segunda-feira, 25 de março de 2013


O CERCO – 33   Novela histórica 
MILTON  MACIEL

Resumo do cap. 32 – Os 4800 cavaleiros hunos, gépides e alamanos que chegaram à ponte não conseguiram extinguir as chamas por causa do fogo grego. A ponte foi totalmente destruída outra vez. E esses cavaleiros foram duas vezes atacados em seus flancos, em plena escuridão, por uma brigada de cavaleiros visigodos. Perseguindo esses cavaleiros, quando fugiram, os hunos e seus aliados foram atraídos para o inferno das águas do “lago” Châlons. Ali foram atacados com chuvas de Franciscas e de javelins; e, ao tentarem fugir dali, ainda foram atingidos pelos arqueiros francos.  Após sofrerem mais de mil baixas, eles retrocederam rumo ao sul, para juntar-se a Átila.

A CHEGADA DE ÁTILA

Ao amanhecer do novo dia, já os cavaleiros em retirada tinham se encontrado com a retaguarda do exército huno. Ali estava Átila em pessoa, a quem puderam passar todas as informações que traziam, cada uma pior que do que a outra: 1) Os francos estavam morrendo que nem moscas, dentro da fortaleza deles, portanto a região da ponte continuava muito perigosa por causa da peste negra. 2) A ponte sobre o rio Marne, a duras penas reconstruída parcialmente com toras de madeira, tinha sido novamente destruída, queimada pelos visigodos. 3) Os atacantes da ponte e do flanco da brigada huna, não eram francos, pois estes estavam com a peste. Acabava de ser descoberto que eram visigodos.  4) Os hunos e seus aliados, seguindo os visigodos que fugiam, caíram numa armadilha múltipla: foram atraídos para um pantanal, depois atacados com machados de arremesso (franciscas), com javelins e, por último, com flechas. Suas baixas eram estimadas em mais de 1000 homens e respectivos cavalos. 5) Os visigodos tinham pactos com as trevas: havia um cavaleiro do inferno entre os cavaleiros  e vários gigantes entre os arqueiros. 6) Estimavam em cerca de 5000 o contingente de homens que os visigodos deviam ter escondidos ali em Châlons.

Ou seja, quase tudo informação errada! 540 francos e 200 visigodos tinham virado 5000 visigodos na contagem dos hunos em fuga. Os francos nunca tiveram a peste negra nem estavam morrendo às centenas por causa dela. Quanto aos pactos com as trevas, o cavaleiro do inferno sequer era homem, mas a sacerdotisa Alana; E os vários gigantes resumiam-se a uma única moça celta de menos de dezessete anos. De verdadeiro apenas a severidade dos ataques e das baixas que sofreram. E, o mais terrível para os hunos, a segunda destruição da ponte da Via Agripa sobre o Marne.

Levando tudo isso em consideração, os hunos chegaram à conclusão que não havia mais como escapar ao confronto direto com Flávio Aécio e seus aliados. E que, se isso ia acontecer, melhor que fosse em campo plano e com tudo muito bem preparado. Então o mais adequado a fazer seria buscar um bom lugar para ter alguma vantagem estratégica e, aglutinando todas as forças dos hunos e seus aliados, esperar a chegada dos romanos e visigodos. Junto com estes vinham também os alanos do traidor Sangiban, mas a estes os hunos não levavam a sério. Não só eram muito menos numerosos, como não eram guerreiros organizados e bem treinados, como visigodos e romanos.

Mas Átila tinha agora uma questão pessoal para ajustar com Sangiban. Até o último momento, aquele miserável ficara de abrir as passagens de seu reino, inclusive os acessos que permitiriam a tomada fácil de Aurelianum (Orléans), para o exército huno. Isso facilitaria a tomada fácil do sul da Gália e a chegada ao norte do território dos romanos, onde Átila pensava atacar Ravenna, a cidade que era agora a sede do Império do Ocidente e onde ficava o imperador em pessoa. E, obviamente, depois descer até Roma, cercá-la e saquear aquela que era ainda a cidade mais rica do mundo todo.

Contudo, no último instante, Sangiban o traíra, estabelecendo aliança com os romanos de Aécio e os visigodos de Teodorico. Então ficava estabelecido, como questão de honra para os hunos: antes de qualquer combate frontal contra visigodos ou romanos, os hunos haveriam de destruir os alanos primeiro. E Átila, pessoalmente, haveria de cortar a garganta do traiçoeiro Sangiban. Combinaram os chefes hunos, portanto, que disporiam suas forças no campo de batalha, de forma que os hunos ficassem o mais próximo possível dos alanos, a quem combateriam primeiro. Obviamente, seria um rápido reide, pois os alanos tinham um contingente diminuto, eram claramente inferiores tanto tática quanto tecnicamente e, para Átila, deviam ser todos tão covardes quanto seu ordinário rei.

