terça-feira, 26 de março de 2013


O CERCO – 34   Novela histórica
MILTON  MACIEL 

Resumo do cap. 33 – Os hunos de Átila chegam enfim a Châlons e se instalam, junto com seus aliados ostrogodos e gépides, à margem sul do rio Marne e leste da Via Agripa. Dispõem suas dezenas de carroções em linha, fazendo uma barreira defensiva e acampam em frente a eles, já em formação de batalha. Esperam pela chegada dos romanos, visigodos e alanos que os perseguem. Na cidadela, as sacerdotisas comunicam a Meroveu que vão também para o campo de batalha, o que deixa o rei dos francos contrariado. Vérica o ridiculariza e diz para ele “cuidar da sua vida”.


A BATALHA DOS CAMPOS CATALAÚNICOS (mapa grande abaixo)

O alvorecer do dia seguinte, 19 de Junho, iluminou a chegada dos romanos e seus aliados à planície catalaúnica. Conforme seus batedores lhes haviam informado, já encontraram os hunos em formação de combate, em frente a uma longa linha de retaguarda, constituída por dezenas e dezenas de grandes carroças.

Rapidamente os aliados foram tratando de se dispor em campo também, guardando uma prudente distância de cerca de 800 metros em relação ao grupo liderado pelos hunos. Estes, já previamente organizados, poderiam atacar a qualquer momento, mas para os romanos e seus parceiros a coisa era muito mais difícil, pois precisavam tempo para colocar em ordem toda a enorme massa de soldados, cavalos e recursos técnicos de que dispunham. Se os hunos atacassem imediatamente, certamente apanhariam os inimigos em situação de grande desordem.

Mas, misteriosamente, Átila não ordenava o ataque. Parecia esperar até o último esforço  de organização dos inimigos, para só então resolver passar à ação. Os romanos começaram a pensar que, estranhamente a sua postura normal de sempre atacar primeiro, Átila parecia, desta vez, estar esperando que os oponentes atacassem antes, para revidar depois.

Mas o que os romanos não sabiam é que aquela atitude de Átila era causada pela célebre superstição dos hunos. Na noite anterior, ele havia consultado seus áugures. Dois gansos foram sacrificados e os dois adivinhos consultaram o futuro que estava escrito nas entranhas dos animais. O mais velho dos áugures falou:

– Grande rei, pelas voltas nas tripas destes animais, o que lhe posso dizer, com certeza, é que esta batalha terá um vencedor apenas aparente. Por mais mortes que ocorram de lado a lado, o vencedor não poderá se proclamar como tal por muito tempo.

O outro aúgure, mais jovem, completou:

– Meu senhor, eu vejo a mesma coisa também nas tripas. E me atrevo a aconselhá-lo a evitar o combate contra o inimigo nas horas da manhã. Deixe-o para o meio da tarde e os hunos serão favorecidos.

E o adivinho mais velho conclui os augúrios:

 – E vemos que um grande chefe inimigo perecerá na batalha, para alegria de nosso senhor Átila.

Isso foi suficiente para encher Átila de júbilo e boas expectativas: Flávio Aécio, com certeza, havia de ser o chefe inimigo a perecer, pois só isso lhe daria mais alegria do que a morte de Sangiban. Além do que, Sangiban, o cretino rei dos alanos, podia ser tudo menos um grande chefe, era só um borra-botas insignificante e traidor.

Com base nas informações dos dois áugures, Átila determinou que, se os inimigos não desfechassem o ataque antes, então os hunos atacariam às três da tarde. Ardaric, o rei dos gépides, falou-lhe que essa seria uma boa decisão, porque, se a batalha lhes fosse desfavorável, teriam melhores condições de bater em retirada quando anoitecesse. Isso deixou Átila furioso por dentro, pois a idéia de derrota dos hunos era, para ela, uma evidente impossibilidade. Mas nada respondeu a Ardaric.

Ficou, isso sim, esperando que os inimigos acabassem de se dispor em campo. Inicialmente eles formaram dois grandes blocos, com os romanos em um e os visigodos em outro. Os alanos, para contrariedade de Átila, dividiram-se igualmente entre os dois contingentes. Assim seria mais difícil liquidar com aqueles molengas primeiro e ele não poderia saber se o covarde Sangiban estava em um ou em outro grupo.

