sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

O  BOITATÁ DE “O DEMÔNIO E A SRTA. PRYM” 
MILTON MACIEL

Era uma noite toda estrelada e eu saí às 11 horas para observar aquele céu fantástico. Fui andando pela estradinha de terra, depois entrei pelo campo e caminhei por mais de 15 minutos, lentamente, parando a todo instante para contemplar o firmamento. Foi quando eu vi a trilha luminosa de um meteoro riscar o céu e se perder no horizonte. Minha atenção chamada naturalmente para aquele ponto, vi que, bem perto dali, uma nuvem luminosa como que se elevava do chão, como uma chama, no topo da coxilha. Boitatá!

Sou fascinado pelo boitatá, aquela estranha luminescência fosforescente, causada por resíduos de ossadas animais no campo. O nome é indígena, vem de m’boy tatá, cobra de luz. Quase corri para o topo da colina, para ver de perto o fenômeno. É claro que não existiria nenhuma cobra de fogo ali. Mas, quando cheguei, me deparei com algo muito mais insólito: havia duas figuras humanas dentro do boitatá! Convenhamos, aquilo não fazia o menor sentido, principalmente porque as figuras pareciam tão diáfanas e transparentes quanto o próprio boitatá. As figuras se moviam e pareciam envolvidas em animada discussão.

Pensei: Puxa, eu bebi vinho na janta, mas isso foi três horas atrás! Quando dei por mim, estava falando alto sozinho:

– Que é isso? Isso é só um boitatá!

Para minha surpresa, o boitatá respondeu, alto e bom som:

– Claro que eu sou um boitatá, qualquer um pode ver. Mas sou também o Demônio e a Srta. Prym.

– O que??!!!

– Isso aí. Sou um boitatá e sou o Demônio e a Srta Prym.

– Mas como pode? São esses dois caras aí, dentro de você?

– Que caras dentro de mim? Eu sou tudo isso, é uma coisa só.

– Mas tá errado: boitatá é boitatá, é coisa de osso somente, de fósforo branco, de ignição.

– Você é que está errado, não sabe nada de boitatá. Tá assim de boitatá de personagens de ficção. Como eu. Aliás, se você andar uns dois quilômetros para o sul, vai encontrar o boitatá de Otelo, o mouro de Veneza.

Sacudi a cabeça desesperado:

– Inaceitável. Você não existe, não pode estar falando. Boitatá não fala!

– Pura verdade, boitatá não fala. Boitatá comum. Agora, boitatá de personagem... Ah, você nem pode imaginar o boitatá de Quincas Berro D’água e a turma dele. Aquilo é que é palavrório, um conversê sem fim! Nem eu aguentei ficar perto muito tempo.

– Tá bom, tá bom! Vou deixar a coisa seguir, depois eu sei que volto ao normal, só pode ter sido aquele maldito vinho. E daí?

–Daí o que? Que eu sou um boitatá do Demônio e a Srta Prym?

– Sim. Se for verdade!... O que isso significa?

–Significa o seguinte: esses dois, depois que a história do livro terminou, acabaram se casando e agora vivem na maior discussão, por causa das barras de ouro, que não podem carregar. Vivem quebrando o pau. Por outro lado, como não param de falar do autor da história deles, um tal de Paulo Coelho, que quanto mais o povo metido a literato fala mal dele, mais livro vende e mais rico fica, eles se queimaram e resolveram vir para o campo, procurar um boitatá de casal. E me acharam aqui. Há coisa de uns dez meses. Agora a gente é uma coisa só, uma família só.

– Mas isso é muito louco. Eles são só personagens, não têm existência real!

– Mas como você é primário mesmo! Desde quando um personagem de livro com milhares, quando não milhões de leitores, não tem vida real? Como é que você pode dizer uma barbaridade dessas?

– Ué, mas como...

– Mas como! Claro que personagens de livros lidos por um enorme número de pessoas têm existência real. Veja o Otelo, de que eu falei há pouco: foi criado há quase 400 anos e todo mundo ainda hoje fala dele e sabe muito bem que ele é sinônimo de ciúme doentio. E o Hamlet? E o Machbeth? E Romeu e Julieta? E Ana Karenina? E Madame Bovary? E Edmond Dantes? E D'Artagnan? E Jean Valjean?

– Mas...

– Mas!... Ora, você vai dizer que a Gabriela, cheiro de cravo, cor de canela não tem vida? Francamente! E o capitão Rodrigo, do Érico Veríssimo? E o João Grilo, do Suassuna? E Riobaldo, Diadorim, Hermógenes? E Capitu? E Policarpo Quaresma?

– Mas... têm vida onde? Onde?!

– Ora, têm vida no Imaginário das pessoas, que é um universo paralelo sem fim, muito mais importante do que esse mundinho tolo em que vocês vegetam. Passam-se os anos, as décadas, os séculos e esses personagens sempre sobrevivem, às vezes mais do que a lembrança dos seus criadores. Isso, acaso não é vida? Quem escreveu a história de Job, na Bíblia? Você sabe? Nem eu! Mas a tal paciência de Job e o velho Job são lembrados todos os dias, estão mais vivos do que nunca.

– Quer dizer que, se um personagem desses que têm vida no imaginário das pessoas achar um boitatá comum, os dois se juntam e fazem um boitatá como você?

– Isso mesmo! Qualquer personagem, desde que venha de uma obra com muitos leitores. Isso é uma garantia de imortalidade.

Esse encontro se deu há exatamente cinco anos. O boitatá do Demônio e a Srta. Prym me convenceu. Ora, eu sempre aspirei a imortalidade. Vai daí que tive uma ideia incrível.

Primeiro transformei em personagem a mim mesmo. Apesar de ter só 39 anos, escrevi uma fenomenal história sobre mim, uma saga, um épico – não uma autobiografia! -  que publiquei com pseudônimo, às minhas próprias expensas, para que ninguém soubesse meu segredo. Na epopéia sobre minha vida heróica, eu morria aos quarenta anos, um autêntico campeão, defendendo os fracos e oprimidos.

Então só precisei investir o resto das minhas economias em propaganda. O país inteiro engoliu, meses a fio, violenta campanha de divulgação do meu livro. Valia muito, para isso, que o autor, de nome estrangeiro, se recusasse terminantemente a aparecer e a dar entrevistas. Todos os veículos de imprensa saíram feito loucos atrás do misterioso escritor. Ora, a gente sabe muito bem: um livro é um produto. E, para o sucesso de venda desse produto, o importante não é o produto, mas a propaganda. Depois de meses de campanhas apregoando que o meu era o melhor livro do ano – e do gênero – e eu o mais importante herói contemporâneo, as vendas explodiram vertiginosamente.

Com isso, meu livro atingiu o primeiro lugar na lista de Best Sellers por mais de 40 semanas, quase um ano inteiro. Eu tinha, enfim, conseguido o que queria: eu era um personagem de livro que vivia na memória e imaginação de mais de um milhão de pessoas.

Bem, aí foi fácil o final:

Fiz uma lauta refeição de despedida, um jantar, sem esquecer o vinho, aquele mesmo moscatel de cinco anos atrás. Saí para o campo às onze da noite, caminhei até achar um boitatá. Por sorte era comum e estava livre. Pedi licença, entrei dentro dele, deitei no chão e adormeci em seguida.

E hoje estou aqui, atingi a imortalidade, sou um boitatá de mim mesmo!

De vez em quando voltamos ao nosso berço, para nos reabastecermos de brilho com os restos dos meus antigos ossos. Que maravilhosa vida eterna eu alcancei !



quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

EM  VOCÊ  SUPÕE-SE  
MILTON MACIEL

Em você
supõe-se
a maciez da alma,
o obtemperar do sonho,
o obliterar do nunca,
o imaginar do antes
e o esbater do belo.

E há o enigma dos olhos,
o indecifrável da intenção,
o sorriso de pétala,
as mãos de nuvens
o flutuar de náiade,
o intangível da leveza...
E o desvanecer.

Em mim...
Esta perplexidade!

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

O MUNDO É DOS JOVENS?
MILTON MACIEL

NÃO, ESSE É UM MITO INTENCIONALMENTE CRIADO! Mas é preciso que os jovens e as pessoas de meia-idade acreditem nesse MITO, porque é assim que o SISTEMA funciona.