Ficou resolvido que, assim que chegassem à ampla planície que antecede o rio Marne ao sul, a leste da Via Agripa, ali disporiam os seus exércitos. E as pesadas carroças, centenas delas, com os resultados das pilhagens e com os suprimentos e armamentos para as tropas, assim como as pesadas máquinas de guerra, seriam dispostas numa longa linha, paralela e ao longo da margem do rio, formando assim uma barreira natural de proteção contra as flechas e lanças do inimigo, contendo também qualquer tentativa de avanço de cavalaria. Mas isso, evidentemente, era um recurso de previdência extrema. Obviamente não iriam precisar dele, pois haveriam de derrotar os romanos e seus aliados era no campo de batalha, na longa planície de Catalaunum.

Átila ordenou então que a marcha fosse acelerada ao máximo do limite possível para os veículos pesados. O bom é que agora, dali para a frente, não haveria mais subidas na estrada, pois ela começava um lento e suave declive, quase imperceptível, em direção à calha do rio Marne. Com isso seria possível lograr essa aceleração de movimento tão necessária.

Então os hunos e seus aliados gépides e alamanos marcharam mais aceleradamente o resto da manhã e, por volta das três da tarde desembocaram enfim na grande Planície Catalaúnica. Prosseguiram mais alguns quilômetros até estarem mais próximos do rio, porém trataram rapidamente de entrar para a margem esquerda da estrada e invadir a planície de pasto rasteiro tão logo começaram a ficar perigosamente perto da fortaleza dos francos pesteados.

O resto da tarde e até o cair da noite, passaram dispondo as pesadas carroças em uma longa linha paralela ao rio, formando assim sua “muralha” de defesa. Concluído esse trabalho, a maior parte do qual tinha que ser feita pela força dos soldados desmontados, já que era quase impossível manobrar os cavalos nas marchas-a-ré necessárias, Átila ordenou que os homens se dispusessem em frente à linha de carroças, acampando já na mesma ordem que poderia ser usada durante o combate.

Os hunos ficaram no centro, os ostrogodos à sua esquerda e os gépides à sua direita. Quando os inimigos fizessem, por sua vez, a disposição de suas tropas em campo, Átila ordenaria a alteração de posições que fosse necessária, para poder ficar em frente aos malditos alanos, que pretendia arrasar em primeiro lugar, antes de trucidar todos os outros.

E assim, dispostos em ordem, dormiram tranqüilos a longa noite que antecede as grandes batalhas. Escassas sentinelas se revezavam lutando contra o sono e o medo. Este, o medo, nada tinha a ver com a batalha, mas era provocado cada vez que se lembravam de olhar para a fortaleza dos francos apodrecidos, esvaindo-se em febre, peste e secreções purulentas, a pouco mais de um quilômetro dali. 

Na cidadela

Dentro da cidadela de Châlons, enquanto os hunos se preparavam no campo de batalha, a tranquilidade imperava. Mas todos os dirigentes e militares sabiam que não haveria mais vez para essa tranquilidade a partir do dia seguinte. De nada mais lhes serviriam as duas grandes armadilhas da planície, o pantanal e o fosso, ocultos pela vegetação gigante. E nem mesmo as suas muralhas. Quando chegassem os romanos, visigodos e alanos, seria agora a vez deles, os francos da cidadela, deixarem o conforto e a segurança que ela lhes proporcionara até então e irem se colocar, também eles, no campo de batalha, somando seu limitado contingente aos dos demais aliados, na luta contra os invasores.

A mesma coisa deveriam fazer os 200 cavaleiros visigodos, que deixariam a segurança da fortaleza para se colocarem sob o comando de seu rei Teodorico, no campo de batalha da grande planície catalaúnica.

Para Meroveu e Armosic, parecia que agora havia chegado ao fim o tempo de predomínio total das três sacerdotisas celtas sobre o comando e a centralização das decisões táticas de guerra. Agora não seria mais possível o triunfo da tecnologia, da inteligência e da intuição sobre a força. Agora era chegada a vez deles, os brutos: força contra força. E o mais forte venceria!

Quando disseram isso às sacerdotisas, Vérica imediatamente respondeu com sua sonora gargalhada.

– Isso é o que vocês pensam. Veremos. Nos aguardem.

– Como: nos aguardem?

– Ora, general, eu quis dizer isso mesmo: nos aguardem.

– Mas está errado, minha querida. Agora são vocês que terão que nos aguardar. Evidentemente, enquanto nós formos para a planície combater, vocês três ficarão aqui com os civis, na segurança da fortaleza, com a ponte levadiça erguida.

Vérica não conseguia se conter. Explodiu outra vez numa gargalhada ainda mais forte e deu um, sonoro tapa no ombro de Meroveu, que balançou, quase se estatelando no chão, tal era força do “tapinha de brinquedo” da jovem sacerdotisa e guerreira.

– Mas então vocês acham mesmo que nós vamos ficar aqui dentro, como três ratinhos assustados, enquanto a diversão corre solta lá fora, é?

– Diversão?! – exclamou Hilduara – Mas que diversão é essa, Vérica?

– Ora, Hilduara, a diversão de encher aqueles idiotas de flechadas, cortar as gargantas deles, se ousarem chegar perto, ter o prazer de encher de pancadas os que perderam as armas e os fujões. Isso não é o máximo?

