorar, especialmente quando o pai levou mais de um ano forçando-o a treinar horas por dia, todos os dias, no corredor de casa, a chutar com o pé esquerdo até não aguentar mais de dor. Até que um dia, finalmente, o menino conseguiu fazê-lo sempre; e tão bem quanto fazia com o pé direito intuitivamente.

O maior talento inato foi também aquele que treinou MUITO MAIS do que os outros. O diamante em bruto foi lapidado à perfeição, até a mais ínfima das suas facetas. Esse é Pelé!

Pense agora em músicos, mais especificamente em COMPOSITORES. Lembre-se de vários deles, populares e eruditos. Traga-os de volta à sua tela mental, veja-os apresentando-se ao público. São diversos, mas a esta altura sua memória deverá ter detectado algo que todos eles têm em comum. Viu?

Pois é, com raríssimas exceções, quando você os relembra em suas apresentações, o que eles têm em comum é um INSTRUMENTO nas mãos. João Gilberto, Toquinho, Chico e Caetano têm um violão; Tom Jobim, Taiguara, Guilherme Arantes e Heitor Villa-Lobos, um piano.

Qualquer um deles poderia ter composto assobiando ou cantando, acompanhando-se com uma caixa de fósforos. Mas... você acha que teriam chegado tão longe quanto chegaram?

Caetano diz, no final de sua “Tigresa”:
“... E eu corri pro violão, num lamento,
E a manhã nasceu azul...
Como é bom poder tocar um instrumento.”

Pois é, o domínio do instrumento é a TÉCNICA, sejam os dedos no violão, sejam os dedos e os pés no piano, sejam os pés, as pernas, as mãos e a cabeça no futebol. Eles precisam ser capazes de obedecer com perfeição aquilo que a mente do artista da música ou da bola quer expressar.

Um pianista clássico ensaia em média 8 horas por dia. Uma bailarina também. Um jogador de futebol idem.

Vai daí a primeira recomendação: Você quer ser um grande escritor? Pois bem, ensaie 8 horas por dia. Como?! Escrever oito horas por dia?!!

Não, eu usei o verbo ensaiar! E o principal trabalho do escritor não é escrever. É LER.

Ler como um leitor e ler como um escritor. E ler sobre os segredos da sua profissão. Ler e estudar os processos de escrita. E escrever aplicando o que você absorve por osmose ao ler bons colegas; e o que você absorve por esforço, ao estudar as técnicas da nossa arte maior.

José Saramago, prêmio Nobel,
descreveu assim sua rotina a uma repórter:

– Escrevo todos os dias.

– Fantástico! Quantas páginas? – perguntou a moça, antegozando a resposta sobre as dezenas de páginas que o gênio lavraria num único dia.

– Uma. Ou duas, no máximo.

– Só!!! – escandalizou-se a moça – E o resto do tempo, o que o senhor faz, então?

– O resto todo do dia, eu LEIO. Senão, como é que eu seria um bom escritor?

Já Stephen King recomenda uma rotina diária mínima de seis horas de trabalho. Escrevendo o tempo necessário para gerar 10 páginas. E o resto do tempo todo dedicado à leitura. Todo santo dia! Leitura de, pelo menos, 80 livros por ano.

Faça aí suas contas:

Escrevendo uma única página por dia (10 minutos a meia hora, no máximo), todos os dias, dá mais de 360 páginas para revisar, editorar e publicar como um livro. Ou seja, um a dois livros POR ANO!

Escrevendo 10 páginas por dia (1 hora e meia a 5 horas – in extremis!), dá mais de 3600 páginas por ano. Um livro de 300 páginas POR MÊS! Ou, folgadamente, um livrão com algo como 900 páginas para você ir cortando na revisão e publicar com 600 páginas no fim, a la Stephen King. Isso a cada TRES MESES.

Logo, ESCREVER não é a parte difícil da profissão de escritor. ESCREVER BEM é que é.  Porque tempo você tem de sobra para ser um Saramago.

Mas, como no piano ou na flauta, só precisamos aprender COMO se toca o instrumento. Mais: como se toca BEM o instrumento. E isso é perfeitamente possível. LEVA ANOS, é bem verdade. Muitos, se você só faz exercícios e toca só de vez em quando. Muito menos, se você toca todo santo dia por paixão, horas a fio, e aprende um monte de músicas novas por puro prazer, puro deleite.

Para ser um bom escritor, você tem que fazer exatamente a mesma coisa: tocar o seu teclado ou caneta todos os dias, horas a fio, por puro deleite, puro prazer. Então escrever não cansa, não desanima, não satura. Pelo contrário, entusiasma, anima, você tem que se obrigar a parar porque é hora de comer, porque é hora de dormir, porque é hora de trabalhar em outra coisa ou lugar, se tal ainda for o seu caso.

E o resto do tempo você LÊ. Por puro prazer, por puro deleite, por duro – e delicioso – aprendizado. É como aprender músicas novas no piano.

(Adaptado de “A ARTE E A TECNICA DO ROMANCE” – Milton Maciel, IDEL, 2017, 280 pg)