MILTON MACIEL
A TÁTICA DA MULTIPLICAÇÃO
– Nós vamos
fazer um ataque NOTURNO, meus amigos. Esta noite mesmo. Antes que eles resolvam
ousar algum novo ataque contra nós e tudo resulte em só mais uma escaramuça como
as anteriores. Agora nós precisamos liquidar com eles de vez e botá-los para
correr de verdade.
– Ora,
sacerdotisa, mas por que razão atacar à noite? – perguntou, perplexo, o rei.
– Porque desta
vez vamos usar contra eles a tática da MULTIPLICAÇÃO. Vérica fez para nós um
novo desenho e ela vai passar a explicar a todos em que consiste essa tática da
multiplicação. E por que razão ela só pode ser usada à noite. Kyna vai
ajudá-la. Eu agora lhes peço licença, vou reunir meus cavaleiros visigodos para
combinar com eles a parte que lhes caberá nesta batalha. Os homens já estão
indóceis, loucos para entrar em ação.
Então as
sacerdotisas Kyna e Vérica passaram o resto da manhã explicando e discutindo
todos os detalhes da nova estratégia a ser empregada naquela noite contra os
hunos. Hilduara a tudo acompanhou admirada com a genialidade da idéia e do
plano. E, durante as conversas, foi revelando algumas coisas muito
surpreendentes sobre os hunos, que os francos ignoravam completamente.
Aproximava-se o
horário do almoço quando uma notícia surpreendente chegou à sala de reunião.
Num grande golpe de sorte, quando fazia pouco mais de uma hora que a guarnição
de arqueiros foi se postar à beira da estrada, dois batedores hunos foram
apanhados. Um estava morto, flechado. O outro foi atingido no escudo, mas
perdeu o controle do cavalo e este o derrubou. Foi apanhado com vida e sem
ferimentos. E estava pronto para falar, pelo jeito. Embora muito alto, era um
rapaz ainda muito moço, quase um menino,
– Maravilha! –
exclamou Hilduara. Eu falo perfeitamente o idioma huno e poderei interrogá-lo.
Talvez eu consiga extrair muita coisa dele. Posso tentar?
– Claro,
Hilduara! – Vérica havia se adiantado, como de hábito, não deixando nem o rei,
nem Armosic abrirem a boca. Kyna apenas sorriu para o rei, que estava
apaixonado demais para achar qualquer coisa que sua amada fizesse inadequada.
Armosic acompanhou Hilduara e ambos saíram para interrogar o jovem huno. Os
demais continuaram discutindo as estratégias e como seriam feitos os ensaios e
os treinamentos na parte da tarde, posto que eles incluiriam também uma boa
parte da população civil.
Por ordem do
rei, duas centenas de soldados partiram para a floresta, para cortar madeira
com as quais fizeram várias centenas de tochas novas. Embebidas no óleo
guardado nos paióis, seriam peças fundamentais para o ataque dessa noite.
O prisioneiro
huno
O jovem estava
manietado com sólidas amarras de couro trançado. Fora forçado a manter-se quase
ajoelhado no chão, numa posição extremamente incômoda. Era evidente que ele
sofria calado, tentando muitas vezes movimentar o que conseguisse dos músculos
doloridos das pernas. Tinha o torso desnudo, era magro, alto, com várias
cicatrizes de ferimentos. O rosto, sob os cabelos negros, mostrava um rosto
quase infantil.
Hilduara
estranhou a situação e falou algo a Armosic. Este interpelou o soldado que guardava
o prisioneiro:
– Por que razão
esse homem está mantido assim, nessa posição degradante?
– Porque é um
maldito de um huno, um inimigo cruel. Se fosse ele a me apanhar, já teria
cortado minha garganta.
– Solte-o! –
bradou Hilduara com raiva, surpreendendo Armosic, que jamais a vira com
qualquer expressão que não fosse de doçura extrema.
– O que se passa
com você, Hilduara, para se descontrolar assim?
– É que eu já
passei por esse tipo de humilhação e sofrimento infindáveis vezes em minha vida.
Isso é uma covardia inaceitável e a covardia me deixa sempre furiosa.
Armosic, como
única resposta, ergueu o jovem do chão como se ele fosse uma pluma e sacando seu
punhal, cortou as amarras, deixando o prisioneiro livre. O soldado ficou muito
surpreso e, num gesto automático, sacou a espada.
– Ora, mande
esse homem sair daqui imediatamente, general. Ele me tira do sério.
Armosic fez sinal
para que o homem saísse, no que foi atendido imediatamente.
– Muito bem,
mocinha, já atendi a seu pedido. E agora?
Hilduara
dirigiu-se ao jovem huno, em seu próprio idioma, perguntando-lhe:
– Quem é você? Diga
seu nome e a que companhia huna pertence. E diga sua idade também.
