MILTON
MACIEL ÁTILA
Resumo do cap.
29 – Átila
concluiu que era impossível manter-se imóvel e ordenou a marcha novamente. 5000
cavaleiros foram mandados na frente, começando a cortar grandes árvores na
floresta de Clenchy, em Châlons, para reconstruir a ponte destruída pelos
francos. Mas procuraram ficar o mais longe possível da cidadela, onde acreditavam
que os francos remanescentes estavam morrendo de peste negra. Os francos
estimularam essa crença, voltando a fazer a farsa do arremesso de bonecos do
alto das muralhas. Estabeleceu-se, assim, uma paz paradoxal dentro da fortaleza,
que os hunos jamais ousarão atacar por medo da peste. Usufruindo dessa paz,
Vérica levou Meroveu para os aposentos reais e o cavalgou por horas a fio,
deixando o pobre rei completamente derreado no final.
QUEM
É ESSE ÁTILA QUE ESTÁ CHEGANDO?
No alvorecer do
dia seguinte, antes mesmo do nascer do sol, já Vérica estava entrando no
alojamento das sacerdotisas. Alana e Kyna já a esperavam para a frugal refeição
da manhã, constituída de chá de ervas, mel e frutas silvestres, todos
contribuições generosas da floresta próxima. Vérica sentou sua impressionante
massa muscular com uma graça e e uma leveza inimagináveis e abriu o mais amplo
sorriso, enquanto tomava nas mãos seu copo de chá quente.
Quem observasse
de fora o silêncio totalL, que era a coisa mais comum entre aquelas três
mulheres, pensaria erroneamente que elas eram desconhecidas entre si ou eram
conhecidas que não se gostavam. Ou seja, o contrário total da realidade. Em
verdade, as três eram, antes de avó, mãe e filha, sacerdotisas celtas da grande
Deusa. E percebiam-se os pensamentos, reciprocamente, com a maior naturalidade.
Por isso, pouco falavam entre si. Simplesmente, não era necessário. Não que não
o fizessem muitas vezes, mas, se não estivessem a fim de fazê-lo, podiam
perfeitamente dispensar as palavras faladas.
Por isso, quando
Vérica passou a perna musculosa sobre o banco e sentou com uma elegância
inesperada, Alana e Kyna caíram na risada. Evidentemente, Vérica fez a mesma
coisa. E, ante as três, apareceu a visão do pobre rei dos francos estatelado de
barriga para cima no leito, nu e completamente exaurido, tão exausto quanto da
primeira vez, quando a própria Deusa fizera uso dele também, além de Vérica.
Kyna terminou de
fazer sua refeição em silêncio, como as outras duas aliás, fez que sim com a
cabeça para Vérica, apanhou alguns apetrechos, que colocou num cestinho e
dirigiu-se à porta. Dali falou pela primeira vez:
– Eu vou tratar
dele, criança. Mas ouça bem: Juro pela Deusa que é a última vez que o faço.
Você precisa aprender a controlar melhor os seus impulsos e o seu desejo. E,
mais do que tudo, a sua força. A força que temos pode ser prejudicial aos
humanos normais; e, em alguns casos, até mesmo letal. Ou você se controla da
próxima vez, menina, ou não vai ter próxima vez. Eu o proibirei.
Vérica deu uma
série de tapas em sua própria testa, como que reconhecendo sua falta. Mais uma
vez! Alana retirou-a da mesa antes mesmo que ela concluísse sua refeição e
levou-a para a peça contígua, ante a efígie da Deusa. E ali refez toda a enorme
lição que tinha dado à filha sobre controle da energia sexual. Minutos depois
de terem concluído, Vérica correu para a porta, com a rapidez e a agilidade de
sempre, e abriu-a totalmente. A vinte metros dali, apontava a figura graciosa
de Hilduara.
Agora as
palavras teriam que ser audíveis.
– Bom dia,
sacerdotisas da Grande Deusa. Será que incomodo muito se ficar aqui com vocês
um pouco? Posso cumprimentar também a sumo-sacerdotisa?
– Minha avó
saiu, Hilduara. E você, por mim, pode ficar aqui o tempo que quiser. Até mesmo
porque você é querida pela Deusa. E, além disso, é muito querida por mim
também.
E, com a
sinceridade fulminante que lhe era característica, completou.
– Eu acho você
maravilhosa, adoro sua feminilidade, adoro conviver com você. Aliás, se eu
fosse homem, já teria desafiado aquele seu futuro marido para um duelo, teria
cortado a garganta dele e você não ia conseguir me escapar.
