quarta-feira, 20 de março de 2013


O  CERCO – 30    Novela histórica 
MILTON  MACIEL                                            ÁTILA

Resumo do cap. 29 – Átila concluiu que era impossível manter-se imóvel e ordenou a marcha novamente. 5000 cavaleiros foram mandados na frente, começando a cortar grandes árvores na floresta de Clenchy, em Châlons, para reconstruir a ponte destruída pelos francos. Mas procuraram ficar o mais longe possível da cidadela, onde acreditavam que os francos remanescentes estavam morrendo de peste negra. Os francos estimularam essa crença, voltando a fazer a farsa do arremesso de bonecos do alto das muralhas. Estabeleceu-se, assim, uma paz paradoxal dentro da fortaleza, que os hunos jamais ousarão atacar por medo da peste. Usufruindo dessa paz, Vérica levou Meroveu para os aposentos reais e o cavalgou por horas a fio, deixando o pobre rei completamente derreado no final.

QUEM É ESSE ÁTILA QUE ESTÁ CHEGANDO?

No alvorecer do dia seguinte, antes mesmo do nascer do sol, já Vérica estava entrando no alojamento das sacerdotisas. Alana e Kyna já a esperavam para a frugal refeição da manhã, constituída de chá de ervas, mel e frutas silvestres, todos contribuições generosas da floresta próxima. Vérica sentou sua impressionante massa muscular com uma graça e e uma leveza inimagináveis e abriu o mais amplo sorriso, enquanto tomava nas mãos seu copo de chá quente. 

Quem observasse de fora o silêncio totalL, que era a coisa mais comum entre aquelas três mulheres, pensaria erroneamente que elas eram desconhecidas entre si ou eram conhecidas que não se gostavam. Ou seja, o contrário total da realidade. Em verdade, as três eram, antes de avó, mãe e filha, sacerdotisas celtas da grande Deusa. E percebiam-se os pensamentos, reciprocamente, com a maior naturalidade. Por isso, pouco falavam entre si. Simplesmente, não era necessário. Não que não o fizessem muitas vezes, mas, se não estivessem a fim de fazê-lo, podiam perfeitamente dispensar as palavras faladas.

Por isso, quando Vérica passou a perna musculosa sobre o banco e sentou com uma elegância inesperada, Alana e Kyna caíram na risada. Evidentemente, Vérica fez a mesma coisa. E, ante as três, apareceu a visão do pobre rei dos francos estatelado de barriga para cima no leito, nu e completamente exaurido, tão exausto quanto da primeira vez, quando a própria Deusa fizera uso dele também, além de Vérica.

Kyna terminou de fazer sua refeição em silêncio, como as outras duas aliás, fez que sim com a cabeça para Vérica, apanhou alguns apetrechos, que colocou num cestinho e dirigiu-se à porta. Dali falou pela primeira vez:

– Eu vou tratar dele, criança. Mas ouça bem: Juro pela Deusa que é a última vez que o faço. Você precisa aprender a controlar melhor os seus impulsos e o seu desejo. E, mais do que tudo, a sua força. A força que temos pode ser prejudicial aos humanos normais; e, em alguns casos, até mesmo letal. Ou você se controla da próxima vez, menina, ou não vai ter próxima vez. Eu o proibirei.

Vérica deu uma série de tapas em sua própria testa, como que reconhecendo sua falta. Mais uma vez! Alana retirou-a da mesa antes mesmo que ela concluísse sua refeição e levou-a para a peça contígua, ante a efígie da Deusa. E ali refez toda a enorme lição que tinha dado à filha sobre controle da energia sexual. Minutos depois de terem concluído, Vérica correu para a porta, com a rapidez e a agilidade de sempre, e abriu-a totalmente. A vinte metros dali, apontava a figura graciosa de Hilduara.

Agora as palavras teriam que ser audíveis.

– Bom dia, sacerdotisas da Grande Deusa. Será que incomodo muito se ficar aqui com vocês um pouco? Posso cumprimentar também a sumo-sacerdotisa?

– Minha avó saiu, Hilduara. E você, por mim, pode ficar aqui o tempo que quiser. Até mesmo porque você é querida pela Deusa. E, além disso, é muito querida por mim também.

E, com a sinceridade fulminante que lhe era característica, completou.

– Eu acho você maravilhosa, adoro sua feminilidade, adoro conviver com você. Aliás, se eu fosse homem, já teria desafiado aquele seu futuro marido para um duelo, teria cortado a garganta dele e você não ia conseguir me escapar.