Ora bolas, o mundo é de quem tem o DINHEIRO, caramba! Como diz um sábio ditado argentino: “El que paga que lo mande”. E os jovens ainda não têm o dinheiro. Quem tem o dinheiro são os VELHOS. Os banqueiros, os investidores, os governantes, os ditadores, os industriais e os comerciantes de grande porte. Alguma dúvida de que o mundo é DELES, que eles é que mandam? Mandam e se garantem, porque com o dinheiro eles compram as armas e os militares, os presidentes e os ditadores, os deputados, senadores e magistrados – estes últimos três, gente de mais baixa extração, menos valorizada no mercado, de preço necessariamente mais baixo, que militam no lucrativo ramo de negócios da corrupção passiva.

Claro, a corrupção ativa fica com por conta dos VELHOS RICOS donos das empreiteiras, das fábricas de aviões, dos grandes fornecimentos públicos, dos imensos negócios de sonegação fiscal a la Globo.

Os VELHOS  donos do dinheiro fazem as guerras e fabricam os mísseis. E os aviões para lançá-los. Fazem os transgênicos e os piores venenos com que a indústria da agricultura começa uma corrente macabra, que prossegue numa indústria alimentícia que compromete a saúde da humanidade em nome dos lucros, deixando-a cada vez mais doente. Para que o elo seguinte da corrente, a indústria farmacêutica possa explorá-la e o elo remanescente, a indústria médica e hospitalar termine de exaurir os seus parcos recursos. Se algo ainda puder sobrar, os agiotas dos bancos e os cartões de crédito expurgam esse resto a curto, médio e longo prazo.

O mundo é dos VELHOS! Claro, não do seu avô pobrezinho, todo desconjuntado das juntas, mal conseguindo fazer xixi com sua próstata inchada, sofrendo de diabetes, pressão alta e insuficiência cardíaca. Ele é só um coitado a mais, vivendo de sua magérrima aposentadoria e penando nas filas do SUS.

Mas por que estamos perdendo tempo falando do seu avô? Eu disse que ele é POBREZINHO. Que, a rigor, é ainda pior do que pobre, por que é o pobre todo ferradinho.

Não, não, tenhamos coerência! Eu afirmei que o mundo é dos VELHOS, sim. Mas não dos velhos ferrados como seu avô. O mundo é dos VELHOS RICOS. Na verdade, a rigor dos velhos BILIONÁRIOS e, com muito favor, dos milionários aspirantes ao BI, que tratam de tirar tudo o que podem dos consumidores para poderem acumular a subir de categoria. Eles são os VELHOS: os Murdochs e os Robertos Marinhos, os Frias, os Mesquitas, os cidadãos Kane de seu tempo, que enriquecem veiculando a voz do Sistema “His master’s voice”, a voz do dono, como fazia o cachorrinho da RCA Victor. E são os Hollandes, as Merkel, os Castro (opa, estes aqui, nesse contexto, lembram mais o seu avozinho ferrado, mas vá lá). E, falando sério, os Putin e os Obama e sua SNA, junto com a indissociável sombra senil dos velhos republicanos carcomidos do Tea Party, sempre loucos para deflagrarem mais uma lucrativa guerra, desde que na casa dos outros, é claro.

O mundo é desses VELHOS! Só que eles têm dinheiro suficiente para pagarem as grandes agências de publicidade e elas criaram o mito do mundo dos jovens. Ora, os jovens entram nessa como massa inocente de manobra, nada mais. Eles são consumidores em formação e em evolução. Estão sendo treinados para comprar, comprar, se endividar e querer comprar mais. E adoecer e gastar os tubos para tratarem de suas doenças não-transmissíveis, crônicas, todas elas semeadas pelo próprio Sistema. Cura eles não terão, mas poderão chegar a serem obedientes e conformados velhos doentes, ainda tendo que tomar pelo menos uma dúzia de comprimidos diferentes todos os dias, para gáudio e orgasmo da indústria farmacêutica e da médico-hospitalar, até que o morte (dele) os separe (delas). Tanto faz, outros o substituirão!


Os jovens são suficientemente inexperientes e incautos para acreditarem no MITO. E para comprarem o mesmo jeans, fabricado naquela mesma velha fábrica lá da Mooca, por 16 reais, numa cesta no chão de uma loja surrapa do Largo 13 de Maio; ou, por 1600 reais, numa vitrine emproada de uma Daslu qualquer da vida, onde o tal jeans, ainda por cima, posa de importado. A única diferença entre as calças é só o etiqueta de couro que foi costurada na bunda. E o(a) jovem incauto(a) empina a bunda para se fazer importante, se possível entra nos ambientes caminhando de costas.

Já as pessoas que agora estão atingindo, em pânico, a meia-idade, também elas foram domesticadas e amestradas para crerem no MITO. O mundo é dos jovens! Logo eles e, ainda mais, elas, tentam de todas as formas não envelhecer. Envelhecer É PECADO: o mundo é dos jovens! E lá se vão verdadeiras fortunas para a Indústria das Ilusões Impossíveis e, entre cosméticos, liftings, botoxes e plásticas, os de meia-idade remediados se desremedeiam de vez, se endividam, mas lutam contra o relógio do tempo, envelhecer é pecado! É anátema!

O mundo é dos jovens??!!  VELHOS SAFADOS!!!


(Imagens: Jane Fonda;  Leonardo di Caprio: O Lobo de Wall Street)



domingo, 26 de janeiro de 2014

ODE A UMA DIA COMUM
MILTON MACIEL

 Nós passamos a maior parte das nossas vidas nos dias comuns. Eles são a imensa maioria, a quase totalidade dos nossos dias. Como você reage ao dia comum é que determina como você vive: feliz ou infeliz?

Ontem não aconteceu nada,
Foi só um dia comum.

Ontem nada deu certo;
Porém, nada deu errado.
Se nada teve conserto,
Nada também foi quebrado.

Tive alegrias? Que nada!
Mas nada me incomodou.
Fiquei chateado? Que nada!
No entanto, nada mudou.

Nada de novo na esquina,
Nada fugiu da rotina.
Nada houve de horroroso...
Que dia MARAVILHOSO!!!

Miami, Jan 30, 2012  

sábado, 25 de janeiro de 2014

GATO  BRANCO EM CAMPO DE NOITE  
Fábulas  de  Severino  Ribamar – No. 4
MILTON MACIEL

Esta é uma fábula bem curtinha, do arsenal de nosso grande fabulista brasileiro Severino Ribamar. Escolho-a porque, para mim, é um libelo contra o racismo.

O gato angorá, com seu pelo branco como a neve (neve é uma coisa branca e fria que existe em cartão de Natal do Brasil, mas nunca apareceu no país todo. Porém, exceção feita, custa os olhos da cara para ver por meia hora em Santa Catarina e Rio Grande do Sul).

Bem, retomemos: O gato angorá com seu pelo branco como neve (neve é aquele treco branco no começo, mas barrento e nojento pra burro depois), estava fazendo sua ronda de conquistas amorosas, noite alta, céu risonho. Havia uma gata no cio ali por perto, suas sensíveis narinas o avisavam.

Quando desceu do telhado e subiu num muro, chegou a Justa. A viatura policial estacionou com um guincho agudo, o que assustou o gato angorá. Desceram um sargento truculento e três soldados furibundos. Encanaram e algemaram o gato. E ai, porque ele podia resistir à prisão naquele estado algemado, deram-lhe uma coça bem dada, daquelas de criar bicho.

O gato só perguntava?

– Mas o que foi que eu fiz?

Ao que o sargento respondeu:

– Teje preso, meliante! Ocê nessa hora da noite, por cima de um muro, só pode tá aprontando.

E levaram o gato branco para a delegacia. Lá o escrivão lavrou o boletim de ocorrência, em que o gato era acusado de porte de drogas ilícitas e de armas de uso exclusivo das forças armadas. O escrivão não precisou ver nenhum desses bagulhos. Na hora de preencher o espaço COR, o escrivão lascou o que o sargento e os soldados afirmaram, peremptórios:

– PARDO!

O gato protestou:

– Mas eu sou branco!

Ao que o escrivão respondeu com um tapão na orelha do gato, dizendo:

– Tu é pardo! E se tu é pardo, tu é sempre suspeito, negão!

O gato ainda gemeu um último protesto:

– Mas eu sou branco!

Ao que o sargento respondeu com outro tapão, dizendo:

– E tu fica feliz de não sê ajudante de pedrero, senão tomava era chá de sumiço já, já!

