quinta-feira, 26 de julho de 2018


O  ARMAZÉM  
MILTON MACIEL

Pois o compadre Bernardo resolveu que ia ser comerciante também. Compadre Gaudêncio estranhou:

– Mas bah! É verdade o que me disseram, que o compadre vai abrir um bolicho?

– Bolicho? Que bolicho, tchê! Eu vou botar é um armazém na Linha, Um armazém! Desde quando um estanciero do meu porte vai ter um bolicho miserável? Eu vou abrir é um armazém, o maior que Santana do Livramento e Rivera já tiveram, o grande Armazém do Bernardo.

– A la fresca, compadre! Depois de uns 40 anos como fazendeiro o compadre me sai com essa coisa estranha. Mas de onde saiu essa ideia?

– Mas a coisa é simples, tchê! Quero normalizar o contrabando aqui na fronteira.

– Normalizar?

– Mas claro! Pois isso aqui não tá uma bagunça de novo? O Governo com essa mania de mandar fiscal atrás de fiscal aqui pro pago? É a gente correr com um, eles mandam outro. Que a gente tem que dar um jeito nele também, é claro.

– Pois é, compadre. É muito chato essa coisa de quererem atrapalhar a normalidade do nosso comércio. A gente sempre teve o contrabando livre, desde que me conheço por gente que todos por aqui trocam as coisas na maior, sem essas frescuras de fiscalização.
– Pois então! Abro meu armazém e boto pra vender tudo o que o Uruguai e o Brasil têm de bom. E aí o pessoal compra e, se aparecer fiscal, ele vai ter que se entender com seu compadre aqui.

– A la putcha, que com a fama que o compadre tem, o índio velho vai ter que pensar duas vezes antes de se atravessar no seu caminho.

– Pois é isso, tchê. Vou abrir o negócio só pra defender a nossa fronteira e o seu comércio. Não é uma coisa de ganhar dinheiro, vê se tu entendes. Dinheiro eu não preciso. Mas preciso fazer alguma coisa pelo nosso comércio, antes que vire uma pôca vergonha, com o governo querendo cobrar imposto e proibir certas mercadorias. Mas, bah, tchê, só de pensar nisso o sangue me ferve, dá vontade de quebrar um no porrete!

Pois passaram-se seis meses e o grande Armazém do Bernardo foi inaugurado. Os grandes, porque, na verdade, eram dois. Um do lado do Brasil, na fazenda do Bernardo. Outro, a vinte metros do primeiro, do lado do Uruguai, na fazenda do Bernardo. Sim, porque o Bernardo, como muitos estancieiros fortes da fronteira, tinha terras contíguas, parte no Brasil, parte no Uruguai. Assim ficava muito mais fácil transpor o gado e as ovelhas, conforme o preço ficasse maior de um ou do outro lado.

A marca do Bernardo era como uma mão, com os dedos abertos. No Brasil o registro oficial mostrava essa mão virada para cima. No Uruguai, mostrava a mão virada para baixo. Só que, na prática, quando marcavam o gado, a mão era impressa de lado, podendo valer para qualquer dos países, portanto. Essa  era uma boa e salutar prática da ganaderia do Uruguai, que os brasileiros aprenderam muito rapidamente, ainda no século XIX.

A inauguração coincidiu com mais uma troca de chefe da fiscalização. O Doutor Candinho, que estava no cargo há apenas dois anos, não conseguia produzir nada para o governo. Nisso era igualzinho a todos os demais que o precederam no posto. Daí a troca necessária.

Desta vez tinham escolhido um homem linha dura, um chefe de fiscalização muito bem sucedido na fronteira com a Argentina, em Uruguaiana. Esse, sim, ia render. Em pouco tempo ele enquadrava aquela réqua de contrabandistas e sonegadores duma figa! Para isso estava recebendo também um reforço de policiamento: mais seis guardas de fronteira, para patrulhar a Linha e as estradas, além dos seis que já existiam. É que com estes não se podia mais contar. Eram antigos e acomodados, certamente já na gaveta, no bolso dos comerciantes e contrabandistas locais.