Passava pouco de meio-dia quando os chefes aliados receberam a visita de uma estranha comitiva. Nela Flávio Aécio, Sangiban e Teodorico reconheceram o jovem Bertrand, que tinham enviado como mensageiro a Meroveu. O próprio rei dos francos salianos o acompanhava, ladeado por seu fiel escudeiro e braço direito, o general Armosic, que eles conheciam também. Junto com os três homens, um verdadeiro fenômeno, algo inimaginável para quem não o pudesse ver com os próprios olhos:

A sacerdotisa Alana, que todos eles conheciam tão bem e a quem deviam a concretização de sua aliança, bem como a energia que os fez correr atrás dos hunos, aparecia entre eles multiplicada por três! Duas outras mulheres, igualmente de roupas brancas típicas das sacerdotisas celtas, igualmente montadas em cavalos e absolutamente idênticas a ela em tudo, fisionomia e formato de corpo, igualmente dotadas de rutilantes cabeleiras rubro-aloiradas, trotavam ao lado de Alana.

– São três! São trigêmeas! Que espetáculo para os olhos!

– Eu largaria todas as batalhas e todas as glórias deste mundo, se me dessem essa três deusas, todas juntinhas, só pra mim.

Essas e muitas outras frases entusiasmadas foram arrancadas dos soldados aliados, à medida que a comitiva do rei franco avançava em direção à tenda de reunião dos chefes. Quando chegaram a ela, todos desmontaram e os homens que estavam mais próximos puderam se regozijar de assistirem àquele espetáculo ímpar de beleza feminina multiplicada ao máximo. Todos sabiam que teriam uma história tão inacreditável para contar no futuro, que seriam inevitavelmente tachados de mentirosos quando ousassem contá-la.

Os três chefes avançaram solícitos, oferecendo a mão para ajudar as moças a descerem dos cavalos. Kyna aceitou feliz o braço de Sangiban, que havia literalmente pulado em sua direção. Alana fez um gesto delicado, mostrando que não precisava de ajuda. Todos ali sabiam que ela era uma exímia cavaleira. Teodorico aproximou-se da terceira moça ruiva e ofereceu-lhe o braço.

Vérica olhou para ele com desdém, fez um gesto indecifrável com a mão e, dando um inesperado e impossível salto para cima, ergueu-se em pé sobre o cavalo com um único movimento, o que deixou todo mundo de queixo caído. Como é que aquela mulher tinha feito aquilo? Apoiando os pés no quê, se não tinha estribos?  Teria que apertar as duas pernas contra a barriga do animal e aí conseguir saltar para cima. Mas com que força?! Era impossível! Mas era possível para ela, pois ela o havia feito.

E, como se isso não fosse o bastante, ela ali, em pé sobre o animal, voltada na direção da cabeça dele, colocou o pé direito à frente ao esquerdo, fez uma mínima e elegante flexão das pernas e...

E saltou para cima e para a frente, dando uma pirueta no ar e indo fincar firmemente os dois pés nos chão, já perfeitamente ereta. E, o mais incrível: de frente para o cavalo, que não se assustou nem se mexeu, como se já estivesse acostumado com isso. Então, ali onde estava, fez uma gentil reverência aos presentes, curvando as pernas e o tronco para a frente, abrindo os braços e as mãos com uma impressionante delicadeza feminina, que nada tinha a ver com a inigualável demonstração de força muscular que acabara de fazer segundos antes.

– Minha filha Vérica, senhores! – ouviram Alana dizer, com evidente satisfação e orgulho.

Obviamente, ninguém acreditou nisso!

– Minha avó, Kyna, senhores! – falou Vérica com evidente satisfação, antegozando a reação de perplexidade de todos, enquanto apontava para a sumo-sacerdotisa.

Muitos caíram na risada, outros chegaram a ficar um pouco indignados com aquela brincadeira das três moças. Mas eram sacerdotisas celtas, as três, não havia dúvida. E tal tipo de mulher não costuma trapacear com a verdade, exceto em condições de estratégia de guerra, contra o inimigo. Flávio Aécio sabia disso muito bem e dirigiu-se a Alana:

– Grande sacerdotisa Alana, receba nossa eterna gratidão e reconhecimento. Se hoje estamos aqui, prestes a derrotar o insidioso inimigo de todos nós, não há a menor dúvida que o devemos a você.

– Ah, sim, Aécio? E o que diria você para a pessoa que me mandou fazer tudo isso, que me mandou para Orléans previamente, só para poder ajudá-los?

– Ah, sacerdotisa, eu beijaria suas mãos e seus pés, eternamente reconhecido.

– Pois então pode fazê-lo já, general Aécio, pois a pessoa está aqui, exatamente à sua frente agora: minha mãe, a sumo-sacerdotisa Kyna.

Houve um ooohhh generalizado, que escapou das bocas de todo mundo ali presente, exceto, é claro, os francos e o jovem visigodo Bertrand. Então era verdade?! Mas como, se aquela mulher magnífica parecia ter a mesma idade das outras duas? Não poderia ser mãe de Alana, muito menos avó (!) da outra sacerdotisa! Mas Flávio Aécio sabia que uma sacerdotisa celta não mente e, imediatamente, apoiando o joelho direito sobre o chão, curvou-se para beijar os pés da sumo-sacerdotisa.