MORAL DA HISTÓRIA:

DE NOITE, TODOS OS GATOS SÃO PARDOS

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

 CONSTRUÇÃO DO PERSONAGEM NO ROMANCE            - 2ª. parte        
(do Curso de Formação de Escritores Auto-editores O ESCRITOR PUBLICÁVEL)
MILTON MACIEL
O ESCRITOR PUBLICÁVEL - FIÇÃO > Romance > Personagem - IV

IV – O PERSONAGEM E O INCONSCIENTE DO AUTOR – 1

Na parte III, usando afirmações de Jorge Amado e minhas, mostrei como o PERSONAGEM é capaz de dominar o autor e capaz de forçá-lo a dar novo rumo à historia. Evidentemente, o que nós quisemos dizer é que, no processo de criação, uma grande parte é conduzida pelo inconsciente do autor e, não , pelo seu consciente.

Isso é uma realidade não só na criação literária, mas em todas as artes. Como quando a gente acorda com uma melodia tocando insistentemente na cabeça e tem que correr para o instrumento em desespero e tratar de trazê-la para o consciente, ainda que esteja apertado para fazer xixi. Caso contrário, a gente esquece, exatamente como o sonho que a gente não conta para alguém assim acorda e isso for possível.

Johann Strauss Pai (foto) sempre usava longas camisolas para dormir. Isso porque ele acordava no meio da noite com um tema musical martelando em sua mente. Sem abrir os olhos, ele passava a mão no escuro sobre o criado mudo, apanhava a pena de dentro do tinteiro e anotava na camisola mesmo, sobre o peito, as notas do novo tema. Depois, voltava a dormir instantaneamente. No outro dia, era só estender a camisola ao lado do piano e copiar o tema, aprofundando-o a seguir. A empregada, acostumada, sabia quando já podia retirar dali a camisola e levá-la para lavar.

Na urdidura de um romance, no interagir incessante de narração, descrição, cenário, enredo, personagem, diálogo,vocabulário, é evidente que o personagem é o ator principal em cena, girando tudo o mais ao seu redor. E é exatamente a partir dele que as outras partes de redefinem e se transformam.

Por exemplo, quando minha protagonista sacana começa a ter percepções extra-sensoriais não cogitadas inicialmente em meu enredo original, a personagem se transforma e, como conseqüência, muda o teor dos seus diálogos e as pessoas com quem ela vai preferir dialogar. A transformação se torna irreversível e o romance toma um rumo inesperado, surpreendente para o próprio autor – como contou Jorge Amado, a respeito do desfecho final em Dona Flor e Seus Dois Maridos.

Em resumo, trata-se da interferência do inconsciente do autor, fazendo-se manifesta e concreta para sua própria surpresa. Evidentemente, ainda é o autor que está no comando, mas ele está dando passagem a uma parte muito mais profunda e sábia de si mesmo, que pelo geral, aprimora muito o processo criativo.

ENTÃO, PARA QUE ESTUDAR TEORIA DA ESCRITA???

Essa é a reação normal de todo estudante a esta altura do curso. Já que o personagem, como diz Jorge Amado, é que faz o romance, para que estudar sobre a construção do personagem?

Ora, a resposta me parece evidente por si mesma. Para que estudar piano ou violão? Ora, para poder desenvolver a TÉCNICA com que os dedos e o ouvido vão aprender a dominar o instrumento, de forma a fazê-lo dócil intérprete do que flui da inspiração do compositor.

É óbvio que, se nós aprendermos a desenvolver a técnica por trás da arte de escrever, nós vamos poder dar muito melhor provimento àquilo que flui da nossa mente consciente e inconsciente, da nossa ideia, da imaginação e da inspiração.

Inclusive, eu creio que é fundamental conhecer as regras para poder desrespeitá-las com autoridade, para não deixar que elas nos engessem. E, ao mesmo tempo, para não deixar que nossa criação liberta se perca num vácuo de inadequações concretas, que farão o nosso livro, a nossa querida criação,  NÃO-PUBLICÁVEL.

O que recomendo – e pratico, obviamente – é estabelecer um diálogo constante e muito aberto entre técnica e inspiração. No meu caso, como já sou conhecedor das técnicas e suas regras, depois das dezenas de cursos que fiz e dei, essas duas caturritas ficam o tempo inteiro grasnando como se fossem gralhas, num conversê sem fim na minha mente.

Mas a inspiração, a tal que faz os personagens mudarem o tomarem o roteiro em suas mãos, acaba predominando. O que faço, então, é deixá-la assumir o leme e ver para onde ela nos conduz, a mim e todos os outros partícipes do romance. Mas tem uma hora em que a inspiração já deu o que tinha que dar. Então eu volto e passo a criticá-la com as armas da técnica. É a famosa REVISÃO.

Então é corta daqui, corta dali, reescreve, reescreve, escreve de novo, corta de novo, refunde, reorganiza – enfim, é quando uso o meu conhecimento prático e minha destreza ao teclado do piano para poder melhorar a melodia que veio crua, como um simples assobio. E, com mais conhecimentos técnicos ainda, digamos de outros instrumentos, eu posso refinar a melodia original do meu assobio e convertê-la em uma peça sinfônica, para uma orquestra de 80 músicos ou mais.

Acho que esta analogia com a composição e execução musicais é perfeita. Aprender sobre enredo, personagem, diálogo, cenário, descrição, narração, ritmo, aceleração, fechamento, leitura e gramática é o mesmo que aprender a tocar piano. Leva-se um certo tempo, tem-se que fazer muitos exercícios, até que a gente seja capaz de sentar ao instrumento e não dar vexame, até que a gente possa ter o enorme prazer de saber que, qualquer melodia que venha, ela vai fluir perfeita e inalterada pela fluidez e perícia dos nossos dedos ao teclado.

Portanto, a inspiração, que vem do inconsciente, e a boa técnica de escrever, que a gente instala solidamente no consciente, não são excludentes, porém complementares. E é exatamente esta complementaridade, corretamente exercida, que faz o grande escritor.
(continua)

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

CONSTRUÇÃO DO PERSONAGEM NO ROMANCE
(do Curso de Formação de Escritores Auto-editores O ESCRITOR PUBLICÁVEL)
MILTON MACIEL

Parte III - OS PERSONAGENS EM JORGE AMADO

Começo este bloco transcrevendo um pequeno texto, extraído de uma entrevista que Jorge deu, em Junho de 1981, a Roberto Espinosa, do Literatura Comentada:

R.E  – Quer dizer que você começa tentando apreender a pessoa no personagem e acaba prisioneiro do personagem?

J.A.  – O PERSONAGEM É QUEM FAZ O ROMANCE! Quando é o autor que faz o romance, o romance não presta. Pelo menos no meu caso. Sou incapaz de contar uma história.

Zélia, minha mulher, senta aí com os netos e inventa as histórias mais maravilhosas. Eu fico fascinado, sou completamente incapaz de inventar histórias. Quando vou para máquina de escrever, tenho na cabeça os personagens, os ambientes, as ideias... Tanto que o começo de qualquer livro é sempre extremamente difícil para mim.

E isso dura até que eu coloco de pé, ou seja, até que os personagens começam a se colocar de pé. Aí eles vão e constroem, eles próprios, a sua história. E eles não só constroem, como às vezes se recusam a fazer o que eu quero.

R.R. – Dê um exemplo.

J.A. – Bem, certa vez eu estava ali na máquina, escrevendo o final do livro “Dona Flor e Seus Dois Maridos”. Minha sobrinha Janaína me perguntou “como é que vai terminar o livro, meu tio?”

Eu respondi: Como eu estou vendo a coisa, ela vai se entregar ao Vadinho, mas como é muito marcada por esse preconceito todo, é uma pequeno-burguesa cheia de preconceitos, vai ficar desesperada. E, como ela já fez o ebó para ele ir embora, no momento em que ele for... ela vai com ele! Eu penso assim, uma coisa meio poética, os dois desaparecendo, o outro marido entrando e vendo ela morta na cama.

No dia seguinte, revi a cena e fui continuar. O que aconteceu então? Depois que Vadinho fez amor com ela e foi embora, o marido entra no quarto, possui Dona Flor e ela acha ótimo! Então ELA, e não eu, resolveu ficar com os dois. Eu não esperava que Dona Flor fosse capaz de romper aqueles preconceitos todos. Mas o amor é muito forte, você sabe, e quando são dois amores, fica mais forte ainda. Dona Flor impôs o fim do livro.