Mas agora chegava sangue novo! O novo chefe, Doutor Aldro-vando, não ia dar sossego aos criminosos do descaminho. E os novos guardas, livres do contato corruptor com os nativos, não dariam trégua a ninguém. Pela primeira vez em muitos anos, as autoridades fiscais tinham alentadas esperanças no enquadramento daquela fronteira sem lei.

De fato, logo na semana em que chegaram, o Dr. Aldrovando e seus novos guardas andaram apreendendo contrabando de laticínios do Uruguai e um considerável carregamento de pilhas e talheres do Brasil. Pereirinha e Silvino Teles estavam em cana. A notícia correu célere, chegou logo a compadre Bernardo e aos outros estancieiros e comerciantes. Estes, numa rápida reunião no armazém a ser inaugurado, resolveram tomar enérgicas providências: mandaram convidar Dr. Aldrovando e os novos guardas para a festa de inauguração do armazém, com direito a churrascada e foguetório.

Dr. Aldrovando tomou então conhecimento de quem era aquele Bernardo, estancieiro rico do lugar. E, pelo que lhe falaram, estava inaugurando o maior armazém de secos e molhados de toda a fronteira. Quando soube que o dito cujo ficava nas terras da fazenda do homem, que abrangia território contíguo nos dois países, o fiscal-chefe teve certeza que era um deboche e um acinte, uma ofensa à pátria-mãe gentil. Ora, o que poderia ter maior cara de contrabando do que esse negócio na fronteira?

Achou também que era muita ousadia do tal fazendeiro mandar convidá-lo. Era como convidar a raposa para conhecer o galinheiro. Pois essa audácia merecia uma resposta à altura. Decidiu que não poderia faltar. E resolveu levar consigo toda a sua força policial, não só os seis guardas novos, mas também aqueles outros seis malandros acomodados. Assim, no dia aprazado da inauguração, compareceu com toda sua força máxima, o fiscal-chefe e seus guardas. Dr. Aldrovando ia se sentindo o próprio Jesus Cristo com seus doze apóstolos. A lei e a ordem haveriam de voltar a imperar naquela fronteira do descaminho desabrido!

Assim que tivesse certeza do que parecia ser aquele comércio ilegal, daria imediatamente voz de prisão ao tal meliante fazendeiro e fecharia o negócio no exato dia de sua inauguração. Ah, aquilo seria um ponto alto da sua carreira, prender um dos homens mais ricos do lugar e lacrar as portas de um estabelecimento de porte, concebido evidentemente para burlar a lei. Com certeza essa ação haveria de lhe render muitos pontos na carreira, quem sabe não era o empurrão que estava faltando para conseguir sua transferência para o apetitoso posto em Foz do Iguaçu.

Conheceu Bernardo logo de chegada, foi muito bem recebido por ele e por todos os outros presentes. Estimou que ali houvesse pra lá de 200 pessoas. A churrascada foi memorável, a carne era ainda melhor do que a excelente carne que costumava comer em Uruguaiana. Cerveja, cachaça e chimarrão corriam com fartura. Uma festa e tanto! Pena que, dentro de alguns instantes, todos tivessem que ir para casa. Todos menos o tal do Bernardo, que esse ia para a cadeia.

Depois do churrasco e da discursalhada, Dr. Aldrovando pediu para conhecer o armazém. Foi o  sinal esperado por Bernardo e os outros fazendeiros e comerciantes presentes. Foram todos ocupar um enorme mesa para mais de 50 lugares. Fizeram sentar ali o fiscal chefe e os seus guardas novos. Os seis antigos mantiveram-se em pé ali por perto.