Kyna, porém, o impediu, segurando-o pelo ombro:

– Não precisa fazer nada disso, general. Minha filha não esperava por esta sua frase. Não se sinta obrigado a cumprir sua palavra. Eu o dispenso. Mas, para não deixá-lo de todo impenitente, troco tudo por um rápido ósculo em minha mão.

E adiantou-lhe a mão direita, que Flávio Aécio, ao mesmo tempo em que se levantava, tomou na sua e roçou com um beijo respeitoso:

– Sumo-sacerdotisa Kyna, em nome do Império Romano do Ocidente, receba a eterna gratidão deste humilde general.

Sangiban adiantou-se de imediato e repetiu o mesmo gesto de Aécio:

– E eu, em nome de todos os alanos, apresento-lhe também nossa gratidão eterna.

Ao rei Teodorico, dos visigodos, não restou outra alternativa a não ser repetir o beija-mão a Kyna:

– Senhora, nós, os visigodos, também lhe devemos, e à sua preciosa filha, nosso perpétuo reconhecimento. É uma grande honra conhecê-la e, uma maior ainda, poder beijar sua mão.

Kyna abriu-lhe o mais radioso sorriso e declarou:

– Ah, senhores, vocês são extremamente gentis. Mas, na verdade, esta homenagem que me prestam é equivocada e imerecida. Pois deixe que eu pergunte a você, Flávio Aécio, o que você diria para a pessoa que me mandou dar a ordem que dei a Alana?

Flávio Aécio ficou embasbacado, sem saber o que responder exatamente. Por fim disse:

– Creio que o melhor maneira de demonstrar gratidão a essa pessoa seria fazer o imperador recebê-la e dar-lhe um grande prêmio em ouro.

– Que pena, Aécio. Ela não o aceitaria. Deusas não precisam de ouro.

– Sumo-sacerdotisa, com que então foi a própria grande Deusa celta que determinou que vocês nos ajudassem?!

– Isso mesmo, general.

– Ah, mas isso é a melhor de todas as notícias, senhores! Se nós temos uma aliada como essa, como todo o seu poder, eu não tenho a menor dúvida de que hoje mesmo expulsaremos os hunos para sempre de solo gaulês.

– Certamente o farão, senhores – completou Alana. Com a ajuda da Deusa, porém isso só será possível através de suas três sacerdotisas aqui presentes.

Vérica, então, fez um gesto pedindo a atenção de todos e disse:

– Muito bem, cavalheiros. Nós lhes pedimos que entrem em sua grande tenda conosco e os três cavaleiros que nos acompanham. Devo dizer-lhe que nós já sabemos que Átila atacará daqui a pouco mais de duas horas, às três em ponto. Então temos pouco tempo para discutir certas coisas que demandam atenção e sigilo.

Todos se voltaram para aquela terceira ruiva fulminante, a mais jovem de todas, pelo que ela e as outras haviam falado, embora não o parecesse. E havia algo tão forte e dominador em seu olhar que os chefes simplesmente se encaminharam de imediato para dentro da tenda, sem sequer olharem uns para os outros. Sangiban, mais especificamente, porque não tinha olhos para mais nada que não fosse a figura radiosa de Kyna. Quando passou por ela, à entrada da tenda, falou num murmúrio quase inaudível:

– O tempo não passa para você. Continua sendo a mulher mais adorável da face da Terra.

Kyna o olhou bem dentro dos olhos e retribuiu sua frase com um silêncio que a ele falou muitas coisas, coisas antigas, coisas de amor.

Vérica ouviu o que Sangiban disse e viu o olhar terno, misterioso e diferente de Kyna. Imediatamente interrogou sua mãe:

– O que significa isso, Mãe?

–A história é longa, minha filha. Prometo contar-lhe na primeira oportunidade. Mas vou lhe dar só uma pequena pista: Por que você acha que minha mãe de deu este nome de Alana?

–Nunca pensei nisso mãe. Mas agora... Tem a ver com os alanos?

– Não, meu bem. Tem a ver com UM alano em particular, o rei deles todos, Sangiban. Que foi o grande amor de sua avó.

Vérica não se conteve e soltou um sonoro assobio. Como tudo que vinha dela, saiu tão forte que chamou a atenção de todos, dentro e fora da tenda.

Alana tomou-a rapidamente pelo braço e a fez entrar na tenda, onde já estavam todos os outros:

– Agora não temos tempo. Tenha paciência. Vamos para a reunião. Todo o futuro destas nações se decide AGORA!
 CONTINUA

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