Hilduara corou profundamente e baixou os olhos, encabulada. Vérica e Alana caíram na gargalhada.

– Sossegue, menina. Eu disse: SE eu fosse homem. Felizmente não sou. Da minha parte aquele seu general franco está fora de perigo, portanto. 

Alana entrou na conversa:

– Querida, já que você está aqui, proponho que conversemos um pouco obre Átila e os hunos, que você conheceu tão bem.

– Sim, bem demais, infelizmente.

– Sabe, Hilduara, correm várias lendas a respeito de Átila. Uma delas dizendo que ele é um homem alto, forte e lindíssimo. Um sedutor, que deixa as mulheres enlouquecidas. Mas não é assim que eu o vejo em minha meditações. Eu vejo sempre um mongol típico.

– E é assim mesmo que ele é, Alana. Um homem de estatura mais baixa, forte, atarracado, quadrado pode-se dizer. E mongol, sem dúvida nenhuma. Tem a tez mais escura e os olhos amendoados, puxados, típicos dos orientais. Quanto a atrair as mulheres... Bem, atrai sem dúvida aquelas que se deixam inebriar pelo poder ou pelas riquezas. Essas se colocam a sua disposição e o disputam como cadelas no cio. Por isso mesmo ele tem várias esposas e volta e meia faz mais um casamento. Mas é um mongol típico, é verdade. Portanto, não se pode dizer que seja um homem belo. Mas forte ele é, sem dúvida. E muito corajoso.

– Qual a idade dele? – quis saber Vérica

– Antes que me mandassem em missão para esta fortaleza, dias atrás, os hunos já tinham celebrado seu aniversário de 45 anos, com muitas festas. Seu irmão Bleda era dois anos mais velho que ele. Os dois eram igualmente reis dos hunos, até que Átila o matou.

– Matou seu próprio irmão?! Que horror!

– Sim, Alana. E isso aconteceu exatamente no ano em que meu... dono, aquele maldito romano Ascilatus, me trouxe para os hunos. Cheguei a ver Bleda com vida. Isso foi há exatos seis anos, portanto.

– Ou seja, em 445, já que estamos no ano 451.

– Exatamente, Vérica. Muitos falaram então que, se Átila não o matasse, seria, por sua vez, morto por ele. Não sei se isso merece crédito, não creio que Bleda fosse capaz de fazê-lo. Mas o fato é que Átila reina sozinho desde então.

– E ele é um homem violento?

– Não o considero assim. Apesar de ter matado seu próprio irmão, no restante de suas atitudes, ele tem até que uma certa serenidade. Não trata mal as pessoas subalternas, nem mesmo os prisioneiros. Mas, por outro lado, por sua política de guerra, prefere não fazer prisioneiros, a menos que isso lhe seja estritamente conveniente.

– Sim, conhecemos bem a fama dos hunos, de matarem todos os que capturam, de não fazerem prisioneiros, portanto.

– Olhe, Vérica, durante os seis anos em que vivi entre eles, posso lhes dizer que isso não é uma verdade absoluta. Eles podem poupar pessoas, às vezes milhares delas, desde que ganhem algo com isso. Ou seja, eles não matam por matar, simplesmente, Não são propriamente sanguinários.

 – Estranho, pois é essa exatamente a fama que eles têm.

– Mas é diferente, Alana, como eu lhes disse. Acho que isso é um costume dos mongóis em geral. Eu vi diversas vezes Átila discutir com seus generais, muitas vezes se opondo ao extermínio de certos grupos inimigos. Ele sempre colocava a premissa da vantagem ou desvantagem. Eu não sou estrategista de guerra, mas entendo que a coisa era mais ou menos assim: Se houvesse um ganho material, ele mandaria poupar os vencidos. Caso contrário, se poupá-los fosse redundar em prejuízo, ele autorizava incontinenti o abate.

– E você testemunhou fatos assim também?

– Sim. Por exemplo, agora mesmo, há coisa de dois meses atrás, em Abril, quando suas tropas conquistaram Reims, o representante da cidade, um bispo chamado Nicásio, recusou-se a negociar com Átila, ameaçando-o com a ira do deus dos cristãos. Átila mandou passar todos a fio de espada, a começar pelo próprio bispo. Já em outros lugares, eu assisti exatamente o contrário.

 –Como assim? – perguntou Alana.