Os outros à mesa eram todos fazendeiros e comerciantes, brasileiros e uruguaios. Bernardo iniciou a charla:

– Bueno, eu estou feliz demais por inaugurar meu armazém e por poder receber o ilustre Doutor Aldrovando e seus novos guardas. Vocês são mui bem-vindos aqui e, por causa desse apreço, a gente resolveu lhes explicar certas coisitas aqui da fronteira Brasil-Uruguai. Aqui nós somos todos irmãos de verdade, isto aqui é um só país, Rivera e Livramento são uma só cidade.

Compadre Atílio acrescentou:

– Isto aqui é mui diferente da fronteira Brasil-Argentina, onde as pessoas não são irmãs, mas são concorrentes, não se gostam como as daqui se gostam. Aqui é um por todos e todos por um. E somos gente de muita paz.

– Ah, compadre, mas agora você disse tudo. Somos gente de muita paz. E, para dar uma prova disso ao nosso Dr. Aldrovando, vou pedir para todos tirarem as suas armas da cintura e botarem em cima da mesa.

No mesmo instante, sem perda de um segundo sequer, como se tivesse sido tudo bem ensaiado antes, cerca de 40 revólveres e mais de 30 adagas foram colocadas sobre a mesa, em frente de cada convidado. E o Dr. Aldrovando não pôde deixar de notar que todas as armas, sem exceção, foram dispostas de modo que apontassem, inequivocamente, para a ponta da mesa onde ele estava. Muita desfaçatez!

Aquilo merecia uma resposta imediata. Seus guardas tinham também colocado suas armas sobre a mesa, eram as únicas que não estavam apontadas para ele. Voltou-se para trás em busca dos outros seis guardas. Desistiu. Desgraçados, estavam bebendo e conversando com um monte de gente, dando risadas, com a maior intimidade. Caso perdido. Fez as contas: quarenta a seis, essa era a vantagem dos fazendeiros e comerciantes. Não, quarenta e uma a seis! Por que só nessa hora o Bernardo sacou sua arma e, ao invés de depositá-la sobre a mesa como os outros, ficou segurando o revólver, que apontava agora para a barriga do fiscal, que começava a suar frio. Bernardo falou:

– Pro doutor ver como esta fronteira é de paz: só um chefe de fiscalização foi morto aqui nos últimos 25 anos. Mas era um sujeito casca-grossa, um ignorante, cismou que ia acabar com a paz do comércio entre brasileiros e uruguaios, dois povos irmãos. E claro que isso nós não podemos permitir, nem no passado, nem no presente, o senhor entenda, por favor. Nunca se soube quem apagou o homem, é desses mistérios que não têm solução nunca.

Compadre Afrânio, da Estância Boa Esperança, falou:

– Mas agora a gente acredita que, com o senhor e os seus novos guardas, não vai acontecer nada disso. O senhor tem tudo para ser um homem razoável, bem-educado, fino mesmo. Não vai perder a oportunidade de viver bem aqui neste lugar maravilhoso, progredir e prosperar com a ajuda de seus amigos aqui. E agora, como o senhor pediu, vamos passar e conhecer os armazéns do compadre Bernardo.

Ainda trêmulo por dentro, de susto e de raiva, o Doutor Aldrovando percorreu, com seus seis homens de confiança, as dependências dos armazéns. No galpão do lado brasileiro, só havia produtos brasileiros. No do lado uruguaio, só produtos uruguaios, com predomínio de lãs e queijos.

Enfim, nada que pudesse dar à fiscalização uma prova de descaminho. Mas, assim que os compradores viessem, era lógico que o contrabando aconteceria. Seria necessário colocar os seus guardas de plantão por ali e na estradinha de terra que chegava ao lugar.

