sexta-feira, 31 de outubro de 2014

JOÃO RAMALHO NO PARAÍSO – 30ª Parte
MILTON MACIEL

Fim da 29ª parte: 
Então Bartira fez todos levantarem e levou-os para as peles, que João Ramalho havia montado à maneira de uma cama alta européia. Apagou a tocha e falou:

– Vocês já estão casados desde o momento em que João Ramalho disse eu aceito. Mas estão os dois muito sem jeito e Irani deve estar esgotada, cansada demais. Então vamos dormir, descanso é o que vocês mais precisam. Amanhã eu ajudo vocês e consumarem o casamento, a brincar de amor.

Aliviados e agradecidos, os dois beijaram Bartira e trataram de dormir o mais rápido que puderam.

30ª parte: uma festa de amor dentro água
Logo ao raiar da manhã, após comerem algumas frutas que tinham na oca, foram os três para o riacho, exatamente para aquela curva generosa em que a água, extremamente límpida e transparente, se espalhava numa pequena praia de águas sempre mais calmas e mais mornas.

Saltaram todos para dentro  e, como sempre faziam, nadaram, pularam, jogaram água uns nos outros, riram e se divertiram por um bom tempo. Sábia, Bartira prolongava o brinquedo, porque queria os outros dois muito à vontade e muito relaxados, para levá-los ao outro modo de brincar que tinha em mente. Com tranquilidade e agrado ela observou que João Ramalho já dirigia a Irani olhares mais interessados, com evidente admiração pela beleza da moça. Pronto, decidiu ela, estava na hora!

Subitamente Bartira saltou sobre João e envolveu-o com os braços, começando a beijá-lo. A seguir conferiu com a mão no alvo certo o resultado que sabia inevitável: o homem estava novamente em brasa, pronto para revidar ao ataque, excitadíssimo. Fez menção então de encaixar-se nele, abrindo bem as pernas sob a água. Quando João esperava sentir a maciez interna de Bartira, ela fez um movimento muito rápido e puxou Irani para seu lugar.

E a maciez que João Ramalho, no instante seguinte, sentiu foi de sua nova mulher abrindo-se inteiramente para ele, enquanto ela se abraçava ao pescoço dele e o cobria de beijos intensos e famintos. João ainda olhou para Bartira, ali ao lado deles, e viu que ela lhe sorria com ternura e aprovação. Então não teve mais que se conter, entregou-se. E quando, instantes depois, sentiu-se esvair em gozo, foi dentro de Irani que sua semente ficou pela primeira vez na vida deles.

O casamento estava consumado. Bartira então lhes disse para saírem d’água e voltarem para cima das peles, dentro da oca. E explicou:

– Aproveitem bem este maravilhoso primeiro dia. Brinquem bastante, conversem muito, se conheçam mais. Eu vou visitar meus pais em Inhapuambuçu. Só volto no fim do dia, a casa é toda só de vocês. Só que tem uma coisa: quando eu voltar, eu vou estar com muita fome. Aquela fome, entendeu, João? Então esta noite vais ter que ser capaz de brincar com nós duas ao mesmo tempo. Esta noite e todas as outras noites, daqui pra frente. Quero ver se aguentas duas guaianases em fogo em cima das tuas peles, seu peró frouxo!

E saiu esplêndida da água, filetes brilhantes a escorrer de seus cabelos negros e longos. Amando-a mais do que nunca, João Ramalho ficou a contemplar-lhe a nova curvatura da cintura e das ancas, sua Bartira mostrando cada vez mais a presença do André tão esperado. Por alguma coisa misteriosa dos guaianases, tanto ela, quanto Tibiriçá e Potira, sua esposa, não tinham a menor dúvida em garantir que a primeira criança de Bartira seria um menino.

Quando sua esposa (sua primeira esposa, corrigiu-se, ao mesmo tempo em que se completava: primeira e única no meu coração, por todo o sempre!) sumiu de vista, João Ramalho sentiu a pressão dos braços de Iraci enlaçando-o e as mãos dela a percorrerem seu corpo pressurosas. Não teve condições de fazer como Bartira dissera. Não foram para as peles dentro da oca. Ali mesmo, ainda dentro do rio, viveram as primeiras horas de sua lua-de-mel. A festa aconteceu dentro d’água!

Quando enfim saíram do rio, João estava exausto. Irani, como se fosse Bartira, conduziu-o pela mão para dentro da oca, fê-lo deitar-se na cama de peles e disse que ia caminhar um pouco lá fora. Recomendou-lhe que dormisse bastante, o que o rapaz achou uma ideia simplesmente maravilhosa. Adormeceu imediatamente e teve sonhos intranqüilos, em que se via fracassado perante as duas indiazinhas, dando vexame, incapaz para o amor sobre as peles, enquanto elas reclamavam e debochavam dele. “O peró é um frouxo, o peró é um frouxo”, proclamava Irani para toda a tribo em Inhapuambuçu. “Prefiro voltar para meu pai em Jurubatuba, esse marido é fraco demais!”

Estava vexado realmente quando acordou. Mas percebeu que despertava por causa do odor magnífico de peixe assando nas brasas. Levantou, saiu da oca, viu o sol alto no meio do céu. Ali fora, Irani tinha preparado uma fogueira e terminava de assar um enorme peixe. Admirado, João Ramalho fez um sinal de interrogação para sua nova mulher. Antes que ele abrisse a boca para falar, a moça apontou para o arco que ela havia apanhado dentro da oca, o presente de Tibiriçá para João:

– Peguei o arco e as flechas e fui pescar. Tive que andar bastante até achar um lugar com peixes grandes. Mas valeu a pena, flechei dois, este aqui e outro que vou preparar especialmente para Bartira e a gente come de noite, quando ela chegar. Já está ali, secando no calor das brasas, dentro das folhas, mas só vou terminar de assar de noite.