– Em Lutécia, por exemplo. Átila recebeu um elevado pagamento em ouro e peças preciosas. Então concordou em não atacar a cidade e, inclusive, em deixar que se falasse que ele havia sido demovido de sua intenção de matar todos os habitantes pela intervenção de uma mulher santa, uma certa Genoveva.

A mesma coisa vi acontecer em Troyes poucos dias antes. O bispo da cidade, chamado Lupus, teve uma longa conversa com Átila em pessoa, acertando o preço do resgate. Átila, que já tinha vencido a batalha, mandou cessar imediatamente as hostilidades e se retirou, poupando a cidade da destruição total pelo fogo e poupando seus habitantes civis. Lupus também se apresentou como o grande herói, dizendo ter tocado o coração do rei dos hunos com sua pregação de amor cristão. Amor! Só se ouro e peças preciosas mudaram de nome!

– Então esse arrasar de todas as cidades e de todos os seus habitantes não é verdade?

– Não, Vérica. Se vocês consultarem a Deusa, verão que isso é, acima de tudo, uma estratégia dos mongóis, para impor, nos povos a serem conquistados, um grande terror. Então o medo os impede de lutar e os leva a fugir, abandonando tudo o que não podem carregar, para proveito dos hunos. Dessa forma eles evitam perder seus próprios soldados e gastar recursos com batalhas. Ou seja, obtêm exatamente o que querem, sem precisar gastar vidas dos seus e o seu próprio dinheiro. É muito eficiente. Da mesma forma, quando uma cidade consegue pagar um altíssimo preço por seu resgate, Átila vai poupá-la com certeza, como eu mesma vi acontecer em Lutécia. É mais uma forma de ter o que ele quer, os despojos, sem ter que sofrer desgaste. Eles chamavam isso de “política do lucro líquido”, se não me engano.

– Só que agora a situação é muito diferente, uma vez que Átila está fugindo pela primeira vez, que eu saiba.

– Não, Vérica, eu não acho que seja exatamente isso. Conhecendo os hunos como conheço, para mim isso é ainda uma questão de estratégia. Acho que Átila pode perfeitamente enfrentar os romanos e seus aliados que o perseguem com o contingente que tem aqui em seu poder, próximo de nós. Só que, se puder evitar as grandes perdas que resultarão desse enfrentamento, ele o fará. Ele sabe que, se puder se reunir com seu outro contingente, aquele que ele espera que esteja votando de Lutécia – e nós esperamos que não – os aliados vão temer o combate e é possível que, por sua vez, eles tratem de evitá-lo.

 – E a que isso levaria, então? – disse Vérica.

– Pelo que eu soube de alguns generais que  tiveram, digamos... ‘convivência’ comigo, na corte de Átila, o que eles costumam fazer em casos assim é propor um grande acordo, um armistício. Pelo que eles me falaram, inúmeras vezes isso deu certo. Em resumo, eu acho que os hunos só atacam quando têm certeza que estão em esmagadora maioria. Então é fácil para eles impor a tática do terror e negociar o resgate das cidades vencidas. Pois se o até o próprio Teodósio aceitou pagar um pesado tributo anual aos hunos, para que eles não atacassem Constantinopla!

– E que o sucessor de Teodósio, Marcelo, se recusa a pagar, desde que assumiu o trono de imperador do Império Romano do Oriente.

– Mas veja, Alana, ele o faz porque sabe que os hunos agora estão atacando a nós, aqui no Império Romano do Ocidente, que Átila trouxe praticamente todo o seu exército para cá, estando, portanto, muito longe de Constantinopla.

– Sim, e Flavio Aécio comentou, em Aurelianum, que Marcelo está usando o tesouro que não entrega mais aos hunos, para reforçar as defesas de Constantinopla, inclusive construindo uma muralha na parte de mar da cidade.

– Por isso tudo, vocês podem ver que a fama de um Átila monstruoso e sanguinário não é exatamente correspondente à verdade. Ele pode ser isso ou não, de acordo com sua conveniência. Uma vez ouvi um general huno comentar que manter inimigos prisioneiros é desperdiçar comida preciosa. Mortos não comem e não dão despesas. Essa é a filosofia deles. Agora, se esses potenciais mortos puderem pagar muito caro por suas vidas, então certamente eles serão poupados, mesmo que possam vir, no futuro, a guerrear outra vez com os hunos. Para eles interessa apenas o resultado imediato. E, se possível, em ouro.

CONTINUA

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