Quando falou isso com o responsável pela guarda, este foi claro:

– Mas nem com seis, nem com doze. Esses sujeitos apagam a gente em dois tempos. Os seus guardas mais antigos já nos preveniram pra gente não se meter a besta com o pessoal daqui. Eles disseram que eles são cordiais, amigos e que dão, sabe como é, uma “ajuda de custo” e não deixam eles pagarem por nada. Levam um vidão aqui. Aliás, a vida que eu pedi a Deus. Portanto, se o senhor quer saber, a gente pode até vir pra cá, mas nunca – veja bem, nunca! – vamos achar contrabando algum.

Doutor Aldrovando desabou. Sentou num toco que tinha na frente do armazém uruguaio e ficou sozinho por um longo tempo. Ninguém o procurou, nem mesmo algum dos seus guardas novos. Estava só, irremediavelmente só. Os guardas corrompidos tinham conseguido a façanha de corromper seus guardas novos instantaneamente!

Depois de algum tempo, Bernardo se aproximou e sentou num banco de pau ao lado do doutor.

– Sozinho, doutor? E disposto a ficar cada vez mais sozinho aqui na fronteira? Espero que não. Deixe eu lhe explicar como funcionamos aqui, há séculos, criando um sistema todo próprio, que não deve ser contrariado. Aqui somos uma cidade só. Agora, por exemplo, a eletricidade está indo do Brasil para o Uruguai, o óleo combustível está mais barato do nosso lado, a usina gera pra Livramento e pra Rivera. Em compensação, a água tratada vem toda do Uruguai, o sistema de Santana do Livramento está em manutenção faz vários meses. Nossos sistemas são superdimensionados, qualquer um deles pode atender as duas cidades ao mesmo tempo, como está acontecendo agora. A carne é melhor e mais barata do lado uruguaio, o pão agora está mais em conta do lado do Brasil. E assim por diante. Não se pode querer que as pessoas não comprem do outro lado da Linha, seria desumano. Da mesma forma o nosso comércio, desde o pequeno até o mais graúdo. Há muitos comerciantes que têm lojas dos dois lados. E um grande número que vive só de contrabandear, sim, coisas pra lá e pra cá. Mas, nesta fronteira, isto nunca foi considerado crime, é só uma forma particular e diferente de comércio, uma forma que é só desta região.

– Mas o senhor está abrindo um comércio dos dois lados, com o evidente propósito de praticar descaminho. Ponha-se no meu lugar: eu fui mandado para cá justamente para impedir essas práticas.

– Pois eu lhe digo, com toda a sinceridade, que eu estou abrindo esse negócio para justamente defender essas práticas, doutor. Vou empenhar nisso todo o meu prestígio, a minha liderança, o meu dinheiro, o nosso pessoal todo. Compreenda: Para o senhor trata-se de conquistar pontos na sua carreira, para nós é combate de vida ou morte. Ou morte, entendeu bem doutor?

– Caramba, o senhor está tendo a audácia de me ameaçar! Sabe que eu posso lhe dar voz de prisão por causa disso?

– Bueno, então experimente, se quiser precipitar a guerra já pra hoje. Eu lhe entrego a minha arma. Só não posso garantir pelos outros que estão armados.

E, falando isso, retirou a arma do coldre e entregou-a, com o cabo voltado para o fiscal. Este olhou rapidamente para os lados e viu que já dois outros homens, que observavam o diálogo ali de perto, estavam levando a mão às armas. Capitulou.

– Não, não vai ser preciso isso. Vamos manter as coisas mais calmas por enquanto. Mas eu lhe peço, por favor, não me obrigue a agir contra o senhor.

– Mas, doutor, se o senhor fosse agir só contra mim, eu até que ia gostar do entrevero. Mas acontece que o senhor age contra os pequenos também. Agora mesmo o senhor tem dois coitados na cadeia, gente séria, de boa família, contrabandistas honestos há mais de vinte anos todos eles. São gente mui estimada na fronteira, o senhor não sabe o risco que está correndo com essas prisões. Essa foi também uma das razões de eu lhe convidar para esta minha festa. Eu tinha que lhe advertir desse risco. Esses homens nunca foram presos, eles, os familiares e os amigos deles devem estar enlouquecidos, doutor. Cuidado. Solte os homens, mova o seu processo, se quiser, que isso aqui não dá em nada, morre no Juiz. Mas solte os homens já, para sua segurança, doutor. Acredite em mim, eu gostei do senhor, nós podemos até ser bons amigos. Mas tenha juízo, doutor, tenha juízo.