O português assobiou admirado:

– Ora, menina, com que então tu sabes usar arco e flecha tão bem assim?

– Bem? Só pegando peixe? Ora, João, eu sei usar as armas todas e muito bem. Sei usar arco, flecha e lança na guerra também. E tenho muita pontaria. Quer ver?

Apanhou o arco, armando-o com uma flecha. Mirou um tronco de palmeira jovem, ainda macio, à distância de uns cinquenta passos, e acertou-o no meio com uma seta. Depois colocou mais uma no arco e acertou novamente o mesmo tronco, quase no mesmo lugar. E repetiu a operação uma terceira vez.

– Irani, Irani! Pois tu atiras muito melhor que eu, criatura!

– Ora, João só aprendeu agora, não tem experiência ainda. Eu atiro desde criancinha. Mas pode deixar, eu ajudo meu marido a aprender. Quer treinar comigo?

– Quero, sim. Mas só depois que devorar esse teu peixe que cheira tão bem. Estou com uma fome de bicho fera!

Dez minutos depois o peixe tinha desaparecido quase por inteiro dentro da barriga do português. Iraci comeu uns poucos pedaços e foi buscar as frutas que havia recolhido na mata nessa manhã: araçás dourados, guabirobas sumarentas, pitangas vermelhinhas e, delícia das delícias para o português encantado com a novidade, um enorme monte de jabuticabas escuras e brilhosas, com um sabor divino que ele não conhecia.

–  João deu sorte. É época de jabuticaba. Isso só dá uma vez por ano e por muito pouco tempo. A árvore fica linda, preciso levar João pra ver, tem uma aqui perto. Vamos?

– Sim, minha menina. Até que uma boa caminhada cai bem depois de tudo o que eu comi!

E saíram de mãos dadas para a mata próxima.

Quase ao cair da noite, Bartira estava de volta. Trazia uma alegria e uma tristeza para dividir com João. A alegria era vinda da certeza que seu João e sua Irani eram agora bons amigos e bons amantes – marido e mulher, como convinha. A tristeza ela não iria dividir nesta noite, a primeira noite de núpcias a três, noite muito importante para ser estragada com qualquer tristeza. Esperaria para amanhã. Então contaria para João sobre o destino que aguardava Apinajé.

Mas esta noite, não. Queria apenas comemorar com muito emoção e com muito prazer a chegada de Irani a seu ninho de amor. Ali estava sendo intensamente feliz com seu peró, ali haveria de ser ainda mais feliz agora que sua prima querida estava ali para dividir tudo com eles. Ah, a vida era tão boa com ela! Como se não bastasse ter o amor do homem mais desejado por todas as mulheres de Piratininga, do homem forte e valente prestigiado e admirado por seu pai Tibiriçá e por todos os homens da aldeia, ainda recebia a graça de ter a doce Irani como parceira de vida e amor. Quanta felicidade!...

Irani, toda feliz e sorridente, apresentou a Bartira o peixe que pescara e prepara especialmente para ela, bem do jeito que sabia ser o favorito da prima. Beijaram-se sorridentes e comeram a iguaria com gestos delicados, contrastantes com as afoitas bocadas do português. Depois apagaram a tocha e foram para a grande cama de peles.

E naquela noite Bartira deixou que toda a felicidade enorme que sentia se irradiasse para seus companheiros de leito, enquanto usava suas técnicas intuitivas enlouquecedoras para deixar o seu peró em condições de aplacar a apetite de duas adolescentes guaianases famintas de amor.

Combinou uma estratégia com sua prima e as duas começaram a provocar o marido ao mesmo tempo, esfregando-se nele e tocando-o a todo instante. Mas quando ele, excitadíssimo, procurava abraçar uma delas para definir o ataque, esta se evadia e vinha a outra colocar-se em seu lugar. Fizeram esse jogo de agarra-solta, de esconde-esconde, até que o português estivesse literalmente enlouquecido de desejo. Por fim Bartira deixou-se capturar e logo a seguir o mesmo aconteceu com Irani.

Feliz e exausto, João Ramalho honrara as calças que um dia usara e que há muito tempo não usava mais, agora que, sendo um guaianá ele também, andava sempre nu. Graças aos céus, o fracasso com que sonhara não aconteceu. E ele pôde então adormecer tranquilo entre suas princesas, suas duas jovens rainhas, porque agora tinha uma certeza: Ela, Bartira, a sábia e infalível Bartira, sempre saberia o que fazer para deixá-lo em ponto de bala. Não precisava mais temer o fracasso, bastaria que fizesse sempre como sua esposa do coração lhe indicasse.

Sim, Piratininga era o Paraíso e Bartira era o seu grande anjo.


CONTINUA

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

JOÃO RAMALHO NO PARAÍSO – 29ª Parte
MILTON MACIEL

Fim da 28ª parte:
– Chega, João. Assim não vai sobrar nada para Irani, coitada. Não esqueça que ela está para chegar.
– Mas...Mas tem que ser hoje?! Meu amor, por favor, eu nem conheço sua prima direito...
– Mas vai conhecer e, por causa disso, vai amar Irani. Pode deixar, eu conheço Irani por nós dois. Eu garanto. Ela é boa demais.
– Boa demais és tu, meu anjo. Boa como ninguém pode ser neste mundo de Deus.
– Ah, João, deixa esse teu Deus de castigos e proibições de lado! E, pelo amor que eu sei que tens por mim, eu te peço: recebe Irani no teu coração, como recebeste a mim. E assim nós três seremos muito, muito felizes. Nós quatro, quando André chegar e tiver duas mães que cuidem dele. Agora, vem, deixa que eu termine de te lavar e te preparar para tuas novas núpcias.