Toda vez que o personagem está conduzindo o livro, você sabe que o livro está andando. E, toda vez que o personagem reage contra qualquer coisa, é você que está errado.


COMENTÁRIOS: Escolhi este pequeno trecho de entrevista para demonstrar uma grande realidade. Nós, escritores, escrevemos muito mais com o nosso inconsciente do que com nosso consciente. Nós fazemos um delineamento, imaginamos um enredo, cenários, épocas e então esbarramos no que há de mais importante num romance: os personagens. É ao redor deles que tudo gira. A importantíssima arte do diálogo em ficção só faz sentido a partir dos personagens que dialogam. Ou seja, como muito bem disse Jorge Amado, O PERSONAGEM É QUEM FAZ O ROMANCE.

A mesma coisa acontece, obviamente, comigo. Em meu romance “LOLITA DE ARACAJU, A Mais Jovem Dona de Bordel do Mundo”, minha personagem principal, a protagonista, é uma garota paulista de 16 anos hiper sexuada, que engana o amante de 51 anos com vários surfistas na Praia do Francês, em Alagoas. Até que um deles, um carioca bom de bico, a convence a fugir com ele para o Rio, onde, garante ele, ela poderá se tornar uma grande artista. Uma grande artista do sexo, essa é a ideia oculta do rapaz, que é um cafetão com várias meninas se virando para ele na Lapa. A garota rouba 15 mil dólares que o amante tem escondidos, mas, ao chegarem em Aracaju, o surfista  cafetão descobre e rouba esse dinheiro, abandonando-a à própria sorte em Sergipe.

Mas, a partir daí, a história toma um rumo totalmente diferente daquele que eu tinha planejado. Minha outline dançou solenemente! “Adotada” pela arrumadeira do hotel, antiga gerente do melhor castelo de mulheres de Aracaju, Lolita se transforma. Ela começa a ver em sonhos a falecida dona do bordel, a francesa Madame Lammounier, e desabrocha então todo um lado de espiritualidade e sensitividade que ela não imaginava poder possuir. A personagem passa a construir, capítulo a capítulo, uma trajetória que vai transformá-la na dona de um castelo de altíssimo nível, em sociedade com a ex-gerente. E ela faz com que toda a enorme renda desse bordel venha a ser usada para combater a prostituição de crianças, retirando das ruas e estradas as meninas forçadas à prostituição e impedindo que elas tenham que seguir vendendo seus corpos. E combatendo, a ferro e fogo, os cafetões e traficantes de drogas, que exploram essas crianças.

Na verdade, o catalisador da transformação de Lolita é a baiana Zezé, de 50 anos, a arrumadeira do hotel e ex-gerente do castelo da francesa, que ao surgir na história de uma forma secundária e quase adventícia, assume proporções gigantescas na trama, pois é ela que traz, em si, o conhecimento do ramo e a capacidade de administrar a casa. No fim , graças à interação entre essas duas personagens é que eu consegui misturar um pouco de erotismo e muitíssimo humor para fazer o que, isso sim, era meu projeto chave desde o começo: criar uma isca que atrai os leitores, em especial os homens, para um assunto que, pelo geral, eles não querem ver nem pintado de ouro. Tanto que, no Brasil, os pouquíssimos livros que foram escritos sobre prostituição infantil tiveram péssimo desempenho nas livrarias, exceção feita ao velho livro-reportagem de Gilberto Dimenstein, de 1993, o Meninas da Noite.

Já em “O CERCO, que publiquei em 2013, estou engessado pela realidade. Trata-se de um romance histórico, que retrata o avanço dos hunos de Átila e seus aliados pela Gália, em 451 A D. Os locais são reais, as grandes batalhas decisivas são reais, os cenários também. No entanto, uma futura rainha dos francos, Vérica, tem fraco delineamento histórico, sabe-se pouco mais do que o seu provável nome e que casou com o rei dos francos salianos, Merovech, mesmo este de existência parcamente documentada.

Ora, personagens assim controversos são um prato cheio, o campo ideal para a atuação do romancista histórico. Já que a história tão pouco sabe deles, o romancista concede-se a “licença histórica” e romanceia os personagens à vontade. Merovech vira Meroveu em português, sua esposa é Vérica e deles sairá a dinastia dos francos merovíngios, que vai unificar todos os francos no futuro imediato e dar origem a uma grande nação moderna: a França.

No romance aparece uma cidadela fictícia, sob o cerco de uma brigada huna, uma fortaleza defendida por esse rei Meroveu e apenas 540 soldados, bem no epicentro da tormenta, onde vai se travar, dias depois, a grande batalha final, verídica, a Batalha dos Campos Catalaúnicos, onde se decide o destino de toda a Europa, em junho de 451 AD. O lugar abriga hoje a cidade francesa de Châlons-en-Champagne.

Pois eu passo a solução de todos os problemas logísticos e bélicos à competente gestão de três sacerdotisas celtas imaginárias, que por terem a Visão e servirem à Deusa – e por serem, todas elas, grandes guerreiras também – estabelecem as estratégias para que os francos de Meroveu, os romanos de Flávio Aécio, os visigodos de Teodorico I, os Alanos de Sangiban e os burgúndios de Gordioc (todos eles personagens históricos reais) possam enfrentar os hunos, alamanos, ostrogodos e gépides.

As sacerdotisas são avó, mãe e filha. Esta filha, eu fiz a ser a Vérica dos francos. Elas têm 43, 29 e 17 anos. Tem exatamente o mesmo físico, são ruivas, altas, fortes e belas, parecem irmãs gêmeas.

Pois a sumo-sacerdotisa Kina, a sábia, era a minha protagonista. A filha desta, a grã-sacerdotisa Alana, exímia cavaleira, mãe de Vérica, seria a segunda em importância. Não aguentaram nem 9 dos 45 capítulos do livro. A jovem aprendiz de sacerdotisa, Vérica, simplesmente tomou a história em sua mãos de fantástica arqueira. Cresceu em importância, em temperamento, audácia, coragem, sinceridade, perícia. Conduziu sua própria iniciação sexual usando o rei franco como seu pseudo gamo-rei celta, depois fez gato e sapato com ele, morto de paixão. E seduziu também a mim, que passei a ser seu admirador incondicional. Me fez rir e me fez chorar inúmeras vezes

Foi só quando estava chegando perto do final que eu percebi qual era o propósito inconsciente dessa substituição de protagonistas: dar continuidade à história, permitindo a produção de uma trilogia, montada com base num roteiro cinematográfico. Ora, a continuidade só podia se dar através de Vérica, por que é ela que vai, poucos anos depois de 451 A D, se tornar a rainha dos francos salianos.

Só que eu tinha uma janela histórica real de três anos entre a batalha final contra os hunos e o casamento real de Meroveu com Vérica. Então aproveitei para levar as três sacerdotisas de volta para a Bretanha (azar de Meroveu, ele que espere!), onde se desenrola o segundo volume da série, todo ele girando somente em torno das tradições celtas druídicas, da importância das mulheres nessas comunidades e dos combates finais dos celtas e bretões contra os romanos que são forçados abandonar a Bretanha. É, inclusive, quando Vérica tem enfim um gamo-rei autenticamente celta e pode, assim, conceber e dar à Deusa uma menina, que será a sua sucessora na ordem sacerdotal. A menina será entregue os cuidados da nova avó, Alana, quando Vérica tiver que deixar as terras celtas da Bretanha para assumir seu papel histórico de criadora da futura França moderna.   O terceiro volume, evidentemente, se dá em solo franco saliano, no que hoje é a Bélgica, e vai até a unificação de todos os francos sob o comando de Clóvis, exatamente o neto (real) de Vérica e Meroveu, e o nascimento da França.

“O Cerco”, que no livro impresso tem 420 páginas, foi criado em 43 dias, escrevendo e postando um capítulo (8 a 12 páginas) por dia no meu blog Milton Maciel Escritor. Nesse curto intervalo de tempo, a principiante Vérica tomou a história das minhas mãos e fez exatamente o que tinha que fazer. Do meu jeito inicial, ia sair bobagem. Que a Grande Deusa a recompense e abençoe, sacerdotisa Vérica.



quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

NEM  SEMPRE O FIM É TEMIDO  
MILTON MACIEL

O médico tinha sido brutalmente objetivo:

– Seis meses é demais num caso como o seu. Desculpe lhe dizer assim, mas a senhora tem muito pouco tempo para se preparar e preparar os seus. Pouco tempo mais com sua família, depois a senhora vai ter que ser hospitalizada  e aí...

