sexta-feira, 8 de março de 2013


O CERCO  –  22   Novela histórica
MILTON MACIEL

A TÁTICA DA MULTIPLICAÇÃO

– Nós vamos fazer um ataque NOTURNO, meus amigos. Esta noite mesmo. Antes que eles resolvam ousar algum novo ataque contra nós e tudo resulte em só mais uma escaramuça como as anteriores. Agora nós precisamos liquidar com eles de vez e botá-los para correr de verdade.

– Ora, sacerdotisa, mas por que razão atacar à noite? – perguntou, perplexo, o rei.

– Porque desta vez vamos usar contra eles a tática da MULTIPLICAÇÃO. Vérica fez para nós um novo desenho e ela vai passar a explicar a todos em que consiste essa tática da multiplicação. E por que razão ela só pode ser usada à noite. Kyna vai ajudá-la. Eu agora lhes peço licença, vou reunir meus cavaleiros visigodos para combinar com eles a parte que lhes caberá nesta batalha. Os homens já estão indóceis, loucos para entrar em ação.

Então as sacerdotisas Kyna e Vérica passaram o resto da manhã explicando e discutindo todos os detalhes da nova estratégia a ser empregada naquela noite contra os hunos. Hilduara a tudo acompanhou admirada com a genialidade da idéia e do plano. E, durante as conversas, foi revelando algumas coisas muito surpreendentes sobre os hunos, que os francos ignoravam completamente.

Aproximava-se o horário do almoço quando uma notícia surpreendente chegou à sala de reunião. Num grande golpe de sorte, quando fazia pouco mais de uma hora que a guarnição de arqueiros foi se postar à beira da estrada, dois batedores hunos foram apanhados. Um estava morto, flechado. O outro foi atingido no escudo, mas perdeu o controle do cavalo e este o derrubou. Foi apanhado com vida e sem ferimentos. E estava pronto para falar, pelo jeito. Embora muito alto, era um rapaz ainda muito moço, quase um menino,

– Maravilha! – exclamou Hilduara. Eu falo perfeitamente o idioma huno e poderei interrogá-lo. Talvez eu consiga extrair muita coisa dele. Posso tentar?

– Claro, Hilduara! – Vérica havia se adiantado, como de hábito, não deixando nem o rei, nem Armosic abrirem a boca. Kyna apenas sorriu para o rei, que estava apaixonado demais para achar qualquer coisa que sua amada fizesse inadequada. Armosic acompanhou Hilduara e ambos saíram para interrogar o jovem huno. Os demais continuaram discutindo as estratégias e como seriam feitos os ensaios e os treinamentos na parte da tarde, posto que eles incluiriam também uma boa parte da população civil.

Por ordem do rei, duas centenas de soldados partiram para a floresta, para cortar madeira com as quais fizeram várias centenas de tochas novas. Embebidas no óleo guardado nos paióis, seriam peças fundamentais para o ataque dessa noite.
O prisioneiro huno

O jovem estava manietado com sólidas amarras de couro trançado. Fora forçado a manter-se quase ajoelhado no chão, numa posição extremamente incômoda. Era evidente que ele sofria calado, tentando muitas vezes movimentar o que conseguisse dos músculos doloridos das pernas. Tinha o torso desnudo, era magro, alto, com várias cicatrizes de ferimentos. O rosto, sob os cabelos negros, mostrava um rosto quase infantil.

Hilduara estranhou a situação e falou algo a Armosic. Este interpelou o soldado que guardava o prisioneiro:

– Por que razão esse homem está mantido assim, nessa posição degradante?

– Porque é um maldito de um huno, um inimigo cruel. Se fosse ele a me apanhar, já teria cortado minha garganta.

– Solte-o! – bradou Hilduara com raiva, surpreendendo Armosic, que jamais a vira com qualquer expressão que não fosse de doçura extrema.

– O que se passa com você, Hilduara, para se descontrolar assim?

– É que eu já passei por esse tipo de humilhação e sofrimento infindáveis vezes em minha vida. Isso é uma covardia inaceitável e a covardia me deixa sempre furiosa.

Armosic, como única resposta, ergueu o jovem do chão como se ele fosse uma pluma e sacando seu punhal, cortou as amarras, deixando o prisioneiro livre. O soldado ficou muito surpreso e, num gesto automático, sacou a espada.

– Ora, mande esse homem sair daqui imediatamente, general. Ele me tira do sério.

Armosic fez sinal para que o homem saísse, no que foi atendido imediatamente.

– Muito bem, mocinha, já atendi a seu pedido. E agora?