No dia seguinte ao de sua grande frustração e humilhação, o doutor Aldrovando resolveu recorrer a quem de direito: o exército brasileiro! A delegacia de polícia civil era carta fora do baralho, já obtivera informação com os guardas antigos. Sua única esperança era o exército. Tomou o rumo do morro, subiu até o Sétimo Regimento de Artilharia e solicitou uma entrevista urgente com o coronel comandante.

O oficial, um homem alto e corpulento, com vozeirão imponente, foi recebê-lo no pátio interno mesmo. Não o mandou entrar em nenhum escritório reservado, conversou com ele ali onde estavam, em pé mesmo, o que pareceu ao fiscal uma grande desconsideração e falta de respeito.

Doutor Aldrovando contou tudo o que havia se passado em sua desastrada conversa com Bernardo. Aquele fazendeiro rico, julgando-se acima da lei, tivera a audácia de ameaçar uma autoridade da República. O fiscal-chefe vinha propor uma aliança com o glorioso exército brasileiro, para que agissem juntos, somando a autoridade da fiscalização com o grande efetivo de homens e armas do Regimento comandado por ele, o Coronel Genésio Gomes.

A primeira coisa que o doutor estranhou foi que o militar quase sufoca de tanto rir, quando ouviu o relato daquele diálogo com o Bernardo.

– Esse Bernardo! – foi tudo o que o Coronel disse.

O fiscal então perguntou:

– Agora que o senhor já sabe de tudo, objetivamente, o que o senhor pode fazer?

A resposta do militar, de novo rindo, foi apenas:

– Nada...

– Como nada?! E a sua obrigação como comandante deste Regimento, onde fica?

– Fica onde sempre ficou. O Exército não se mete nessas coisas de contrabando, não é nossa função.

O doutor ficou furioso, ao ver que sua última esperança de reforço para a guerra caía por terra; e se destemperou:

– Pois essa atitude sua é covardia! Covardia pura! Sua obrigação é apoiar a lei. Atitude covarde!

O Coronel fez um aceno para dois militares que passavam no pátio e disse para eles:

– Sargento Melo, Cabo Mesquita: Acompanhem o doutor aqui para o X5.

– Quer dizer que o senhor está me mandando embora, Coronel?

– Não senhor. Quer dizer que eu estou lhe prendendo!

O fiscal-chefe mal podia acreditar no que ouvia:

– Me prendendo?! Mas com que autoridade? E com que acusação?

– Acontece que isto aqui dentro é território do Exército brasileiro. Aqui não vale a lei comum lá de fora. E o senhor me chamou de covarde, ofendeu uma autoridade militar. Vai ficar preso por uma semana. E olhe lá o que vai falar, para não ficar o resto da vida aqui no X5, o nosso xadrez especial para visitantes. Podem levar o meliante!

E, sob protestos apenas em resmungos assustados, o fiscal-chefe foi levado para o xilindró. Era a primeira vez na vida que ai saber o que era ficar confinado em uma cela.

Ali do lado de fora, o Coronel fez dois telefonemas. O primeiro foi para compadre Bernardo. O segundo, por recomendação deste, foi para o jornal local. No outro dia a história da prisão do fiscal-chefe por uma semana estava publicada na primeira página, para alegria e comemoração de todos e, ainda mais, de Pereirinha e Silvino Teles, que continuavam presos.