– E aí eu fico num hospital até o fim, é isso que o senhor quer dizer?

O oncologista confirmou. Em casa seria impossível tratá-la. Cirurgia nem pensar. As biópsias e as ressonâncias não deixavam qualquer dúvida: estado terminal avançado. Avançadíssimo. O médico ainda lhe disse que ela poderia, se quisesse, ouvir uma segunda opinião. Ora, a dele já era a segunda opinião! E igualzinha à primeira.

Rosana saiu do consultório apressada. O médico sacudiu a cabeça: Essa é das duronas, saiu quase correndo, não quis chorar na minha frente.

Do lado de fora, no corredor, Rosana explodiu numa sonora gargalhada. Os que passavam no corredor decodificaram: essa aí não tem nada; ou está curada. Deve estar no maior alívio!

Rosana não conseguia segurar o riso, por mais que se esforçasse. Estava no maior alívio! A segunda opinião confirmava a primeira. Que horror o que havia padecido nesses dias, antes da chegada dos novos exames e da consulta de agora. Como tinha temido que o primeiro médico estivesse errado e ela não fosse morrer em seguida. Mas ia. Graças a Deus!

No ônibus a caminho de casa, continuava a rir a todo instante. Que alívio! Que felicidade! Ia morrer e ia morrer em seguida. Pensou na cara do marido, quando soubesse. E dos filhos, então! Bando de sanguessugas!

Iam perder a cozinheira, a arrumadeira, a lavadeira, a faxineira. A escrava Isaura! Iam ter que fazer a comida, lavar a roupa, cuidar dos bichos, recolher os cocôs, tirar os matos, aguar as plantas, varrer toda a casa, passar a roupa, arrumar as camas, lavar os banheiros, os vasos sanitários, recolher papel higiênico sujo, levar o lixo, ir à feira, ir ao mercadão, carregar as sacolas pesadas. O GORDO IA PERDER A PUTA BARATA, A LATA DE DESPEJO DAS PORCARIAS DELE! Ah, e eles iam ter que cozinhar!!! Explodiu noutra gargalhada, os passageiros todos se voltaram outra vez para ela. Ainda bem que havia uma criatura feliz, sem problemas, neste mundo  pensaram.

Quando entrou em casa, a ladainha recomeçou, como sempre. O marido já tinha chegado, já estava estarrado no sofá vendo TV, os pés sobre a mesinha de centro, as meias e os sapatos espalhados pela sala, como sempre fazia. O chulé chegava até à porta da frente.

Rosana entrou, recolheu os sapatos e as meias, como sempre fazia também. O marido grunhiu, incomodado porque ela atrapalhava a TV:

– Você demorou, porra! Cadê minha cerveja?

Rosana depositou sapato e meias malcheirosos na área de serviço, lavou as mãos no tanque mesmo, entrou na cozinha, abriu a geladeira, pegou e abriu a primeira garrafa de cerveja, serviu a primeira dose no copo, levou copo e garrafa numa bandeja para a sala. Dentro de pouco tempo a voz gritaria de lá: Traz a outra!

No corredor cruzou com a filha:

– Pô, mãe, você tinha que sair justo hoje, é? Passa essa blusa pra mim, depressa. Agora, que eu já tô em cima da hora pra faculdade!

Rosana passou a blusa, levou ao quarto (Quarto??? Chiqueiro!) da filha e pendurou num cabide.

– E o seu irmão? Saiu?

– Ora, que pergunta? E aquele inútil fica em casa? Só quando chega muito alto ou muito chapado. Tá nas bocas, diz que achou boca de fumo nova, foi com o Tavito.

Rosana meneou a cabeça tristemente. Aquilo já era caso perdido. Ela tinha consumido todas as suas economias para tirar aquele filho das delegacias, onde os mesmos policiais de sempre esperavam pelas mesmas propinas de sempre. Agora ela não tinha mais nada. E o marido nunca quisera dar qualquer dinheiro para libertar ou tratar da dependência do filho. Os dois se odiavam desde sempre.

A dor de cabeça veio forte, como um puxão. Rosana sentiu-a como um alívio, começou a rir contente, porque a dor lembrou-a que o fim estava próximo. Aleluia! Faltava pouco tempo para se libertar daquela maldita prisão. Olhou para a filha que saía, a blusa toda nos trinques, e não pôde deixar de rir.

– Traz a outra! – a voz pastosa ordenou da sala.

Rosana repetiu o ritual: levou nova garrafa, novo copo, servidos em nova bandeja, para a sala. Recolheu os que estavam vazios, levou para a cozinha, lavou o copo, guardou a garrafa. Olhando dali o marido, que coçava o barrigão sem perder um detalhe da sua novela, não conseguiu se segurar. Caiu na gargalhada outra vez: Espere só, seu animal! Mais uns dois meses, se tanto, e a mordomia acabou. A minha cerveja! A outra! Filho da mãe! Grudado na novela, volume alto, o marido nada escutou.

Não contou nada a nenhum deles. Continuou firme, fazendo tudo o que fazia, dócil escrava Isaura. As dores na cabeça cada vez mais frequentes, cada vez mais insuportáveis, os desmaios mais frequentes também. Mas ela tinha uma incrível força de vontade, reagia, conseguia não desmaiar nem demonstrar o que padecia quando algum daqueles três estava por perto. Eles que esperassem, o dia deles chegaria!...

Chegou 46 dias depois daquela segunda consulta. O desmaio pegou-a em plena função da cerveja, rolou pelo chão, ficou imóvel, dura. Quando voltou a si, estava sendo enfiada na parte de trás de uma ambulância. Os três estavam do lado de fora, com mais vizinhos, olhando com cara de pateta. Eram os malditoos três patetas!

Antes que a porta fosse fechada, Rosana conseguiu se erguer um pouco e soltou uma solerte, uma inesperada, inexplicável, uma incrível gargalhada. Fez um gesto obsceno para eles com a mão direita e gritou, com um resto de voz ainda perfeitamente audível:

– Vão pro inferno, seus urubus! O inferno que é essa casa é todo de vocês agora. Todinho...

E desmaiou de novo, o esforço tinha sido grande demais. Nunca mais recuperou a consciência.

Um mês depois sobrou para os urubus o incômodo do que fazer com aquele corpo. E a despesa.

Do outro lado da vidraça etérea, Rosana novamente gargalhava. O alívio... era completo agora!



terça-feira, 21 de janeiro de 2014

UM POVO SANTO
MILTON MACIEL

Comuns... São pouco mais do que ninguém,
Não são importantes, nem ricos ou famosos.
Usados e esquecidos por políticos ardilosos,
Vivem com dignidade, são pessoas de bem.

Trabalham de sol a sol, durante a vida inteira.
Mas, quando se aposentam, a labuta continua:
Recebem muito pouco, esta é a verdade crua,
Ainda têm que trabalhar nesta fase derradeira.

É um povo pobre e heróico, pacífico e ordeiro,
Que aceita o seu ordálio, sem medir sacrifício.
Por toda a vida luta, sem trégua ou armistício,
Por isso é um povo Santo, Sagrado por inteiro. 

Este é o Povo Brasileiro!
Quadro: Segunda Classe - Tarcila do Amaral

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Curso de formação de escritores auto-editores
O ESCRITOR PUBLICÁVEL
Prof. MILTON MACIEL, escritor e editor

Muito feliz com a adesão de escritores e aspirantes a escritores da Grande São Paulo, Campinas, Guarujá e Santos ao meu Curso de Formação de Escritores Auto-editores “O ESCRITOR PUBLICÁVEL”. Os seminários estão marcados, com poucas vagas ainda disponíveis em dois deles, pois, num sistema de ensino personalizado, não se pode ter um grande número de alunos por sala:

Grupo JORGE AMADO – Sábado 22 de fevereiro, das 9 às 17 horas
Grupo ÉRICO VERÍSSIMO – Sábado, 8 de Março, das 9 às 17 hs
Grupo GRAÇA ARANHA – Quarta e quinta, 12 e 13 de Março, das 19 às 22,15 hs

Os dois primeiros grupos terão seminários um sábado por mês. O terceiro, sempre na sequência quarta-quinta, uma vês por mês também.