29ª parte: Um amor que europeu não entende

Uma hora depois o sol tocou o horizonte oeste e terminou de incendiar em rubro as nuvens e o céu, que se olhavam nas águas calmas do riacho. Junto com o ocaso, chegou Irani!

Bartira correu a receber efusivamente sua prima e levou-a para dentro da oca, onde João Ramalho acendia a primeira tocha. À luz bruxuleante, o português contemplou pela primeira vez, de forma lenta e cuidadosa, o rosto e o corpo da prima de sua esposa, daquela que ele tinha, quisesse ou não, que tomar como sua esposa nesse momento.

A primeira impressão foi de fato muito favorável. A mocinha era realmente atraente, de belo semblante e – impossível não reconhecê-lo – bastante parecida com Jamari. E, pareceu-lhe também, ter alguma semelhança com a própria Bartira. Eram ambas mais altas que a média das índias, assim como os pais delas, Tibiriçá e Caiubi, eram homens bem mais altos também.

Os corpos era idênticos, iguais aos da maioria das jovens índias que ainda não tinham tido filhos: rijos, suaves, cabelos lisos e escorridos, seios túrgidos, ventre reto, a pequena depressão saliente ao final dele dando aquele ar de delicadeza e feminilidade extremas. Sim, fisicamente ao menos, Irani era realmente bela!

A indiazinha esperava, constrangida, que João Ramalho terminasse de fazer seu minucioso exame. Era evidente que estava extremamente nervosa, a ponto de mostrar um certo estremecimento. O rapaz percebeu isso e sentiu-se um pouco culpado, ao lembrar que a menina devia estar numa tensão muito grande há um bom tempo, receando, talvez, uma recusa e sua vergonhosa devolução a Jurubatuba. Então João falou pela primeira vez à sua jovem pretendente, procurando acalmá-la e, ao mesmo tempo, acalmar a si próprio:

– Sê bem-vinda à nossa casa, ó Irani. Tens a simpatia de teu irmão Jamari e a beleza de tua prima Bartira.

A indiazinha falou com um fio de voz, que mal lhe saía da garganta apertada pela angústia:

– E João Ramalho... deixa... deixa Irani... ficar? – terminou a pergunta já com lágrimas nos olhos.

Bartira adiantou-se ao marido na resposta:

– Claro que ele deixa, Irani. Pois ele não acabou de dizer que achou você bonita? Qual homem seria estúpido de recusar uma esposa como Irani? O nosso João é que não – disse isso sorrindo para o seu homem, que haveria de ser, a partir daquela noite, o homem das duas primas. E reforçou:

– João Ramalho aceita Irani como sua esposa, não é? – e tomando a mão delicada da prima, colocou-a dentro da mão enorme do peró de Vouzela.

João olhou as duas moças ainda perplexo, viu o olhar de confiança em uma doce Bartira, o olhar de pânico em uma trêmula Irani e respondeu, com voz ainda arrastada:

–  Aceito, pois.

Bartira sorriu, semblante iluminado. Irani emitiu um ruído estranho e desabou no chão, desmaiada!

Bartira sentou-se ao chão e tomou a prima no colo, dando-lhe suaves batidas no rosto e nas mãos, enquanto emitia sopros sobre o seu nariz. A um sinal seu, João correu a buscar uma cuia com água, que ela jogou com suavidade no alto da testa da moça, dizendo:

– Pobrezinha. É o medo, João. Medo é uma coisa horrível! Pobre menina, deve ter sofrido um horror com medo de ser achada feia e sem graça, de ser mandada embora.

João Ramalho olhava aquela cena estupefato: Quanto amor ele via nos olhos e nas mãos carinhosas de Bartira, quanta nobreza naquela mulher tão jovem e já tão sábia! Só então ele foi capaz de se colocar no lugar de Irani e de avaliar o tormento pela qual a garota passara. Imaginou-a andando sozinha toda a enorme distância entre Jurubatuba e a oca de Bartira e João, cada passo entremeado pelo medo de ser recusada no dia do seu casamento. E concluiu consigo mesmo:

Eu sou uma besta, um ignorante, um grosseirão! Um português parvo e cheio de preconceitos, indigno de viver com as pessoas generosas deste povo guaianá. Pobre mocinha, a sofrer tanto por minha causa, pudesse eu imaginar isso... Mas não, não sou capaz, eu sou um primitivo, um tapado, o selvagem aqui sou eu. E elas são a bondade e a doçura. E Deus – ou seja o que for – me concede essa benção em dose dupla, na forma de duas jovens e formosas mulheres! Ah, mas eu não as mereço, não as mereço mesmo... 

Felizmente Irani começou logo a recuperar a consciência. E, envergonhadíssima pelo desmaio, aninhou-se ainda mais no colo de Bartira, escondendo o rosto dentro dos longos cabelos sedosos da prima. João sentiu-se tocar ainda mais pelo comovente daquela cena. Sim, ele aceitava Irani como esposa, mas o fazia porque essa era a vontade de Bartira. E ele não teria coragem de negar nada a ela. Simplesmente porque ela merecia tudo!

As duas moças, após algum tempo, ergueram-se com graça e encaminharam-se para o pequeno fogão que João Ramalho fizera na oca, à maneira dos fogões de Portugal. Conversando e sorrindo, as duas preparam rapidamente uma refeição substancial. Depois sentaram-se ao chão com João Ramalho e desfrutaram dos alimentos com verdadeiro deleite. Era o banquete de núpcias!

