MILTON MACIEL
A BATALHA DA PONTE DE MADEIRA
Esse foi o segundo e ultimo dia de paz na
cidadela de Châlons. Pelo final da tarde chegou, pela floresta, um mensageiro
de Flávio Aécio e Teodorico. Ele veio dar a notícia que agora havia apenas um
dia de distância entre os dois exércitos. Se os francos em Châlons conseguissem
reter o avanço dos hunos por mais um dia, então o encontro seria inevitável. E
a batalha, consequentemente.
Durante a noite, enquanto os hunos
trabalhavam febrilmente na montagem da nova ponte, o estado maior dos francos
se reuniu para deliberar o que fazer e como fazê-lo.
O rei Meroveu foi o primeiro a falar:
– Precisamos impedi-los de terminar a
ponte. É o único jeito de obrigá-los a parar e então oferecer combate aos
aliados.
– Concordamos plenamente, majestade – disse
Kyna. Temos realmente que impedir essa conclusão. E eu sugiro que o façamos esta
noite mesmo.
– Esta noite, sacerdotisa? – questionou
Armosic – Mas não teremos tempo de nos preparar a contento.
–Já estamos preparados, Armosic! Você já o
vera’. E, além do mais, não só não podemos perder mais tempo,
como o ataque noturno colocará o fator surpresa completamente em nossas mãos.
– Já vejo que as sacerdotisas têm uma nova
idéia para nos apresentar – disse Hilduara.
– Sim, mas é apenas uma sugestão, depende
de os nossos comandantes militares concordarem com ela ou não.
– Aha! Sei! Bem, da minha parte já está
aprovado, independente do que for – afiançou Meroveu, rindo. Armosic sorriu e
fez que sim com a cabeça:
– Muito bem, sacerdotisa, diga logo o que
temos que fazer. Afinal, a primeira coisa em que você já está certa é que não
podemos perder tempo.
– Oh, meu amigos, vocês são muito gentis.
Bem, deixem-nos explicar o que pensamos, rapidamente. Alana, por favor.
A sacerdotisa-filha tomou a frente:
– Bem, sabemos que eles são 5000 homens,
basicamente cavaleiros acostumados a lutar em campo aberto, como arqueiros
montados. De noite, sem poderem enxergar seus alvos, esses arqueiros são de
muito pouco valor. Por outro lado, quase todos eles estão acampados a cerca de
seis quilômetros da ponte, porque temem a nossa “peste”. Já os homens que estão
trabalhando na ponte, à luz de tochas, são os carpinteiros e seus ajudantes,
além de, estimamos nós, uns 200 daqueles 5000 guerreiros, que tiveram que vir
para fazer força, carregar os pesadíssimos troncos. Certamente todos os que
trabalham na ponte agora estão morrendo de medo da peste, já que a ponte fica
relativamente perto da nossa cidadela “desgraçada” com a peste.
– Ou seja, Alana, esse grupo da ponte está
extremamente vulnerável.
– Isso mesmo, meu rei. Então é esse ponto
que nós devemos atacar daqui a pouco, num golpe de surpresa, em que atacamos e
fugimos rapidamente.
– Fugimos rapidamente? Mas por quê? Não
seria melhor nos entrincheirarmos na ponte e defender essa posição até o último
homem?
– Ora, Armosic – interveio Vérica – você
está com nobres ímpetos suicidas? Obviamente os outros cavaleiros serão
avisados em seu acampamento e imediatamente marcharão em defesa da ponte e dos
seus homens que lá estão. E nós só os podemos, escassamente, enfrentar durante
a noite. Porque, assim que o sol sair, vai a ser a coisa mais fácil para eles
exterminarem a todos nós. Serão quase 5000 homens, e nós, agora, só contamos
com nossos 540 francos e os 200 cavaleiros visigodos de Alana.
– Então, nesse caso...
– Nesse caso devemos fazer como eu estava
dizendo. Fazemos uma rápida e fulminante incursão noturna e nos retiramos
rapidamente para a fortaleza de novo.
