quinta-feira, 21 de março de 2013


O CERCO – 31   Novela histórica 
MILTON  MACIEL 

A BATALHA DA PONTE DE MADEIRA

Esse foi o segundo e ultimo dia de paz na cidadela de Châlons. Pelo final da tarde chegou, pela floresta, um mensageiro de Flávio Aécio e Teodorico. Ele veio dar a notícia que agora havia apenas um dia de distância entre os dois exércitos. Se os francos em Châlons conseguissem reter o avanço dos hunos por mais um dia, então o encontro seria inevitável. E a batalha, consequentemente.

Durante a noite, enquanto os hunos trabalhavam febrilmente na montagem da nova ponte, o estado maior dos francos se reuniu para deliberar o que fazer e como fazê-lo.

O rei Meroveu foi o primeiro a falar:

– Precisamos impedi-los de terminar a ponte. É o único jeito de obrigá-los a parar e então oferecer combate aos aliados.

– Concordamos plenamente, majestade – disse Kyna. Temos realmente que impedir essa conclusão. E eu sugiro que o façamos esta noite mesmo.

– Esta noite, sacerdotisa? – questionou Armosic – Mas não teremos tempo de nos preparar a contento.

–Já estamos preparados, Armosic! Você já o vera’.  E, além do  mais, não só não podemos perder mais tempo, como o ataque noturno colocará o fator surpresa completamente em nossas mãos.

– Já vejo que as sacerdotisas têm uma nova idéia para nos apresentar – disse Hilduara.

– Sim, mas é apenas uma sugestão, depende de os nossos comandantes militares concordarem com ela ou não.

– Aha! Sei! Bem, da minha parte já está aprovado, independente do que for – afiançou Meroveu, rindo. Armosic sorriu e fez que sim com a cabeça:

– Muito bem, sacerdotisa, diga logo o que temos que fazer. Afinal, a primeira coisa em que você já está certa é que não podemos perder tempo.

– Oh, meu amigos, vocês são muito gentis. Bem, deixem-nos explicar o que pensamos, rapidamente. Alana, por favor.

A sacerdotisa-filha tomou a frente:

– Bem, sabemos que eles são 5000 homens, basicamente cavaleiros acostumados a lutar em campo aberto, como arqueiros montados. De noite, sem poderem enxergar seus alvos, esses arqueiros são de muito pouco valor. Por outro lado, quase todos eles estão acampados a cerca de seis quilômetros da ponte, porque temem a nossa “peste”. Já os homens que estão trabalhando na ponte, à luz de tochas, são os carpinteiros e seus ajudantes, além de, estimamos nós, uns 200 daqueles 5000 guerreiros, que tiveram que vir para fazer força, carregar os pesadíssimos troncos. Certamente todos os que trabalham na ponte agora estão morrendo de medo da peste, já que a ponte fica relativamente perto da nossa cidadela “desgraçada” com a peste.

– Ou seja, Alana, esse grupo da ponte está extremamente vulnerável.

– Isso mesmo, meu rei. Então é esse ponto que nós devemos atacar daqui a pouco, num golpe de surpresa, em que atacamos e fugimos rapidamente.

– Fugimos rapidamente? Mas por quê? Não seria melhor nos entrincheirarmos na ponte e defender essa posição até o último homem?

– Ora, Armosic – interveio Vérica – você está com nobres ímpetos suicidas? Obviamente os outros cavaleiros serão avisados em seu acampamento e imediatamente marcharão em defesa da ponte e dos seus homens que lá estão. E nós só os podemos, escassamente, enfrentar durante a noite. Porque, assim que o sol sair, vai a ser a coisa mais fácil para eles exterminarem a todos nós. Serão quase 5000 homens, e nós, agora, só contamos com nossos 540 francos e os 200 cavaleiros visigodos de Alana.

– Então, nesse caso...

– Nesse caso devemos fazer como eu estava dizendo. Fazemos uma rápida e fulminante incursão noturna e nos retiramos rapidamente para a fortaleza de novo.

– Minha filha tem razão, senhores. Nosso ataque será extremamente facilitado por vários fatores. Número um: os homens que trabalham na ponte não se preocupam nem um pouco com os que possam estar aqui na fortaleza. Eles nos acreditam todos mortos ou moribundos. Número dois: nós conhecemos perfeitamente os caminhos que contornam nosso pantanal, nosso “lago” camuflado. Podemos andar por eles com facilidade, somente com a escassa luz da lua crescente. Número três: podemos nos aproximar muito da ponte sem sermos percebidos, ocultos pela vegetação de alto porte. Número quatro: os cavaleiros que virão em socorro dos atacados na ponte têm muito medo da nossa “peste”, mas mesmo assim é possível que queiram nos perseguir. Então, os cavaleiros visigodos, sob a liderança de Alana, deverão atacar o flanco deles, para se darem a perceber e, em seguida, fugir, atraindo-os para a armadilha do lago. Não esqueçam que esses hunos que chegaram agora, não conhecem nosso pantanal de defesa.

– Brilhante, sacerdotisas! Dessa forma nós podemos impedi-los de concluir a ponte!