Então Bartira fez todos levantarem e levou-os para as peles, que João Ramalho havia montado à maneira de uma cama alta européia. Apagou a tocha e falou:

– Vocês já estão casados desde o momento em que João Ramalho disse eu aceito. Mas estão os dois muito sem jeito e Irani deve estar esgotada, cansada demais. Então vamos dormir, descanso é o que mais vocês precisam. Amanhã eu ajudo vocês e consumarem o casamento, a brincar de amor.

Aliviados e agradecidos, os dois beijaram Bartira e trataram de dormir o mais rápido que puderam.

CONTINUA

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

JOÃO RAMALHO NO PARAÍSO – 28ª Parte 
MILTON MACIEL  (interrompida há um mês por motivos de saúde do autor, a série retorna hoje)

Fim da 27ª parte:
– Pois, Jamari, vocês me deixam perplexo. Espere, lhe suplico, que eu converse com minha Bartira primeiro. Depois lhe dou uma resposta.

– Muito bem, João. Mas não demore, sim. Irani está nervosa esperando por ela e nosso pai Caiubi tem certeza que João não vai recusar essa honra de entrar para nossa família e ser aliado de Jurubatuba.

E, com o sorriso bonachão e amigo de sempre, foi embora para Jurubatuba, acalmar sua irmãzinha que esperava pelas novidades.

28ª parte: Uma festa inesperada

Quando, soube que Bartira estava grávida, Tibiriçá foi tomado de um impressionante entusiasmo. Tinha vários netos de outros filhos e filhas seus, mas este, o primeiro de Bartira, era filho de peró! E de um peró ilustre, aquela que Acauã, o pajé que nunca errava, havia afirmado que seria no futuro o grande chefe do planalto de Piratininga.

Foi por iniciativa do cacique Tibiriçá que João Ramalho deu a seus filhos somente nomes portugueses. Sempre mencionando a profecia de Acauã, o sogro do peró disse acreditar piamente que os seus descendentes, através de João Ramalho, haveriam de dominar toda aquela terra. Por isso, por coerência, achava que os seus netos filhos de Bartira e João deviam ser tratados como perós desde o início. E voltou a dizer que Acauã afirmara que ele mesmo, Tibiriçá, ainda haveria de ter nome e importância de chefe peró.

Bartira concordou com seu pai, de modo que João Ramalho escolheu para seu primeiro filho com Bartira o nome de André. Naquele momento ele não poderia imaginar que, somente com Bartira, ele teria um enorme número de outros filhos, aos viriam a ser dados outros tantos nomes portugueses:

A alegria de Tibiriçá pelo futuro nascimento de André foi tão grande que ele resolveu organizar a maior festa de comemoração de todos os tempos, convidando membros de todas as aldeias do planalto e do litoral que tivessem boas relações com os guaianases. Bartira, tomada de idêntico entusiasmo, lembrou-se de outro grande acontecimento a ser comemorado junto. Conversando com o pai e o marido, ela disse:

– Podemos aproveitar a grande festa de André e celebrar também o casamento de João com Irani. Duas grandes alegrias para nós, tem mesmo que comemorar.

João Ramalho, que tinha mencionado o pedido de Jamari e Caiubi muito rapidamente a Bartira, ficou surpreso com a postura desta:

 – Mas, meu amor, tu falas como se isso já fosse uma coisa certa e assente. Eu não tenho certeza se...

– Ora, meu genro, esse pedido não é coisa que você possa recusar. Ter Caiubi e os de Jurubatuba como aliados para sempre é uma grande coisa para um futuro chefe como você. Além disso, a menina é bonita e é amiga de Bartira. E Bartira quer muito que ela vá viver com vocês.

– Mas faltam ainda tantas luas para que André venha a nascer...

– E isso é muito bom, dá tempo de preparar a grande festa. E de convidar todo mundo.

Bartira completou:

– Só que, enquanto isso, enquanto André não chega, Irani já vai viver com a gente na oca. Depois a gente aproveita a festa só para comemorar o casamento, mas ele já vai existir desde agora. Que lhe parece, pai?

– Ora, pois está mais do que certo. Por que a pobre da moça teria que esperar? Faça isso mesmo, minha filha, mande avisar sua prima para mudar hoje mesmo para a casa de vocês. E você, João, se prepare para valer por dois homens, que a luta vai ser grande na rede e nas peles. Não sei se um peró aguenta!

E o morubixaba de Inhapuambuçu caiu na gargalhada, no que foi secundado alegremente por sua filha.

Já o português ficou ali de queixo caído. Acabavam de decidir, sua esposa e seu sogro, que ele iria tomar mais uma esposa nesse mesmo dia!... E ele nem se lembrava de como era essa Irani, apesar de já tê-la visto mais de uma vez, com certeza.

Enquanto caminhava ao lado de Bartira, quando voltavam para sua casinha distante, João Ramalho contemplava aquela moça com olhos de admiração e embevecimento. Tão jovem, tão bonita, tão serena, tão generosa... Como podia existir no mundo uma criatura assim?! E como podia ele ter tanta sorte de que ela o tivesse escolhido e amado?

Quando avistaram sua oca, Ramalho não se conteve e, parando de repente, abraçou-se ternamente a sua mulher. Era tanta a emoção que sentia que não pôde evitar que lágrimas lhe subissem aos olhos, abundantes. Bartira percebeu que ele estremecia e passou a beijá-lo suavemente no rosto, nas barbas, nos lábios, nos ombros, tratando de acalmá-lo. Era bondosa demais para perguntar o que ele sentia, apenas se dedicava a cobri-lo de carinho e esperar que ele falasse. Isso fez João explodir por fim:

– Minha menina adorada, minha mulher, minha vida: eu te adoro! És boa demais para mim, eu não te mereço. É que eu não queria ter que casar com nenhuma outra mulher. É só a ti que eu amo. Ajuda-me, por favor, não deixes que eu case também com tua prima contra minha vontade.