– Minha filha tem razão, senhores. Nosso
ataque será extremamente facilitado por vários fatores. Número um: os homens
que trabalham na ponte não se preocupam nem um pouco com os que possam estar
aqui na fortaleza. Eles nos acreditam todos mortos ou moribundos. Número dois:
nós conhecemos perfeitamente os caminhos que contornam nosso pantanal, nosso
“lago” camuflado. Podemos andar por eles com facilidade, somente com a escassa
luz da lua crescente. Número três: podemos nos aproximar muito da ponte sem
sermos percebidos, ocultos pela vegetação de alto porte. Número quatro: os
cavaleiros que virão em socorro dos atacados na ponte têm muito medo da nossa
“peste”, mas mesmo assim é possível que queiram nos perseguir. Então, os
cavaleiros visigodos, sob a liderança de Alana, deverão atacar o flanco deles,
para se darem a perceber e, em seguida, fugir, atraindo-os para a armadilha do
lago. Não esqueçam que esses hunos que chegaram agora, não conhecem nosso
pantanal de defesa.
– Brilhante, sacerdotisas! Dessa forma nós
podemos impedi-los de concluir a ponte!
– Não, rei Meroveu, dessa forma nós poderíamos
só atrasar a construção da ponte, porque iríamos desfalcá-los de seus
carpinteiros e mais alguns homens de armas, mas estes os hunos podem
rapidamente repor no início da manhã. O que não lhes falta é gente.
– Mas então... De que valem esses ataques
relâmpagos, seguidos de fuga.
– Aí é onde eu entro com meu pessoal,
Armosic!
– Seu pessoal, Vérica? Que pessoal?
– Meu batalhão de incendiários, general.
Minha parte no plano é tocar fogo na ponte. Para isso estarei no ataque de
surpresa com meu grupo de apenas 20 homens. São os únicos 20 cavaleiros
francos. Cada um deles levará, em seu cavalo, um recipiente com óleo
combustível, o que levará nosso estoque a quase zero. Mas isso não importa. O
que importa é incendiarmos a madeira da ponte. E, como é tudo madeira bem
verde, eu precisarei dar um estímulo extra com o nosso fogo grego. Também usaremos todo o resto do estoque que nos foi
possível preparar, depois disso não teremos mais matéria-prima.
Meroveu deu um assobio e olhou Vérica com
verdadeira adoração, pensando: Que mulher notável! Quanta coragem, quanta
energia! E aquela ‘outra’ energia que ela usa na cama contra mim... E que
mulher tão extraordinariamente bonita!
– Falta só uma coisa, senhores: nossa
cortina de fumaça.
– E o que significa isso, sacerdotisa Kyna?
– Significa que vamos usar umas duas
centenas dos nossos voluntários civis mais corajosos para desviar a atenção dos
hunos da ponte. E para atrair seus defensores. Eles sairão com tochas da
fortaleza e caminharão pela colina, perpendicularmente em direção à estrada,
até que sejam percebidos pelos hunos. Os da ponte, porque os outros, os
acampados, não os poderão ver, estão muito distantes. Então eles começarão a
tomar o rumo da ponte pela estrada. E isso vai deixar os hunos apavorados.
– E o que eles poderão fazer, então?
– Ora, Hilduara, a única coisa possível:
vão mandar seus arqueiros para abaterem os “pesteados” que marcham para a
ponte, é óbvio.
– Mas isso será uma chacina, os civis não
podem se defender!
– E quem disse que eles precisam, moça!
Quem vai ter que se defender serão os arqueiros hunos. Eles vão cair direto na
boca do lobo: eu e meus cavaleiros francos estaremos ali, com os civis.
– Notável, Alana! Simplesmente fantástico!
Mas esses civis...
– Já os preparamos hoje à tarde, meu rei.
Vérica cuidou disso para nós. Todos estão determinados a vencer ou morrer. São
homens – e mulheres também – de grande coragem, cujo ânimo não se abate ante o
perigo.
– Sim. E minha Mãe já instruiu e preparou
seus cavaleiros visigodos também. A esta altura, estão todos prontos, esperando
a ordem de montar e partir.
– Pelos deuses! Vocês fizeram tudo isso sem
meu conhecimento?! Vérica, inclusive?