Hilduara corou
profundamente e baixou os olhos, encabulada. Vérica e Alana caíram na
gargalhada.
– Sossegue,
menina. Eu disse: SE eu fosse homem.
Felizmente não sou. Da minha parte aquele seu general franco está fora de
perigo, portanto.
Alana entrou na
conversa:
– Querida, já
que você está aqui, proponho que conversemos um pouco obre Átila e os hunos,
que você conheceu tão bem.
– Sim, bem
demais, infelizmente.
– Sabe,
Hilduara, correm várias lendas a respeito de Átila. Uma delas dizendo que ele é
um homem alto, forte e lindíssimo. Um sedutor, que deixa as mulheres
enlouquecidas. Mas não é assim que eu o vejo em minha meditações. Eu vejo
sempre um mongol típico.
– E é assim
mesmo que ele é, Alana. Um homem de estatura mais baixa, forte, atarracado, quadrado
pode-se dizer. E mongol, sem dúvida nenhuma. Tem a tez mais escura e os olhos
amendoados, puxados, típicos dos orientais. Quanto a atrair as mulheres... Bem,
atrai sem dúvida aquelas que se deixam inebriar pelo poder ou pelas riquezas.
Essas se colocam a sua disposição e o disputam como cadelas no cio. Por isso
mesmo ele tem várias esposas e volta e meia faz mais um casamento. Mas é um
mongol típico, é verdade. Portanto, não se pode dizer que seja um homem belo.
Mas forte ele é, sem dúvida. E muito corajoso.
– Qual a idade
dele? – quis saber Vérica
– Antes que me
mandassem em missão para esta fortaleza, dias atrás, os hunos já tinham
celebrado seu aniversário de 45 anos, com muitas festas. Seu irmão Bleda era
dois anos mais velho que ele. Os dois eram igualmente reis dos hunos, até que
Átila o matou.
– Matou seu
próprio irmão?! Que horror!
– Sim, Alana. E
isso aconteceu exatamente no ano em que meu... dono, aquele maldito romano
Ascilatus, me trouxe para os hunos. Cheguei a ver Bleda com vida. Isso foi há
exatos seis anos, portanto.
– Ou seja, em
445, já que estamos no ano 451.
– Exatamente,
Vérica. Muitos falaram então que, se Átila não o matasse, seria, por sua vez,
morto por ele. Não sei se isso merece crédito, não creio que Bleda fosse capaz
de fazê-lo. Mas o fato é que Átila reina sozinho desde então.
– E ele é um
homem violento?
– Não o
considero assim. Apesar de ter matado seu próprio irmão, no restante de suas
atitudes, ele tem até que uma certa serenidade. Não trata mal as pessoas subalternas,
nem mesmo os prisioneiros. Mas, por outro lado, por sua política de guerra,
prefere não fazer prisioneiros, a menos que isso lhe seja estritamente
conveniente.
– Sim,
conhecemos bem a fama dos hunos, de matarem todos os que capturam, de não fazerem
prisioneiros, portanto.
– Olhe, Vérica,
durante os seis anos em que vivi entre eles, posso lhes dizer que isso não é
uma verdade absoluta. Eles podem poupar pessoas, às vezes milhares delas, desde
que ganhem algo com isso. Ou seja, eles não matam por matar, simplesmente, Não
são propriamente sanguinários.
– Estranho, pois é essa exatamente a fama que
eles têm.
– Mas é
diferente, Alana, como eu lhes disse. Acho que isso é um costume dos mongóis em
geral. Eu vi diversas vezes Átila discutir com seus generais, muitas vezes se
opondo ao extermínio de certos grupos inimigos. Ele sempre colocava a premissa
da vantagem ou desvantagem. Eu não sou estrategista de guerra, mas entendo que
a coisa era mais ou menos assim: Se houvesse um ganho material, ele mandaria
poupar os vencidos. Caso contrário, se poupá-los fosse redundar em prejuízo,
ele autorizava incontinenti o abate.
– E você
testemunhou fatos assim também?
– Sim. Por
exemplo, agora mesmo, há coisa de dois meses atrás, em Abril, quando suas
tropas conquistaram Reims, o representante da cidade, um bispo chamado Nicásio,
recusou-se a negociar com Átila, ameaçando-o com a ira do deus dos cristãos.
Átila mandou passar todos a fio de espada, a começar pelo próprio bispo. Já em
outros lugares, eu assisti exatamente o contrário.
–Como assim? – perguntou Alana.