Bartira reconheceu na emoção e nas palavras de João a maior de todas a confissões de amor. Sim, ela o ajudaria. Não a fugir ao casamento com Irani, mas, bem ao contrário, a aceitar a nova esposa em sua vida, na vida deles dois, como uma grande bênção e um presente dos céus. Pobre João, sempre vitimado pelo pensamento horroroso dos brancos e dos seus padres! Tudo o que ela desejava, nesse momento, era que João viesse a amar Irani com a mesma devoção e sinceridade com que amava a filha de Tibiriçá.

Foi tangendo João Ramalho pelos ombros, tal qual o fizera naquela maravilhosa tarde em que o havia resgatado da praia com suas colegas. Ao entrarem em casa, a onda de calor que ela sentia chegou ao máximo e ela lhe disse:

– Vem meu amor, vamos para as peles, tua mulher está louca por ti, tua mulher está feliz demais por teu amor, tua mulher te quer dentro dela já. Vem...

E jogou-se sobre o leito de peles, os dois mais uma vez ardendo com fogo de tora, com fogo de palha, com fogo de graveto, fogo infinito. O verdadeiro fogo completo do Amor!

Fizeram amor em casa, estavam acesos e enlevados como nos primeiros dias, só que agora, João percebia, era muito melhor, porque agora ele tinha a mais plena consciência de como amava aquela mulher, que o que o fazia vibrar não era só o brincar, mas era também o querer!
Depois de um longo tempo, os dois correram para fora de mãos dadas e pularam no riacho próximo. Banharam-se um ao outro e novamente explodiram fazendo amor. Até que Bartira falou:

– Chega, João. Assim não vai sobrar nada para Irani, coitada. Não esqueça que ela está para chegar.

– Mas...Mas tem que ser hoje?! Meu amor, por favor, eu nem conheço sua prima direito...

– Mas vai conhecer e, por causa disso, vai amar Irani. Pode deixar, eu conheço Irani por nós dois. Eu garanto. Ela é boa demais.

– Boa demais és tu, meu anjo. Boa como ninguém pode ser neste mundo de Deus.

– João, deixa esse teu Deus de castigos e proibições de lado! E, pelo amor que eu sei que tens por mim, eu te peço: recebe Irani no teu coração, como recebeste a mim. E assim nós três seremos muito, muito felizes. Nós quatro, quando André chegar e tiver duas mães para cuidarem dele. Agora, vem, deixa que eu termine de te lavar e te preparar para tuas novas núpcias.

CONTINUA
(uma explicação: caras leitoras e leitores, só hoje consegui condições de retomar o meu trabalho intelectual. Já faz um mês que eu não conseguia produzir nada novo, nem em prosa, nem em poesia; nem mesmo, como no caso deste "João Ramalho no Paraíso" em termos de revisão final. Explico: dia 29 de Setembro fui submetido a uma cirurgia complexa, uma artroplastia completa de quadril; ou seja, meu quadril esquerdo foi substituído por uma prótese de fêmur e de acetábulo. Virei um ciborg, 
Só que o pós-operatório dessa cirurgia é simplesmente dantesco e a recuperação muito lenta e difícil. Por isso só hoje consegui um pouco de ânimo para voltar a revisar o João Ramalho e a postá-lo no blog e nas redes. Espero que consiga condições de fazê-lo doravante com assiduidade. Como disseram Vinicius e Chico, em "Samba de Orly": "Pede perdão/ pela duração desta/ temporada" Ou, como Chico reescreveu depois: "Pede perdão/ pela omissão/ um tanto forçada."

terça-feira, 28 de outubro de 2014


¡TE  PERDI!    
MILTON  MACIEL (Poesías en Español)

Se hizo invierno
De repente
En mi alma.
Y se paró el tiempo.
Y se afondó mi vida…

Machazas  heladas
Han caído sobre
Nuestro amor.
Y en el hielo del ayer…
¡Te perdí!

¡Y me perdí!
No supe vivir
Sin ti.
No lo pude…
¡Me perdí!

He andado en círculos.
Ni sé mas por donde.
En murmullos
Y suspiros.
Y gemidos…
¡Me perdí!

Quantos años?
¡No lo sé!
Se me paró el tiempo,
Se me acabó la vida…
¡Te perdí!

No sé por donde anduve.
Por acá. Y por allá.
Quien sabe?
Yo no sé:
¡Me perdí!

Y el tipo que ahora veo,
Al espejo…
¿Quien será?
No lo sé.
El que yo era…
¡Lo perdí!

La pureza,
La alegría,
La esperanza
Que yo tenia
¿Donde estarán?
Yo no sé.
La vida que yo vivía…
¡La perdí!

Entonces vago solito,
La luz es oscuridad.
Y de todo que yo supe,
No resta nada, al final,
Si no la dura verdad:
¡T  E    P  E  R  D  I !...

domingo, 26 de outubro de 2014

SEU FUTURO ESQUECIDO !
MILTON MACIEL

Esse título é ambíguo. Eu o desancaria por causa disso no meu curso de formação de escritores, ‘O Escritor Publicável’. Mas acontece que aqui eu estou usando a confusão de propósito. Vamos ver por que razão, falando de cerveja, pãozinho e bacon.