– Não, rei Meroveu, dessa forma nós poderíamos só atrasar a construção da ponte, porque iríamos desfalcá-los de seus carpinteiros e mais alguns homens de armas, mas estes os hunos podem rapidamente repor no início da manhã. O que não lhes falta é gente.

– Mas então... De que valem esses ataques relâmpagos, seguidos de fuga.

– Aí é onde eu entro com meu pessoal, Armosic!

– Seu pessoal, Vérica? Que pessoal?

– Meu batalhão de incendiários, general. Minha parte no plano é tocar fogo na ponte. Para isso estarei no ataque de surpresa com meu grupo de apenas 20 homens. São os únicos 20 cavaleiros francos. Cada um deles levará, em seu cavalo, um recipiente com óleo combustível, o que levará nosso estoque a quase zero. Mas isso não importa. O que importa é incendiarmos a madeira da ponte. E, como é tudo madeira bem verde, eu precisarei dar um estímulo extra com o nosso fogo grego. Também usaremos todo o resto do estoque que nos foi possível preparar, depois disso não teremos mais matéria-prima.

Meroveu deu um assobio e olhou Vérica com verdadeira adoração, pensando: Que mulher notável! Quanta coragem, quanta energia! E aquela ‘outra’ energia que ela usa na cama contra mim... E que mulher tão extraordinariamente bonita!

– Falta só uma coisa, senhores: nossa cortina de fumaça.

– E o que significa isso, sacerdotisa Kyna?

– Significa que vamos usar umas duas centenas dos nossos voluntários civis mais corajosos para desviar a atenção dos hunos da ponte. E para atrair seus defensores. Eles sairão com tochas da fortaleza e caminharão pela colina, perpendicularmente em direção à estrada, até que sejam percebidos pelos hunos. Os da ponte, porque os outros, os acampados, não os poderão ver, estão muito distantes. Então eles começarão a tomar o rumo da ponte pela estrada. E isso vai deixar os hunos apavorados.

– E o que eles poderão fazer, então?

– Ora, Hilduara, a única coisa possível: vão mandar seus arqueiros para abaterem os “pesteados” que marcham para a ponte, é óbvio.

– Mas isso será uma chacina, os civis não podem se defender!

– E quem disse que eles precisam, moça! Quem vai ter que se defender serão os arqueiros hunos. Eles vão cair direto na boca do lobo: eu e meus cavaleiros francos estaremos ali, com os civis.

– Notável, Alana! Simplesmente fantástico! Mas esses civis...

– Já os preparamos hoje à tarde, meu rei. Vérica cuidou disso para nós. Todos estão determinados a vencer ou morrer. São homens – e mulheres também – de grande coragem, cujo ânimo não se abate ante o perigo.

– Sim. E minha Mãe já instruiu e preparou seus cavaleiros visigodos também. A esta altura, estão todos prontos, esperando a ordem de montar e partir.

– Pelos deuses! Vocês fizeram tudo isso sem meu conhecimento?! Vérica, inclusive?

Ao que Armosic respondeu:

– Meu caro rei e amigo: Eu poderia ficar indignado por não ter sido comunicado dessas ações, mas já lhe adianto que não fiquei nem um pouquinho, muito pelo contrário. Agora o meu amigo, francamente: em que estado se encontrava esta tarde? Poderia alguém acordá-lo e colocá-lo em condições de decidir e comandar alguma coisa, exceto nossa bondosa sacerdotisa Kyna?

Meroveu corou de vergonha, ainda com cara de bravo. Mas, quando Vérica prorrompeu em sua sonora gargalhada, ele também não se conteve e começou a rir;

– Tem razão, meu amigo. É a segunda vez que, ao invés de ficar agradecido, meu orgulho me leva a ter uma reação descabida. Então aqui vai: Obrigado, adorável Vérica. E desculpe este rei vaidoso e cabeça-dura. Peço desculpa a todas as sacerdotisas, aliás.

Como única resposta, Vérica aproximou-se dele e deu-lhe um pouco decoros beliscão no traseiro, sussurrando:

– Se você vai ser desculpado, depende muito de você mais tarde...

E isso foi o suficiente para tirar a cabeça do rei completamente fora do planejamento da batalha e levá-la para o recôndito de seu alojamento e de sua cama. Armosic tomou então a iniciativa:

– Bem, pelo que vejo, só falta agora eu colocar minha infantaria em forma e explicar-lhes o que vamos fazer. Então, com sua licença, meu rei, minha senhoras, já vou indo. Preciso de apenas uma hora e já os terei prontos e embalados para lutar.

– Perfeito, Armosic. Vá, sim, está mais do que autorizado.

Obviamente a ordem partiu da futura rainha dos francos, que já reinava absoluta sobre o rei deles.

A batalha acontece

Exatamente uma hora depois, a ponte levadiça foi abaixada e a estranha marcha noturna começou. Devagar, homens e mulheres civis, acompanhando o passo lento dos cavalos dos visigodos e de Almarak, montada por Alana, foram os primeiros a sair. Tomaram o rumo oeste, direto para a estrada romana, deslocando-se pela colina, praticamente na mesma linha que passava pela muralha norte. Quando tinham andado cerca de 500 metros, todos os 200 civis acenderam suas tochas. Cada homem e cada mulher levava duas tochas, mas acendeu somente uma. Os cavaleiros visigodos, por sua vez, não levavam tocha alguma.