O rapaz, ainda
esfregando os pulsos maltratados pela corda de couro, respondeu em idioma huno:
– Sou Gorthand, da 3ª Companhia de Átila, o
huno. Tenho 16 anos, senhora.
– Notável,
os hunos agora usam crianças na guerra!
– Perdão,
senhora, não sou criança. Sou um homem, já participei de muitos combates, desde
que tinha 14 anos.
Só então
Hilduara percebeu que o menino falava o idioma huno com um sotaque que lhe era
familiar. E perguntou:
– Você é huno?
– Não, senhora,
sou ostrogodo. Mas tenho sido obrigado a lutar a favor dos hunos desde criança.
– Criança eu
insisto em dizer que você ainda é, meu caro – e ela lhe disse isso em idioma
ostrogodo! E foi nesse idioma que o diálogo prosseguiu:
– Senhora! Que surpresa!
Vejo que a senhora é minha compatriota.
– Sim, Gorthand.
Eu deveria ter desconfiado que você era ostrogodo, como eu, ao ouvir seu nome. Mas
seu sotaque me é inconfundível, eu o tinha também, alguns anos atrás, quando comecei
a servir os hunos.
– A senhora também
serviu a esses desgraçados?
– Sim, na condição
de escrava. Aprendi a odiá-los desde então.
– E eu desde que
eles mataram meu pai e meus irmãos mais velhos, quando destruíram nossa aldeia.
Depois me forçaram a seguir com eles como cuidador de cavalos. E eu aceitei
docilmente, porque tento ganhar a confiança deles, até o dia em que eu possa
encontrar o general que atacou minha aldeia e mandou executar minha família. Então
hei de me vingar, nem que seja a última coisa que eu faça em vida.
Hilduara fez uma
interrupção e contou para Armosic o que descobrira até então:
– Esse rapaz me
parece sincero. Sugiro que o levemos à avaliação de uma das sacerdotisas. Se
elas concordarem com minha impressão inicial, então acho que eu tive uma idéia
maravilhosa para ajudar nossos planos desta noite.
Em menos de
quinze minutos já tinham a aprovação de Kyna, que examinou o rapaz por bem
menos que meio minuto:
– Sim, podem
confiar nele. Ele é sincero. Só não o foi quanto à idade. Ele é alto assim, mas
ainda não completou quinze anos. A dor o fez amadurecer muito depressa. A dor e
o ódio, que é um péssimo companheiro para uma alma de criança. Sim, vocês podem
libertá-lo, dar-lhe armas, podem confiar nele como um dos nossos. E sua idéia,
Hilduara, é magnífica. Pode executá-la esta noite. Ah, e interrogue-o a respeito dos
documentos de Átila.
Hilduara,
surpresa, falou as duas coisas ao rapaz. Que ele mentira a idade e que ela
estava certa em dizer que ele era uma criança. E que a sacerdotisa mandara
interrogá-lo a respeito dos documentos de Átila.
O rapaz corou
visivelmente, não por ser apanhado numa mentira, mas porque tinha vergonha de
ser tão jovem a ponto de poder ser considerado uma criança. Não, ele não era,
era um guerreiro! Então respondeu, retirando um pequeno saco amarrado junto ao
corpo, entregando-o à moça ostrogoda.
Hilduara leu o
texto e seu rosto se iluminou:
– É uma ordem
pessoal de Átila, mandando o exército de Lutécia voltar imediatamente para
juntar-se ao dele aqui junto ao rio Marne. Bem onde estamos nós agora!
– Muito bem,
Hilduara. A Deusa está conosco de verdade. Entregou-nos esse passarinho em
pleno vôo e, com ele, o documento que vai fazer Átila perder a guerra.
– Como assim,
sacerdotisa? – quis saber Armosic -- Perder a Guerra?
– Porque nós
vamos mandar esse documento para o exército huno que está próximo de Lutécia,
através desse menino que Átila mesmo escolheu para ser seu mensageiro. Só que
minha neta, com sua incrível habilidade com os pincéis e as substâncias que
apagam escrita, vai mandar uma mensagem com um texto completamente diferente
para eles.
Hilduara saiu à
procura de Vérica e Armosic levou o jovem ostrogodo para o alojamento dos
soldados da muralha norte, dando ordens para que ele fosse tratado como um
aliado de grande importância e para que fosse alimentado e cuidado. Os
cavaleiros visigodos podiam se entender perfeitamente com o jovem ostrogodo,
de forma que este não teve mais barreira de idioma. Prontamente, como cavaleiro
que era, foi logo adotado pelos visigodos, que o gozavam dizendo que ele seria uma espécie de mascote para o grupo, como moleque que era.
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