Uma latinha de cerveja tem 350 ml. Nela 5% em volume é álcool etílico puro. Ou seja, uma lata de cerveja tem 17,5 ml de álcool. Isso equivale também a 140 Kcal em valor energético o que é exatamente o que tem um pãozinho francês de 50 gramas. E o que têm 25 gramas de bacon (2,5 fatias de 10 g). Nossa equação fica assim:

1 lata de cerveja = 1 pão francês = 25 g de bacon

Contudo, 1 lata de cerveja = 17,5 ml de álcool; pão e bacon = 0% de álcool

A cerveja (cevada) e o pão (trigo) têm em comum um outro problema muito sério: ambos contêm GLÚTEN, a mais terrível proteína para a alimentação humana (No momento eu estou participando de mais simpósio americano sobre glúten, onde 36 médicos e nutricionistas dos EUA, da Europa e da Austrália discutem as últimas descobertas científicas sobre esse grande inimigo oculto, do qual nos tornamos reféns e dependentes desde 10 000 anos atrás. Breve publicarei aqui – e em livro também – o que está sendo apresentado e minhas próprias experiência nesse campo, já em parte relatadas em meu livro “A Sopa Química”, nos capítulos sobre as terríveis lectinas dos grãos).

O bacon tem 77 % de gorduras totais e 27% de gorduras saturadas. Gordura saturada não é necessariamente maléfica e é necessária em pequena proporção diária. O glúten é sempre maléfico, pois não afeta somente os portadores de doença celíaca, mas provoca dezenas de reações adversas dentro do organismo.

Mas nosso assunto hoje não é glúten. É ALCOOL. Continuando com a cerveja, portanto, vamos focalizar quem consome não uma lata, mas uma GARRAFA de cerveja:

1 garrafa de cerveja tem 650 ml. Com 5% de teor alcoólico em volume, temos:

650 ml x 0,05 = 32,5 ml por garrafa; e

1 garrafa de cerveja = 260 Kcal = 1,8 pães franceses = 46 g de bacon

Bem, então agora já podemos passar para o texto que gerou o meu mal intencionado título para este artigo: SEU FUTURO ESQUECIDO. Se eu escrevesse assim:

“Você, seu futuro esquecido”, então todos entenderiam que eu estava querendo dizer algo como  “Você, seu futuro desmemoriado”. Mas eu omiti o “você’ de propósito. E agora vamos descobri por que. Aqui vem um texto publicado na Exame.com: Acompanhe-o com muita atenção, para não vir a se tornar um “esquecido”, não só por aquela inrata, que pode não querer mais você, mas por causa de seus próprios neurônios, num futuro nada distante:

“MAIS DE DUAS DOSES DE ÁLCOOL ACELERAM A PERDA DE MEMÓRIA”
Exame.com

“Quem consome mais de duas doses de bebida alcoólica por dia pode acelerar a perda de memória em até seis anos, revela um estudo publicado nesta quarta-feira.” Não houve, porém, diferenças em perda de memória, ou funções mentais entre os que não tomam e os que tomam menos de duas doses, ou 20 gramas, por dia, de acordo com as descobertas divulgadas na revista “Neurology”.

(Comentário: Evidentemente este trecho foi escrito por jornalista que não é da área de divulgação científica, porque o parâmetro 20 gramas de BEBIDA alcoólica não quer dizer nada, pois o que importa é o TEOR alcoólico da bebida: 20 gramas de cerveja, vinho, uísque, cachaça, ou absinto, nessa ordem crescente, têm brutais diferenças no conteúdo alcoólico. Mas, a seguir , quando o texto passa a se refere a gramas de ÁLCOOL, aí a coisa fica certa):

“Para o estudo, mais de cinco mil homens de meia-idade foram entrevistados sobre seus hábitos de consumo alcoólico, em três ocasiões durante um intervalo de dez anos. Também foram submetidos a testes cognitivos e de memória em uma idade média de 56 anos. Esses testes foram repetidos duas vezes nos dez anos seguintes.

“Nosso estudo enfoca em participantes de meia-idade e sugere que beber em quantidade está associado a uma queda mais rápida de todas as áreas da função cognitiva nos homens”, disse a autora do estudo, Severine Sabia, da University College London.

As habilidades mentais dos grandes bebedores declinaram entre um ano e meio e seis anos mais rápido do que naqueles que ingeriram menos álcool por dia.

Os homens que beberam 36 gramas de álcool, ou mais, por dia tiveram quedas mais acentuadas em sua memória e funções cerebrais.

Cerca de duas mil mulheres também foram incluídas no estudo, mas não houve entre elas uma amostra significativa de bebedoras. (Fonte: Exame.com)

Ou seja, sobrou pinguço, mas faltou pinguça. Ah, agora você pode entender por que você saiu, hoje, de novo (!) com a calcinhona da patroa, em vez do seu cuecão. Sem maldade, Freud não explica: foi a cerveja que você bebeu a vida inteira, cara! Olha só ela rindo da sua cara, no copo ali embaixo.

Mas agora, sem brincadeira, vamos terminar o serviço convertendo essas 36 gramas de álcool em mililitros. Como a densidade do álcool puro (absoluto) é 0,8, basta dividir 36 g por 0,8 e o resultado é: 45 ml ! Ou seja, muito pouco mais do que duas latas de cerveja e ou do que 1 garrafa de cerveja

2 latas de cerveja = 2 x 17,5 ml = 35 ml de álcool
1 garrafa de cerveja = 32,5 ml de álcool

Ou seja, em termos de conteúdo alcoólico que pode danificar neurônios, 2 latinhas ou uma garrafa por dia devem ser vistos como o limite máximo de segurança pra não ficar lelé mais cedo.