Hilduara dirigiu-se ao jovem huno, em seu próprio idioma, perguntando-lhe:

– Quem é você? Diga seu nome e a que companhia huna pertence. E diga sua idade também.

O rapaz, ainda esfregando os pulsos maltratados pela corda de couro, respondeu em idioma huno:

 – Sou Gorthand, da 3ª Companhia de Átila, o huno. Tenho 16 anos, senhora.

– Notável, os hunos agora usam crianças na guerra!

– Perdão, senhora, não sou criança. Sou um homem, já participei de muitos combates, desde que tinha 14 anos.

Só então Hilduara percebeu que o menino falava o idioma huno com um sotaque que lhe era familiar. E perguntou:

– Você é huno?

– Não, senhora, sou ostrogodo. Mas tenho sido obrigado a lutar a favor dos hunos desde criança.

– Criança eu insisto em dizer que você ainda é, meu caro – e ela lhe disse isso em idioma ostrogodo! E foi nesse idioma que o diálogo prosseguiu:

– Senhora! Que surpresa! Vejo que a senhora é minha compatriota.

– Sim, Gorthand. Eu deveria ter desconfiado que você era ostrogodo, como eu, ao ouvir seu nome. Mas seu sotaque me é inconfundível, eu o tinha também, alguns anos atrás, quando comecei a servir os hunos.

– A senhora também serviu a esses desgraçados?

– Sim, na condição de escrava. Aprendi a odiá-los desde então.

– E eu desde que eles mataram meu pai e meus irmãos mais velhos, quando destruíram nossa aldeia. Depois me forçaram a seguir com eles como cuidador de cavalos. E eu aceitei docilmente, porque tento ganhar a confiança deles, até o dia em que eu possa encontrar o general que atacou minha aldeia e mandou executar minha família. Então hei de me vingar, nem que seja a última coisa que eu faça em vida.

Hilduara fez uma interrupção e contou para Armosic o que descobrira até então:

– Esse rapaz me parece sincero. Sugiro que o levemos à avaliação de uma das sacerdotisas. Se elas concordarem com minha impressão inicial, então acho que eu tive uma idéia maravilhosa para ajudar nossos planos desta noite.

Em menos de quinze minutos já tinham a aprovação de Kyna, que examinou o rapaz por bem menos que meio minuto:

– Sim, podem confiar nele. Ele é sincero. Só não o foi quanto à idade. Ele é alto assim, mas ainda não completou quinze anos. A dor o fez amadurecer muito depressa. A dor e o ódio, que é um péssimo companheiro para uma alma de criança. Sim, vocês podem libertá-lo, dar-lhe armas, podem confiar nele como um dos nossos. E sua idéia, Hilduara, é magnífica. Pode executá-la esta noite. Ah, e interrogue-o a respeito dos documentos de Átila.

Hilduara, surpresa, falou as duas coisas ao rapaz. Que ele mentira a idade e que ela estava certa em dizer que ele era uma criança. E que a sacerdotisa mandara interrogá-lo a respeito dos documentos de Átila.

O rapaz corou visivelmente, não por ser apanhado numa mentira, mas porque tinha vergonha de ser tão jovem a ponto de poder ser considerado uma criança. Não, ele não era, era um guerreiro! Então respondeu, retirando um pequeno saco amarrado junto ao corpo, entregando-o à moça ostrogoda.

Hilduara leu o texto e seu rosto se iluminou:

– É uma ordem pessoal de Átila, mandando o exército de Lutécia voltar imediatamente para juntar-se ao dele aqui junto ao rio Marne. Bem onde estamos nós agora!

– Muito bem, Hilduara. A Deusa está conosco de verdade. Entregou-nos esse passarinho em pleno vôo e, com ele, o documento que vai fazer Átila perder a guerra.

– Como assim, sacerdotisa? – quis saber Armosic -- Perder a Guerra?

– Porque nós vamos mandar esse documento para o exército huno que está próximo de Lutécia, através desse menino que Átila mesmo escolheu para ser seu mensageiro. Só que minha neta, com sua incrível habilidade com os pincéis e as substâncias que apagam escrita, vai mandar uma mensagem com um texto completamente diferente para eles.

Hilduara saiu à procura de Vérica e Armosic levou o jovem ostrogodo para o alojamento dos soldados da muralha norte, dando ordens para que ele fosse tratado como um aliado de grande importância e para que fosse alimentado e cuidado. Os cavaleiros visigodos podiam se entender perfeitamente com o jovem ostrogodo, de forma que este não teve mais barreira de idioma. Prontamente, como cavaleiro que era, foi logo adotado pelos visigodos, que o gozavam dizendo que ele seria uma espécie de mascote para o grupo, como moleque que era.

CONTINUA

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