Uma outra procissão, essa formada pelos 540 militares, 80 dos quais arqueiros, de Meroveu e Armosic, saiu da fortaleza tomando o rumo sul. Com eles ia Vérica, montada, carregando seu suprimento de fogo grego e os vinte cavaleiros francos, que transportavam os recipientes de óleo combustível. Após transporem a ponte escondida, que permitia ultrapassar o grande fosso da planície, embicaram para a esquerda e começaram a transpor lentamente a estreita faixa de terra que era a única passagem de terra firme dentro do “lago” Châlons, pelo lado esquerdo. Depois dessa travessia, estando bem próximos e margeando o rio Marne, começaram a andar mais depressa, para entrar em fase com o grupo que avançava para a estrada, com as tochas já acesas.

Nesse momento, os hunos que trabalhavam na ponte viram a estranha fileira de luzes que avançava para a Via Agripa. Sem dúvida, aquelas criaturas haviam saído da fortaleza. Eram, portanto, os poucos sobreviventes da cidadela, os únicos que ainda não haviam morrido. Em desespero, vários hunos puderam contar as tochas acesas e a contagem dava sempre algo em torno de duzentas. Então duzentos malditos pesteados, moribundos certamente, marchavam pela colina em direção à estrada. Certamente haviam se esgotado todos os víveres de que dispunham. Os hunos gelaram, entraram em pânico e todos largaram o trabalho.

O líder dos 200 soldados colocou-os todos de prontidão. Esperariam até que os imundos francos doentes chegassem à estrada. Se tomassem o rumo sul, então poderiam se tranquilizar e voltar ao trabalho na ponte. Mas, se tomassem o rumo norte, caminhando direto para a ponte, então eles avançariam e os exterminariam a todos com suas flechas. Isso era certamente muito arriscado, a proximidade necessária para acertá-los exporia os hunos ao contágio. Mas muito pior seria não fazer nada e deixar aqueles malditos pesteados se aproximarem da ponte.

Mas, quando o grupo de luzes chegou à estrada, ele simplesmente estacionou. Nem sul, nem norte. A tensão entre os hunos subia insuportavelmente a cada minuto que passava. Então, depois de um tempo de espera terrível, de cerca de 15 minutos, a procissão de luzes voltou a se mover. E vinha para o norte, direto para a ponte, direto para eles, os hunos.

O líder deu a ordem de atacar imediatamente. Obviamente iam fazer aquela carga contra aquele reduzido bando de miseráveis contaminados a pé mesmo. Inútil, desnecessário preparar os cavalos para um ataque na escuridão. Como os andarilhos também marchavam em direção a eles, em menos de cinco minutos já estariam suficientemente próximos para lançar sobre os francos do inferno uma chuva tão intensa de flechas que cada um deles cairia varado por um monte delas. Aí era rezar aos deuses para que a inevitável proximidade não os fizesse também vítimas da peste negra.

Quando os arqueiros hunos já estavam bem perto do ponto de tiro, a procissão dos francos se deteve. Certamente, tinham pressentido a presença dos hunos. As tochas ficaram rigorosamente imóveis por algum tempo. Então, não agüentando mais a pressão, os hunos começaram a atirar sua flechas em direção às tochas, sem nem mesmo esperar a ordem do chefe. Gritos de dor e desespero confirmavam que as setas estavam acertando seus alvos no escuro e cumprindo sua missão. Cada arqueiro descarregou totalmente sua aljava, atirando todas as flechas que tinha. Todos queriam estar seguros de que haviam acabado de vez com os perigosos doentes.

Quando o ataque com flechas cessou, os hunos, sem ousarem avançar mais um metro  e conferir se havia algum franco ainda com vida, voltaram-se em direção à ponte e começaram a caminhar externando expressões de júbilo e frases de preocupação. Os malditos estavam mortos! Mas e eles, os matadores, não teriam acaso entrado em contato com a maldita peste negra?

Tinham andado cerca de trinta metros quando, das barrancas da colina esquerda, cai-lhes em cima um furioso batalhão de cavaleiros, que saltavam sobre a estrada, ora esmagando com seus cavalos, ora acertando com sua longas espadas os hunos apavorados. A pé e sem flechas nas aljavas, sem armas de combate em terra, sem escudos, aqueles duzentos homens foram vítimas fáceis dos atacantes e, em menos de dez minutos, estavam todos fora de combate. A ponte acabara de ficar sem defensores militares.

Se os hunos tivessem tido coragem de ver o resultado de seu ataque, minutos antes, teriam ficado embasbacados ao ver que, ao invés de homens doentes, ali só existia cerca de 200 tochas fincadas no chão. Os gritos tinham sido dados dos dois lados da estrada, para onde os civis haviam corrido, logo após cravarem no chão da estrada suas tochas acesas. Nenhum 

CONTINUA 

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