Quatro exercícios de aplicação, subsequentes aos seminários, são escritos pelos alunos (aviso: eles não são pequenos!) e, uma vez que por eles remetidos, são criticados e retornados uma vez por semana, tudo por Internet. Sempre de forma individual e sigilosa, durante as três/quatro semanas seguintes, até a realização do seminário mensal subsequente.

O currículo e a metodologia foram criados por mim nos EUA, com o nome THE PUBLISHABLE WRITER, depois que eu fiz lá, ao longo de 4 anos (2009 a 2013)  49 cursos, oficinas e retiros específicos (para escritores, agentes literários e promoters de livros)  sobre Escrita Criativa (Criative Writing), Técnicas de Escrever, Leitura do Escritor, Screen Play, Travel Writing, Magazine Writing, Non-fiction Writing, Ghost Writing, Speaker Writer (conferencista pago), produção de livros físicos e de e-books, criação de capas, mercado livreiro, marketing e promoção de livros, auto-publicação, plataforma do escritor, redes sociais para escritor, blog e site do escritor, produção e comercialização auto-suficiente de livros e e-books. Com fontes tão competentes e diversas quanto Steve Harrison (RTIR), Brandon Burchard (Expert’s Academy), Writer Digest University, American Writers and Artists Inc (AWAI), Ghotam Workshops (N. York), Kindle Direct Publishing (Amazon) e muitos, muitos outros.

Todo esse know-how estará agora disponível no Brasil, a partir do mês de  Fevereiro, em São Paulo. Mais três cidades, cuja logística esta sendo avaliada, receberão na sequência os módulos I e II do Curso.

Por não se limitar apenas ao lado artístico e técnico da criação do manuscrito, “O ESCRITOR PUBLICÁVEL” será, certamente, o mais completo curso de formação PROFISSIONAL de escritores que o Brasil já viu. Vai retirar do limbo do encalhe dos livros publicados e da desilusão dos manuscritos recusados pelas editoras (ou sequer submetidos) um enorme número de escritores de grande potencial artístico, técnico e mercadológico. Esta é a missão crítica que norteia nosso esforço.

A ênfase do curso é tornar o escritor PUBLICÁVEL, ensinando-o não apenas a escrever bem, mas a escrever muito bem. Só que isso ainda é muito pouco! Não adianta escrever muito bem sobre uma ideia muito ruim. A ênfase é colocada também em fazer publicável o que o escritor produz. Isto e, treiná-lo para saber o que o mercado aceita, precisa e compra, tanto em nível de leitor como em nível de agente literário, editor e casa publicadora (o publisher, que no Brasil tem o confuso nome de editora). E vai mais adiante: ensina o escritor a produzir ele próprio o seu livro do início ao fim, do manuscrito, às revisões, editoração, criação de capa, produção do livro físico e do e-book, auto-publicação sob demanda independente com ínfimo investimento e estoque zero, promoção, marketing e comercialização direta de livros e e-books, com especial destaque para as vendas online. Gera o que chamo de escritor auto-editor.


Em resumo, livra o escritor do velho circuito convencional, de editora, distribuidora e livraria, onde ele tem baixíssimas probabililidades de penetrar, como mostro exaustivamente em meu livro “O FUTURO DO LIVRO IMPRESSO, do Jornal e da Revista, Num Mundo Cada Vez Mais Digital” (IDEL, 2013). O autor só se vincula àqueke circuito se assim o desejar, sob condições muito favoráveis. Eu procuro formar o que nos EUA chamamos de Escritor Híbrido, isto é, aquele que tanto se auto-publica, promove e vende, quanto se deixa publicar através do canal convencional das editoras, distribuidoras e livrarias. (MM)

SEMINÁRIO I - PROGRAMA

Bloco I – 9  às 10:30 hs – Quem vende livros? A PLATAFORMA do escritor
  É possível viver só do que se escreve?
  Rápida abordagem aos gêneros e sub-gêneros literários
  20 mercados diferentes para o escritor
  A PRODUÇÃO DO LIVRO FÍSICO. Custos.

Bloco II – 10:45 a 12:15 – Fatos, mitos e números do mercado de livros no Brasil e no mundo
                                          O futuro do livro impresso, do jornal e da revista
                                          E-book + tablet + smart phone: a cavalaria chegou!

ALMOÇO – 12:15 às 13:45 hs

Bloco III – 14 às 15:30 hs - Leitura de Escritor: Jorge Amado – O Capitão de Longo Curso
                                         O homem é aquilo que come, o escritor é aquilo que lê
                                         Desconstrução do parágrafo amadiano
                                         Reconstrução livre: exercício

Bloco IV – 15:45 às 17 hs – Delineamento e projeto (outline): a estrutura da ideia
                                  
                                        O  PERSONAGEM  I – 1a. parte:  
                                                                          Do psicológico para o físico. Histórico. Linguagem.
                                                                          Densidade, autenticidade, fantasia; falhas.
                                                                          Camadas sucessivas - Exercícios

domingo, 19 de janeiro de 2014

TEUS DESEJOS, MINHAS ORDENS
MILTON MACIEL

Haverá, qual este, olhar que tanto amor traduza
E suspiros tão fundos quais saem do meu peito?
E, no entretanto, é o teu de tão duro aço feito,
Que a mim tu ignoras, narcisística e confusa.

Em vão te dou meu tempo, meu amor e minha fé,
Que fez de ti a deusa que em qualquer lugar cultuo.
E, súplice aos teus pés, me consumo, me destruo,
Definhando no deserto que esta minha vida é.

Perversa, tu me usas e eu te sirvo entre suspiros,
Teus desejos, minhas ordens; teu olhar, minha aflição;
E os teus pensamentos me sujeitam quais vampiros.

Transido em minha dores, procuro por teus olhos
Buscando, a todo instante, teu olhar de aprovação.
Em vão! E eu soçobro, nau partida em mil escolhos...

sábado, 18 de janeiro de 2014

DUAS VEZES NÃO !
MILTON MACIEL

Tirei o revolver do bolso e fiz girar o tambor. Seis balas! Aí olhei outra vez pra garota. Saco! Ela estava tremendo de medo, escondida no meio daquele monte de palha úmida e mal cheirosa. Tentei acalmá-la, estava com receio que ela entrasse em pânico e saísse dali ou, pior, começasse a gritar.

– Fique firme aí. Pode ser que o cara nem venha pra cá.

Mas o desgraçado continuava avançando pelo pasto, diretamente na direção deste galpão onde a gente se meteu. Mais uma vez saquei o revolver do bolso e fiz girar o tambor. Seis balas era tudo o que eu tinha, não havia munição sobressalente. Pensei comigo: É a primeira vez que eu vou atirar num policial. Se eu não acerto o alvo, estou acabado. E a pobre da garota também. Coitada! Difícil acreditar que ela já tenha dezoito anos… Ela olhava o revólver na minha mão com os olhos esbugalhados, fazendo que não com a cabeça, sem parar.

Pra aumentar nossa tensão, o diabo do tira resolveu parar e fumar um cigarro, na sombra de um pé de umbu. Mas não tirava o olho do nosso galpão. O maldito tem certeza que a gente está aqui. E daqui não tem mais lugar algum pra onde correr, ao redor só tem pasto e vaca leiteira. Daqui a um tempinho o filha da puta recomeça a andar e vem direto pra boca do lobo. E aí a bala vai comer solta. Eu tenho seis chances. Ele, provavelmente, tem muito mais, deve ter munição pra recarga, é um profissional. E, por isso mesmo, deve atirar muito melhor do que eu.

Mas agora nada disso interessa. O que interessa é que eu tenho seis balas e uma necessidade premente de tirar esse maldito do caminho. E juro que é até mais por causa da menina do que por minha causa.

Continuei olhando por aquele providencial buraco na madeira carcomida do galpão. Quanto tempo mais eu tinha? Uns três, quatro minutos… Podia acontecer que fossem esses os meus últimos minutos de vida. Mas podia ser que fossem os últimos daquele desgraçado, que tinha saído da estrada no nosso encalço, quando nós deixamos o carro e saímos correndo pelo campo desta fazenda, em direção a este galpão, que é um velho estábulo minúsculo, possivelmente abandonado.