O coronel sorriu satisfeito. Sim, senhor. Mas que homenzinho petulante! Chamar um coronel de covarde em plenas dependências do Exército. Era muita burrice, muita ignorância, na hora tivera a bendita ideia de encanar o sujeitinho! Agora ele ia ver como que era bom estar numa cela! Coitado do Pereirinha, seu fornecedor de queijos e laticínios uruguaios... Ora, acabar com o contrabando na fronteira! Coisa de sonhador, de lunático, de gente sem juízo como o sujeitinho ali. Como é que ia ficar aquela fronteira sem o tal do descaminho? Ora, acabava em dois tempos. Inclusive para ele, que aos poucos ia crescendo como fazendeiro, já tinha passado a marca dos 600 bois! Dentro de um ano ia se reformar e nunca mais sairia daquela região abençoada, a única em que havia conseguido progredir tanto na vida, onde havia feito as mais sólidas amizades, inclusive com aquela flor de criatura que era compadre Bernardo.

E, para provar a flor de criatura que ele era, compadre Bernardo em pessoa foi visitar o doutor no quarto dia de sua prisão. O homem estava de castanha quebrada. Tinha perdido toda a pose, estava barbudo, olhar baixo, aparência mais humilde. Estranhou a visita do fazendeiro:

– O senhor por aqui?

– Pois é, eu tive vontade de lhe ajudar. E quis ver se o senhor já criou juízo suficiente para merecer nossa confiança.

– Que significa exatamente...

– Significa que o senhor não vai atrapalhar os nossos negócios. Os nossos, veja bem, não só os meus. Soltar o Pereirinha e o Silvino é um gesto de boa vontade, que pode resultar no relaxamento de sua prisão aqui neste quartel. O coronel presa muito o Pereirinha.

– Bem, se o senhor me garante que ele me solta antes dos tais sete dias, eu prometo que solto os dois homens assim que puder voltar ao nosso escritório. De fato, ficar sozinho numa cela pequena como esta é uma barra, eu nunca tinha passado por isso. Me coloquei no lugar daqueles dois que eu prendi.

Compadre Bernardo fez o acordo com o coronel e o doutor Aldrovando foi libertado no mesmo instante. E, cumprindo sua palavra, mal chegou ao escritório, expediu alvarás de soltura para Pereirinha e Silvino Teles. Estava começando seu processo de “civilização”.

Nos dias seguintes experimentou a continuidade de sua humilhação. Sua prisão tinha sido noticiada no jornal, as pessoas comentavam e debochavam pelas suas costas. Entendeu o que era estar só, completamente só. Seus guardas novos, assim como os antigos, já estavam a fim de se arrumar ali pela fronteira. A carreira do fiscal-chefe que se danasse, eles não ganhavam nada com isso.

Levou cerca de um mês para que o doutor mudasse de vez de atitude. Compreendeu que, assim procedendo, daria adeus a Foz do Iguaçu. Mas daria alô a uma nova vida. Foi decisiva a conversa que teve com dois ex-colegas, ambos antigos fiscais-chefes do mesmo escritório, que haviam deixado a carreira para se radicarem em definitivo ali em Livramento. Estavam ambos muito bem de vida, prósperos, um criando ovelhas numa cabanha, outro importando madeiras de Mato Grosso e “repassando-as”, madrugada alta, para o lado do Uruguai.

Então o doutor Aldrovando, atraído como por um ímã, foi aos poucos se aproximando de compadre Bernardo, o único homem que, naquelas difíceis circunstâncias, havia de fato lhe estendido a mão. E começou a entender que, com o tempo, poderia, também ele, aspirar a ser um próspero estancieiro, por que não? Afinal, com a ajuda que o compadre estava oferecendo...

E assim, graças ao armazém do Bernardo e à paciência e boa vontade dele para civilizar o fiscal-chefe, o comércio da fronteira pôde voltar a dormir sossegado como sempre.

Oiga-le índio velho bueno, esse Bernardo!