– Em Lutécia,
por exemplo. Átila recebeu um elevado pagamento em ouro e peças preciosas.
Então concordou em não atacar a cidade e, inclusive, em deixar que se falasse
que ele havia sido demovido de sua intenção de matar todos os habitantes pela
intervenção de uma mulher santa, uma certa Genoveva.
A mesma coisa vi
acontecer em Troyes poucos dias antes. O bispo da cidade, chamado Lupus, teve
uma longa conversa com Átila em pessoa, acertando o preço do resgate. Átila,
que já tinha vencido a batalha, mandou cessar imediatamente as hostilidades e
se retirou, poupando a cidade da destruição total pelo fogo e poupando seus
habitantes civis. Lupus também se apresentou como o grande herói, dizendo ter
tocado o coração do rei dos hunos com sua pregação de amor cristão. Amor! Só se
ouro e peças preciosas mudaram de nome!
– Então esse
arrasar de todas as cidades e de todos os seus habitantes não é verdade?
– Não, Vérica.
Se vocês consultarem a Deusa, verão que isso é, acima de tudo, uma estratégia
dos mongóis, para impor, nos povos a serem conquistados, um grande terror. Então
o medo os impede de lutar e os leva a fugir, abandonando tudo o que não podem carregar,
para proveito dos hunos. Dessa forma eles evitam perder seus próprios soldados
e gastar recursos com batalhas. Ou seja, obtêm exatamente o que querem, sem
precisar gastar vidas dos seus e o seu próprio dinheiro. É muito eficiente. Da
mesma forma, quando uma cidade consegue pagar um altíssimo preço por seu
resgate, Átila vai poupá-la com certeza, como eu mesma vi acontecer em Lutécia.
É mais uma forma de ter o que ele quer, os despojos, sem ter que sofrer desgaste.
Eles chamavam isso de “política do lucro
líquido”, se não me engano.
– Só que agora a
situação é muito diferente, uma vez que Átila está fugindo pela primeira vez, que eu saiba.
– Não, Vérica,
eu não acho que seja exatamente isso. Conhecendo os hunos como conheço, para
mim isso é ainda uma questão de estratégia. Acho que Átila pode perfeitamente
enfrentar os romanos e seus aliados que o perseguem com o contingente que tem
aqui em seu poder, próximo de nós. Só que, se puder evitar as grandes perdas
que resultarão desse enfrentamento, ele o fará. Ele sabe que, se puder se
reunir com seu outro contingente, aquele que ele espera que esteja votando de
Lutécia – e nós esperamos que não – os aliados vão temer o combate e é possível
que, por sua vez, eles tratem de evitá-lo.
– E a que isso levaria, então? – disse Vérica.
– Pelo que eu
soube de alguns generais que tiveram,
digamos... ‘convivência’ comigo, na corte de Átila, o que eles costumam fazer
em casos assim é propor um grande acordo, um armistício. Pelo que eles me
falaram, inúmeras vezes isso deu certo. Em resumo, eu acho que os hunos só atacam
quando têm certeza que estão em esmagadora maioria. Então é fácil para eles
impor a tática do terror e negociar o resgate das cidades vencidas. Pois se o
até o próprio Teodósio aceitou pagar um pesado tributo anual aos hunos, para
que eles não atacassem Constantinopla!
– E que o
sucessor de Teodósio, Marcelo, se recusa a pagar, desde que assumiu o trono de
imperador do Império Romano do Oriente.
– Mas veja, Alana,
ele o faz porque sabe que os hunos agora estão atacando a nós, aqui no Império Romano
do Ocidente, que Átila trouxe praticamente todo o seu exército para cá,
estando, portanto, muito longe de Constantinopla.
– Sim, e Flavio
Aécio comentou, em Aurelianum, que Marcelo está usando o tesouro que não
entrega mais aos hunos, para reforçar as defesas de Constantinopla, inclusive
construindo uma muralha na parte de mar da cidade.
– Por isso tudo,
vocês podem ver que a fama de um Átila monstruoso e sanguinário não é
exatamente correspondente à verdade. Ele pode ser isso ou não, de acordo com
sua conveniência. Uma vez ouvi um general huno comentar que manter inimigos
prisioneiros é desperdiçar comida preciosa. Mortos não comem e não dão
despesas. Essa é a filosofia deles. Agora, se esses potenciais mortos puderem
pagar muito caro por suas vidas, então certamente eles serão poupados, mesmo
que possam vir, no futuro, a guerrear outra vez com os hunos. Para eles
interessa apenas o resultado imediato. E, se possível, em ouro.
CONTINUA
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