Afinal, não tinha mesmo jeito de o meu carrinho conseguir correr mais que o possante daquele tira. Era questão de minutos e ele nos alcançava. Aí fiquei com medo que ele, ao nos ultrapassar, atirasse em mim e acabasse acertando a garota ao meu lado. Resolvi que a gente tinha que correr e tentar a sorte neste pasto. Tanto ela, quando eu, somos leves e delgados e eu costumo correr meus 10 quilômetros quase todas as manhãs, Já o tira é peso pesado, gordo, barrigudo, não é páreo pra gente. Mas a menina entrou numa de pavor, quando a gente passou por este galpão.  Ela se enfiou aqui pra se esconder, uma tremenda roubada, e não teve jeito de convencê-la a sair. Quando enfim eu estava começando a arrancá-la a pulso daqui, o tira apontou perto das árvores. Tarde demais. Tá na cara que tinha dado pra nos ver entrando aqui.

Então, já que estes podem ser os últimos minutos de vida pra mim, vou aproveitar a trégua e passar famoso o filminho da minha vida. Tomara que o nojento demore bastante pra fumar aquele mata-rato.

O trecho de filme que interessa começa dois anos atrás, somente. Eu estava naquela mediocridade que era minha vida de sempre. Mas alguma coisa então mudou. De repente, o negócio em que eu tinha me aventurado na Internet, começou a dar certo. Quase um ano depois de ter entrado em vários programas afiliados, um deles começou a vender de verdade e eu peguei o jeito, comecei a ganhar dinheiro mesmo e deixei logo o meu emprego no banco. Mas a complicação só começou quando eu aluguei um apartamento maior.

Pouco dias depois de ter mudado pra lá, me livrando de umas tralhas que o morador anterior tinha deixado ali, encontrei uma carta endereçada pro sujeito, um tal de Kleber. Pra você ver como são as coisas. Era só jogar aquela carta no lixo, junto com tudo o mais. Mas não, eu tinha que abrir e ler aquela coisa!

Cara, a carta era coisa braba! Uma garota, uma tal de Nely, escrevia pro tal Kleber dizendo que, com o dinheiro que ele tinha dado pra ela fazer o aborto, ela tinha fugido de casa e alugado um lugarzinho pra ficar no interior. Aí arranjou um trampo, teve a criança num hospital público e estava na pior, sem emprego, sem grana pra ela e pra criança e a família dela não queria ver as duas nem pintadas de ouro.

Achei que, pelo jeito, o tal Kleber não tinha dado a mínima. Na carta havia um número de celular, mas a carta era de dois anos antes. Será que ainda valia? Bom, eu não tinha nada que me meter, mas… Sei lá, quando vi eu estava ligando praquele número. E uma voz quente e gostosa atendeu do outro lado. Era a Nely! Na hora me deu uma vontade maluca de ver como ela era, dá pra acreditar? Falei que o Kleber tinha me dado o número dela e ela ficou muito surpresa. Estava morando em Americana. Sem falar mais nada pra ela, peguei o carro e me toquei prá lá na mesma tarde.

Bem, o que aconteceu? Aconteceu que eu me enrolei todo com a Nely. Foi amor à primeira vista, juro. Fiquei com os quatro pneus arriados quando vi como era linda aquela mulher! Que rosto, que corpo! E ela era super legal. Tinha 24 anos agora e tinha um trabalho até que razoável, dava pra se manter bem e a casa que ela tinha alugado era muito maneira. Mas foi quando eu vi aquele molequinho que eu acabei de me derreter. Ele correu pra mim, pulou no meu colo, passou o resto da tarde me alugando. Voltei no outro dia, à noite. E no sábado. E aí já fiquei num hotel, pra estar disponível no domingo cedo e passear o dia todo com eles. Bom, a coisa pegou fogo. Eu fiquei completamente entregue àqueles dois.

Uma semana depois eu acampei na casa dela com o meu escritório central ou seja, apenas um raquítico netbook e um modenzinho de computador. Isso é, até hoje, tudo o que eu preciso pra ganhar o meu dinheiro, não importa onde eu esteja, desde que tenha Internet. Assumi o aluguel da casa, busquei o resto dos meus bagulhos e entreguei o apartamento de São Paulo.

Cara, eu, de repente, estava casado na prática, feliz pra caramba, adorando aquela gata e adorando a criança, o Paulinho. Ele, um grude comigo. Ela, muito boa de cama. Mas alguma coisa ainda faltava. Com o tempo comecei sacar que a cabeça dela ainda estava muito parada no tal de Kleber. Um dia não aguentei mais e dei um aperto nela. Ela chorou e acabou confessando:

–  Você não merece isso, você é tão bom pra mim e pro Paulinho! Ele é o pai do meu filho, mas o pai verdadeiro pro meu filho é você, você é que está sempre aqui disponível. E você é um amor. Que dó que me dá, eu ainda não consigo tirar aquela desgraçado do meu pensamento, ainda amo aquele homem.

Cara, foi duro! Daquele dia em diante eu não tive mais sossego. Comecei a odiar esse tal de Kleber! Então o cara engravida a menina, não assume o filho, paga pra ela abortar e acaba com a vida dela. Ela tem um pai caretão, perde a família, vem ter o filho sozinha numa cidade estranha, uma barra. E, ainda assim, continua parada na daquele filho da puta?!

E aí a coisa ficou muito pior! O tal Kleber era roqueiro, tinha banda e estava começando a se dar bem, estava faturando e tendo fama agora. Então, numa certa noite,  o desgraçado me aparece na televisão, ia se apresentar em Campinas. A Nely enlouqueceu. Tinha show na sexta e no sábado. Ela chorou e me pediu perdão, mas disse que precisa ir ver o maldito e levar o Paulinho, o meu Paulinho, pro pai conhecer! Fiquei absolutamente emputecido. Não era possível. Já fazia quase dois anos que eu era o homem da Nely e o pai do Paulinho. De repente pinta aquele animal e ela fica ensandecida. Ia se tocar pra Campinas no sábado, quando não trabalhava. Ia levar o meu menininho, ia dar pro maldito, era só o cara estalar os dedos e a trouxa abria as pernas de novo. E era capaz de voltar outra vez prenhe do sujeito.

Eu tinha que fazer alguma coisa! A Nely não me amava, mas eu amava a Nely loucamente. E amava o Paulinho demais, também. Sim, eu tinha que fazer alguma coisa! E tinha que fazer bem feito. Algo definitivo. Foi aí que eu comprei este revólver!

Saí de casa, falei que ia voltar pra São Paulo. Ela se desesperou, sabia que podia passar sem mim, se reconquistasse o tal Kleber, mas sabia que o Paulinho não conseguia mais viver sem mim. Eu também não conseguiria viver sem meu molequinho, mas fingi e dei uma de durão, botei minhas coisas numa mala e fui embora de carro pra São Paulo. Que era pra Campinas, na verdade. Isso foi na quarta feira. Tive dois dias pra reconhecer o lugar do show, consegui entrar ali de dia, era uma casa de shows anexa a um grande restaurante. Apareci sempre de peruca, óculos escuros, roupa de metaleiro. Na sexta pensaram até que eu era um dos músicos de apoio da banda.

Entrei cedo e me escondi num dos camarins, que eu já sabia de antemão que ia ser onde o cara ia se arrumar. O melhor ia ser o do meu inimigo, o vocalista, o bonzão da banda. A peça era uma zona, tinham adaptado aquilo de um depósito de fábrica, tinha pilhas e pilhas de madeiras e de restos de cenários. Me enfiei por ali, era escuro pra burro sem a luz acesa. E esperei que o desgraçado aparecesse.

O show estava marcado pra 11 da noite. O nojento apareceu meia hora depois, atrasado, bêbado ou cheirado, não sei, mas tava tontão. Entrou com uma garotinha bem novinha, coisa de uns treze anos e comeu a garota na marra, ali, trepada em cima da mesa de maquiagem do camarim. Eu tinha feito o meu plano de apagar o sujeito na hora que ele fosse sair do camarim para o palco. Mas quando vi o que ele estava forçando aquela quase criança na marra, embolachando a cara dela e tapando a boca da menina pra ela não gritar, perdi a cabeça. Ia ser agora!!!

No outro dia eu deu tudo no jornal de Campinas:

Os caras ouviram dois tiros, vindos do camarim do cantor. Correram pra lá e encontraram o cara baleado, morrendo, chegou morto no hospital. Bem, desse mal a minha Nely estava curada!

Mas aí eu tinha que correr pra salvar a pele. O diabo do tira gordo já estava na nossa cola. Nossa???