– Pelos deuses, minha querida, mas posso crer que é minha doce Vérica quem fala uma coisa dessas! Eu não posso aceitar que você... quer dizer, que vocês três, venham a se expor aos terríveis  perigos de uma batalha campal. Eu sou totalmente contra!

– Ora, Meroveu, e daí? Nós somos celtas, não somos francas, não somos suas súditas e, portanto, não lhe devemos obediência.

– Mas... mas, meu encanto, eu não posso aceitar que você corra perigo. Se algo lhe acontecer, eu... eu nem sei o vou fazer! Sou capaz de me jogar na primeira espada huna para ir atrás de você no outro mundo.

– Arre, Meroveu, que grude! Nem do outro lado?

– Ahnn?

– Não ligue, meu rei. Você ainda não aprendeu a conhecer esta menina? Eu já lhe contei como é esta minha filha, senhor. Se o meu rei não se acostumar com ela, vai ter muito o que penar ainda.

– Mas, sacerdotisa Alana, que posso fazer se não agüento mais a idéia de viver sem ela?

– Tá bom, Meroveu. Então entenda o seguinte: Eu não vou morrer, minha mãe não vai morrer, minha avó não vai morrer. E vamos todas combater, sim.

– E meu Armosic? – perguntou assustada a meiga Hilduara. E em seguida, percebendo sua gafe, remendou a tempo: – E nosso querido rei, é claro! Diga, por favor, que eles ficarão bem, Vérica.

– Todos estarão vivos no fim da batalha, minha querida. Vivos e vitoriosos, isso eu lhe garanto, nós já olhamos na água sagrada do tripé.

– Ah, bendita seja, sacerdotisa Kyna! A senhora não imagina o peso que tirou do meu coração. Agora que eu achei, pela primeira vez, o amor na minha vida, não posso pensar em perdê-lo nunca mais.

Era a primeira vez que Hilduara confessava seu amor por Armosic de forma assim tão veemente. O general sentiu-se subir aos céus:

– Digo-lhe, minha amada, que depois de ouvir essas palavras vindas de você, eu poderia morrer hoje mesmo, agora mesmo, e partiria feliz como nunca.

– Mas o general não vai morrer tão cedo – asseverou uma sorridente Alana.

Como resposta, Hilduara chegou-se a ele, abraçando-o suavemente. E reclinou sua linda cabeça de belos cachos negros sobre o largo peito do espadaúdo franco.

Meroveu encontrou a deixa para falar também:

– Pois é essa mesma a minha situação. Não tenho pejo algum em confessar isso na frente de todos vocês: Eu amo Vérica, é a primeira vez que amo uma mulher em toda a minha vida. E, como Hilduara com Armosic, também eu não posso pensar em perder o amor da minha vida.

– Tá bem, Meroveu. A gente já garantiu que eu não vou morrer, não está bom assim?

– E se fosse o contrário? Se fosse eu a morrer? O que você sentiria?

– Eu?! Ficar sem o meu brinquedinho? Não se atreva!

Meroveu sorriu bestificado, porque não sabia o que mais fazer. Que resposta! Não sabia se ria ou se chorava. Seu ‘brinquedinho”! Olha só o que ela pensava dele. Ele se derretendo ali, abrindo todo seu coração, falando de amor. E ela vinha com aquela frase de mau gosto. Ele a amava, ela o queria como um brinquedinho para cavalgar e se esvair em gozo, deixando-o semi-morto a cada vez. Será que um dia ela seria capaz de sentir por ele uma fração que fosse do amor desesperado que ele nutria por ela?

Kyna resolveu por um fim naquilo tudo.

– Bem, meus caros, agora é uma hora muito grave para tratarmos de coisas do coração. Deixem isso para depois. Neste momento temos que tomar nossas decisões de combate. As nossas são as seguintes, meus amigos. Pode dizer, Vérica.

 – Minha avó vai ficar ao lado de Sangiban, rei dos Alanos. Alana fará o mesmo com os romanos, indo ter com Flávio Aécio. E eu vou para os visigodos, mas não para Teodorico pois guerrearei ao lado de seu filho Torismundo.

– Mas... mas você não pode ao menos ficar com os francos? Comigo, mais exatamente, para que eu possa protegê-la em campo?

Pela terceira vez Vérica caiu na gargalhado, o que deixou Meroveu ainda mais confuso e irritado.

Você me proteger?! Perdeu o juízo de vez, Meroveu? Nossos espíritos guardiães ficam do outro lado da vida, olhando por nós. Os meus, coitados, morro de pena deles! Mas fique tranquilo, você já sabe que eu não vou morrer desta vez. Sossegue e cuide da sua própria vida.

Cuide da sua própria vida! Que será que ela quis dizer com isso? Cuidar da minha vida durante a batalha? Ou cuidar da minha vida somente, o que quer dizer: não se meta na vida dela? Pobre rei Meroveu, dura é a vida dos apaixonados quando não sabem se são correspondidos!
 CONTINUA

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