Mas...(sempre tem um mas!) se fosse só isso que a cerveja vai fazer no seu organismo, até que dava para você curtir agora e se danar depois. Mas o problema é o que ela está fazendo com seus órgãos JÁ AGORA! Só que isso fica pra outro artigo. Enquanto isso, aproveite e vá tomar sua cervejinha. Afinal, pra quem já está detonado mesmo... E sem saber que a cerveja é a PIOR de todas as bebidas alcoólicas para ser consumida habitualmente. Calma, prometo que vou provar! (MM)

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

HONI SOIT QUI MAL Y PENSE !  
MILTON  MACIEL

Sabe, amigo, eu era um executivo de finanças, assessor de diretoria, considerado o mais jovem e mais promissor da multinacional em que trabalhava. Pois veja você, meu caro, como uma brilhante carreira pode ser destruída em coisa de minutos, sem que você tenha a menor culpa de nada. Deixe que eu lhe conte com calma, enquanto a gente pede mais uma rodada de absinto ao garçom.

Pois bem, na noite daquele dia fatídico haveria uma festa na empresa. E, durante essa festa, meu diretor iria fazer o anúncio de qual de seus assessores seria o escolhido para a grande promoção. Seria eu, ele já me havia confidenciado. Tinha total confiança em mim.

Além do mais, minha esposa se fizera amiga da esposa dele. Então, na tarde daquele dia, as duas resolveram ir juntas ao Shopping Morumbi, procurar sei eu que raio de complementos e adereços para usarem à noite.

Eu fui escalado para acompanhá-las, a pedido do meu chefe, que me deu a tarde livre. Ele queria, também, que eu relaxasse e me preparasse para o meu grande triunfo daquela noite. Então fomos para o Shopping, minha esposa e eu, e lá nos encontramos com a esposa do diretor. Mas ela não estava sozinha, Junto com ela, estava sua filha de dezessete anos, belíssima adolescente que, assim que me viu, tratou de deixar bem claro que iria atormentar minha vida.

Como? Já lhe digo, camarada. Vai mais uma? Pra mim também. Como me atormentar? Bem a garota me lançava olhares devoradores, sorrisos marotos, ia para trás das outras duas para fazer gestos com a boca, passando a língua entre os lábios. Eu não sabia o que fazer, comecei a entrar em pânico.

Veja bem: minha mulher tem o ciúme doentio de dez Otelos, o gênio furibundo de Mike Tyson, a menina era menor de idade e, para piorar, era filha do meu chefe. É claro que eu não ia querer nada com ela, por mais tentadora que fosse aquela boca carnuda, aquele rosto perfeito, aquele corpo enlouquecedor. A sacana sabia que era irresistível, estava era tirando uma com a minha cara, foi o que eu logo percebi.

Tentei me manter distante, mas minha mulher exigia minha presença, pois tem a mania de me mostrar cada coisa que escolhe e de pedir sempre a minha opinião. Pois a safada da menina começou a fazer o mesmo. E a coisa ficou preta – literalmente preta, você já vai ver – quando elas foram todas para os provadores de uma loja de roupas.

Pois a garota esperou que as outras duas entrassem em seus respectivos provadores e aí, de uma arara bem próxima, retirou algumas calcinhas, tanguinhas minúsculas e veio me mostrar. Eu tremi na base quando ela me perguntou, na maior cara de pau, com qual delas eu gostaria que ela estivesse no nosso primeiro encontro. Fiquei mudo, estático, de olhos arregalados, sem saber o que falar.

Nesse momento exato, a mãe dela abriu a cortina do provador. A menina, muito esperta e ágil, virou de frente para a mãe, levou a mão com uma tanguinha preta rapidamente para trás do corpo e a arremessou, ainda mais para trás.

Só que nesse ainda mais para trás estava eu, meu chapa. A calcinha veio aterrissar diretamente no meu rosto. Acho que não teria tido maior problema se eu não fosse um indivíduo de reações muito lentas. Mas, infelizmente, eu o sou.

O que tem isso? Ah, camarada, você não sabe o quanto eu desejei sempre ser um indivíduo de respostas rápidas. Pois o raio da calcinha preta deixou tudo escuro na minha frente e eu levei um tempo enorme para entender o que estava acontecendo, demorei para levar as duas mãos à face e começar a afastar aquele estranho objeto que me envolvia o rosto. Lembro de ter levado um tempo a mais, aspirando o cheiro bom de tecido novo, nunca usado, daquela peça de roupa.

Pois foi exatamente nessa hora que minha mulher tinha que abrir a cortina do provador dela. E aí deu de cara comigo, com uma calcinha preta no rosto, segurando-a ali com as duas mãos, com uma gesticulação de quem está aspirando um perfume. Quando minha visão foi restaurada, escapando ao nylon preto, dei de cara com a expressão furibunda da minha esposa.

Ah, companheiro, aquela ali não se controla. Vi que ela ia aprontar o maior escândalo, como de hábito. E aí ia ser o fim para a minha carreira, imagine a esposa do chefe contando tudo para ele. Não tive dúvida, dei meia volta e saí dali quase correndo. Por um espelho de coluna vi que minha mulher tinha ficado parada no mesmo lugar – eu tinha ganhado uma sobrevida. Curta, somente até encontrá-la de novo.

É, você está certo, foi isso mesmo, eu precisava me esconder, não tinha outro jeito. Assim dava tempo para ela, ao menos, perceber que não podia armar um barraco em plena loja, junto à esposa do meu chefe e à sua filhinha.

Filhinha! Pois sim, uma capeta escolada é o que era aquela menina. O fato é que eu consegui me escafeder por entre prateleiras e colunas e – ó, visão salvadora – um bendito conjunto de provadores na ala de roupas masculinas. Pois foi ali mesmo, no primeiro deles, que eu me enrusti, fechando a cortina. Aí abri uma frestinha e fiquei espiando a loja. Minha mulher e a esposa do chefe passaram duas vezes por ali. Na segunda, eu tive certeza que à minha procura.