Sim, minha e da outra moça, a que atirou no Kleber. Pois veja como são as coisas, amigo: Ali, naquele enorme camarim, misto de coxia de teatro, além da menina que o boçal violentou, além de mim e do meu revólver engatilhado, tinha uma terceira pessoa. E ela também estava armada. E ela também queria matar o tal Kleber. E ela conseguiu! Foi ela quem atirou à queima roupa, na nuca e nas costas do maldito, bem na hora que ele estava se retirando da criança. Morreu sem saber do que, nem por que.

Mas eu entendi tudo numa fração de segundo: a menina estava visivelmente grávida. Aquele idiota, pelo jeito, nunca usava camisinha! Na hora eu pensei na Nely, que tinha passado por isso também, pensei na garotinha que estava aos berros, apavorada, talvez a caminho de engravidar também. Mas pensei principalmente na menina que tinha feito o serviço pra mim. Graças a ela, eu não era um assassino! 

Ela era! E eu precisava livrar a cara dela. Ela tinha me aliviado dessa e tinha resolvido o meu problema com aquele encosto do diabo. O mínimo que eu tinha que fazer era livrar a cara dela também. Aí, quando eu vi que ela tinha se sentado calmamente numa cadeira, esperando chegar gente pra se entregar, dei-lhe um enorme safanão, peguei a dita cuja pelo pulso e arrastei comigo pela outra entrada, que eu tinha descoberto e limpado pra poder fugir. A garota levou um susto enorme, não tinha me visto ali até então. Eu fiz sinal pra que ela ficasse quieta e corresse comigo.

Bom, eu não tinha nada com o crime dela, era só cair fora e me safar na boa, deixar que a polícia pegasse a garota e pronto. Mas não deu, amigo! Eu fiquei com a menina. Saímos pelos fundos, a coisa estava começando a ferver lá dentro. Eu tirei a peruca e a barba, os óculos escuros, a blusa de metaleiro, enfiei tudo na mochila. Enfiei também, a arma do crime, que eu tinha arrancado da mão dela no camarim. Fiquei irreconhecível, era só eu mesmo outra vez. Mas a mocinha tinha sido vista, evidentemente. Aí apareceu este gordo metido que está terminando de fumar, a 50 metros daqui. Começou a investigar e, em poucos minutos, já estava saindo atrás da garota. Esse abelhudo dos infernos, cujo bucho eu espero encher de chumbo em poucos minutos.

É, meu amigo imaginário, enquanto eu finjo que converso com você, o rolha-de-poço já está no fim do cigarro dele. E, portanto, o filminho da minha vida já está acabando também, Aí vem o letreiro: The End! Dele? Ou meu? É, tá bem na base do quem viver verá. Nossa, preciso acalmar essa menina, ela vai ter um troço, treme como vara verde, vai perder essa criança!

Também, esse jamanta é mesmo um bom policial. Deve ter conseguido várias descrições da mocinha e, quando entrou no bar em frente – porque esse merda tinha que inventar de comprar cigarro justo ali?! – viu a menina comigo. Acho que não ia se tocar, se eu não tivesse feito a asneira de comentar com a garota que aquele cara era da polícia, que eu tinha visto quando ele saiu da viatura no beco. Aí a garota começou a tremer e a dar bandeira. O sujeito marcou a cara dela, lembrou das descrições, roupa, cabelo, etc. e veio pra cima. O jeito foi correr pra fora. E aí eu me desgracei todo. O tira me sacou do jeito que eu sou e eu passei a ser cúmplice pra ele. Eu corri pro meu carro, que eu tinha deixado bem perto dali, o gordão foi pro dele, cantou pneu atrás de nós. Por sorte, em seguida eu peguei uma estrada vicinal, de barro, já no início da zona rural.

E é isso, agora o infeliz está vindo. Agora é ele ou eu. Eu ou ele. Pobre garota, o que vai ser dela, se o cara acaba comigo? Vai pra cadeia, a coitadinha. Quase uma criança também, mais uma iludida que vai se oferecer pra artista, sabe-se lá o que o nojento não prometeu pra ela, pra ela ficar tão emputecida a ponto de arranjar uma arma e partir pra liquidar o maloqüento!

Pronto, o filha da mãe acaba de abrir a porteira e está afastando as vacas. Deixa eu pegar posição de tiro. Bem se vê que ele é uma besta, mesmo: Pra que dar tapa nas coitadinhas das jérseis? Não tem vaquinha menor nem mais fofinha que uma jérsei. Amorosa, inofensiva. Desgraçado, vou te enfiar uma bala nesses cornos em nome dessa vaca que você está chutando. E da bezerrinha também, seu maldito!

O dedo coçou o gatilho, o olho dormiu na mira. O fator surpresa era meu! Mas justo nessa hora o cara fez uma tremenda duma burrada. Bem se via que o idiota não manjava nada de gado leiteiro!

– Não, não, seu ignorante, isso não é uma vaca, sua besta! Não está vendo que é bem maior? Isso é um touro! E é um touro jérsei!!! Cara, se você bater nesse bicho como fez nas vacas…

Bateu!!! O imbecil bateu com toda força na cara do touro. Justo um touro jérsei! Um assassino maluco!…

Eu não falei? Olha ali: o touro imprensou o idiota contra a parede do galpão. Puta, tá dando cada cabeçada no peito dele! E não pára! Esse tira já era!

– Ei, menina, pode sair daí. Chegou a cavalaria, estamos salvos. O tira não tem mais peito, já era, apagou. Morreu na hora. Agora vamos tratar de cair fora. Vamos pro meu carro na estrada de novo. Vamos pra São Paulo.

E estamos aqui os dois, agora, num hotelzinho treme-treme da Barra Funda, já faz uma semana. Um casalzinho novo, pra todos os efeitos.  Mulherzinha novinha, grávida. Todos simpatizam com a gente. Claro que eu respeitei a menina, não ia me aproveitar da desgraça dela.  O nome da garota é Sabrina, está de cinco meses. Do cara que ela despachou, é claro.

A Nely me ligou no celular no domingo, me contou que uma moça desconhecida tinha matado o Kleber, que ela estava livre agora daquela fixação doentia. Me pediu perdão, chorou muito suplicando que eu volte pra casa. O Paulinho não quer nem comer, disse ela. Acredito. Eu também estou morrendo de saudade dele. Expliquei que eu preciso de um tempo, que eu ainda estou muito mexido, muito machucado pelo que ela me fez. Mas que eu ainda a amo e que vou voltar pra casa, sim, só preciso de um tempo. Ela concordou e me fez jurar que eu vou dar uma outra chance pra ela, me garantiu que agora ela vai se entregar de verdade, não só de corpo, mas de alma também.

Que maravilha! Eu preciso de um tempo, mesmo. Mas de um tempo pra dar um jeito na Sabrina. Já disfarcei a bichinha. Bichinha mesmo! Vesti ela de homem, ficou uma bicha completa, isso é muito feminina. Arranjei um documento falso pra ela viajar, vou levar a pobrezinha pro Nordeste. Estou levando um documento falso de mulher também, lá ela deixa de ser o bichinha. Mas também não pode mais ser a Sabrina, que a polícia tá feito louca atrás dessa aí. Vamos de ônibus até Salvador. Vou bancar a coitadinha por lá, ajudar à distância pra ela ter a criança, começar vida nova depois, Deus queira que ache um homem melhor nesta vida. Acho que numa semana resolvo toda a parada pra ela e aí volto correndo pro meu molequinho e pros braços da minha Nely.

Que karma esse meu, de ter que cuidar dos filhos daquele imbecil do Kleber! A propósito, quando eu voltar a Campinas, vou tentar descobrir quem é a garotinha que o marginal violentou aquela noite. Quem sabe não tenho um terceiro filhinho a caminho. Ah, eu adoro crianças!

Como é que eu vou fazer?Ah, eu dou um jeito. Pode ter certeza.

Também, depois que, por duas vezes, eu me preparei pra matar um homem e, na última hora, Deus não deixou - duas vezes não! -  acho que vou fazer as pazes com Ele e Ele vai dar um jeito pra eu arranjar ume esquema e poder cuidar dos meus molequinhos. Com as mãezinhas eu não quero nada, cara, só quero ajudar. Tudo o que eu quero é a minha Nely e o meu Paulinho!

Bom, pensando bem, pra alguma coisa aquele mala do Kleber serviu! Que bom que eu aluguei aquele apartamento onde o piolhento tinha morado antes! E que não acabei nem furado de bala, nem mofando numa cadeia.   FIM !