Pois é, amigo, pois é, você tem razão. Que situação! As duas sumiram do meu campo de visão, mas outra mulher se aproximou do meu esconderijo. Era ela, camarada. Ela!

Ela tinha conseguido me seguir pela loja, veja só. Pois a danada abriu e fechou rapidamente a cortina do provador, jogando-se para dentro dele, com dois sutiãs na mão. E aí, rindo o tempo todo para mim, tirou a blusa, o sutiã que usava e, com aqueles dois monumentos de fora, teve a cara dura de perguntar qual dos dois sutiãs que ela tinha numa das mãos eu ia querer na nossa primeira noite. E fez isso posicionando-se de uma tal forma que não me permitia sair do provador.

E eu, você pergunta? Ah, eu em pânico total, meu amigo. Total! Meus hormônios me faziam querer partir pra cima daquela deusa, meus neurônios me avisando do risco, do ilógico, do absurdo daquela situação. E os neurônios predominaram. Você pode não acreditar, mas eu, em cinco anos de casado, nunca traí minha mulher. E, logicamente, não haveria de ser ali, naquela hora, dentro daquele provador que eu ia começar. Até porque, você sabe, trair e coçar é só começar.

Então, com minha lentidão habitual, fiquei procurando as melhores palavras para convencer aquela maluca a me deixar em paz, botar o sutiã e a blusa e se mandar dali. Pensei em pedir para que me deixasse em paz, que tivesse só um pouquinho de juízo. Mas eu estava tremendo e gaguejava demais. Mesmo assim falei, de forma entrecortada, mas bem alto:

 – Por favor... Me deixa... Deixa... Só um pouquinho...

Falei alto demais, companheiro! Minha mulher e a mulher do chefe vinham passando, minha voz foi reconhecida, a cortina do provador puxada com violência e...

 – Marcelo!!! Desgraçado! Tarado! Ah, eu te mato, infeliz. E começou a bater ali mesmo.

A mulher do chefe nem me olhou, encarava a filha com olhos de reprovação e horror:

– Helena!!! Sua vaquinha, sua ninfo! Só pode ter sido você, não é?

Pois a Heleninha nem se perturbou. Vestiu-se calmamente, calmamente ficou a olhar a cena magnífica da perseguição que minha mulher, enlouquecida, empreendia no meu encalço, jogando tudo o que ela pudesse apanhar pela loja, em cima de mim. Roupas, frascos de perfume, relógios, sapatos, até um manequim. Imagine, meu chapa, imagine só o vexame, o quebra-quebra. E todo mundo, é claro, a dar razão para ela.

Quando enfim eu consegui chegar à porta de saída da loja, a esposa do chefe já estava conseguindo conter a fera furiosa, usando toda a sua força muscular. Mas, é claro, não conseguiu conter a gritaria, o berreiro infernal, a chuva de palavrões mais variegada que aquele Shopping conheceu até hoje.

Bom, foi assim, camarada. A minha carreira acabou naquela tarde. Nada de festa, nada de nomeação para mim. Tudo acabado. Imagine só, eu dando escândalo sexual, atracado com uma menor de idade, que eu tinha acabado de conhecer, ainda por cima filha do meu chefe, no provador de uma loja, conseguindo que ela já tivesse tirado o sutiã e pedindo para ela deixar, deixar só um pouquinho. Cara, eu estava acabado.

A última coisa que eu lembro, daquele inferno de Dante, foi que, quando eu ia transpor a porta de saída, uma gerente velhusca me encarou com nojo e falou:

– Sim senhor! Que vergonha! Como se explica...

Não a deixei concluir. Do fundo da minha desgraça, do alto da minha total inocência, do alvor da minha pureza, emergiu um brado terrível, colérico, que deixou todo mundo imóvel e assustado. Olhei para todos com raiva e desprezo e gritei, muito alto e em bom francês, algo que brotou do fundo do meu cérebro, do meu inconsciente, talvez:

Honi soit qui mal y pense!!!  

E fui embora para nunca mais.

Ah, o que isso significa? Você não entende? Ora, também ninguém naquela loja entendeu. Quer dizer, eu acho que a esposa do meu chefe sabia o que eu estava dizendo, pois eu a vi sacudir a cabeça concordando, enquanto dava um beliscão fenomenal em sua filha, que soltou um berro de dor. Nesse momento minha mulher se aproximou por trás dela e desferiu-lhe um sonoro tapa na cara. E, enquanto as duas embolavam no chão a puxar-se os cabelos e a gastar estoques inteiros de xingamentos, com todo mundo – menos a mãe da garota, que olhava tudo com um sorriso, veja só – tentando a apartar a briga, eu tomei calmamente um elevador, paguei o estacionamento e, pegando meu carro, comecei minha viagem sem rumo para o interior de São Paulo. E hoje estou aqui com você, neste bar da sua cidadezinha.

Ah, sim ia esquecendo. “Honi soit qui mal y pense” quer dizer mais ou menos o seguinte: “Maldito seja quem pensar mal disso!”  Ou: “Vergonha para quem pensar mal disso”.

Afinal, camarada, eu era completamente inocente, eu era a única virgem pura ali. Ou, se eu não era a única, certamente a Heleninha é que não era outra.

Pois veja, amigo, como as aparências podem de fato enganar. Honi soit qui mal y pense!  É assim mesmo, é francês, você pronuncia assim:  oní soá qui mal i panse. Mais um absinto? Certo, a saideira então.  (MM