Ao que Armosic respondeu:
– Meu caro rei e amigo: Eu poderia ficar indignado por não ter sido
comunicado dessas ações, mas já lhe adianto que não fiquei nem um pouquinho,
muito pelo contrário. Agora o meu amigo, francamente: em que estado se
encontrava esta tarde? Poderia alguém acordá-lo e colocá-lo em condições de
decidir e comandar alguma coisa, exceto nossa bondosa sacerdotisa Kyna?
Meroveu corou de vergonha, ainda com cara
de bravo. Mas, quando Vérica prorrompeu em sua sonora gargalhada, ele também
não se conteve e começou a rir;
– Tem razão, meu amigo. É a segunda vez que,
ao invés de ficar agradecido, meu orgulho me leva a ter uma reação descabida.
Então aqui vai: Obrigado, adorável Vérica. E desculpe este rei vaidoso e
cabeça-dura. Peço desculpa a todas as sacerdotisas, aliás.
Como única resposta, Vérica aproximou-se
dele e deu-lhe um pouco decoros beliscão no traseiro, sussurrando:
– Se você vai ser desculpado, depende muito
de você mais tarde...
E isso foi o suficiente para tirar a cabeça
do rei completamente fora do planejamento da batalha e levá-la para o recôndito
de seu alojamento e de sua cama. Armosic tomou então a iniciativa:
– Bem, pelo que vejo, só falta agora eu
colocar minha infantaria em forma e explicar-lhes o que vamos fazer. Então, com
sua licença, meu rei, minha senhoras, já vou indo. Preciso de apenas uma hora e
já os terei prontos e embalados para lutar.
– Perfeito, Armosic. Vá, sim, está mais do
que autorizado.
Obviamente a ordem partiu da futura rainha
dos francos, que já reinava absoluta sobre o rei deles.
A
batalha acontece
Exatamente uma hora depois, a ponte
levadiça foi abaixada e a estranha marcha noturna começou. Devagar, homens e
mulheres civis, acompanhando o passo lento dos cavalos dos visigodos e de
Almarak, montada por Alana, foram os primeiros a sair. Tomaram o rumo oeste,
direto para a estrada romana, deslocando-se pela colina, praticamente na mesma
linha que passava pela muralha norte. Quando tinham andado cerca de 500 metros,
todos os 200 civis acenderam suas tochas. Cada homem e cada mulher levava duas
tochas, mas acendeu somente uma. Os cavaleiros visigodos, por sua vez, não
levavam tocha alguma.
Uma outra procissão, essa formada pelos 540
militares, 80 dos quais arqueiros, de Meroveu e Armosic, saiu da fortaleza
tomando o rumo sul. Com eles ia Vérica, montada, carregando seu suprimento de fogo grego e os vinte cavaleiros
francos, que transportavam os recipientes de óleo combustível. Após transporem
a ponte escondida, que permitia ultrapassar o grande fosso da planície,
embicaram para a esquerda e começaram a transpor lentamente a estreita faixa de
terra que era a única passagem de terra firme dentro do “lago” Châlons, pelo
lado esquerdo. Depois dessa travessia, estando bem próximos e margeando o rio
Marne, começaram a andar mais depressa, para entrar em fase com o grupo que
avançava para a estrada, com as tochas já acesas.
Nesse momento, os hunos que trabalhavam na
ponte viram a estranha fileira de luzes que avançava para a Via Agripa. Sem
dúvida, aquelas criaturas haviam saído da fortaleza. Eram, portanto, os poucos
sobreviventes da cidadela, os únicos que ainda não haviam morrido. Em
desespero, vários hunos puderam contar as tochas acesas e a contagem dava
sempre algo em torno de duzentas. Então duzentos malditos pesteados, moribundos
certamente, marchavam pela colina em direção à estrada. Certamente haviam se
esgotado todos os víveres de que dispunham. Os hunos gelaram, entraram em
pânico e todos largaram o trabalho.
O líder dos 200 soldados colocou-os todos
de prontidão. Esperariam até que os imundos francos doentes chegassem à
estrada. Se tomassem o rumo sul, então poderiam se tranquilizar e voltar ao
trabalho na ponte. Mas, se tomassem o rumo norte, caminhando direto para a
ponte, então eles avançariam e os exterminariam a todos com suas flechas. Isso
era certamente muito arriscado, a proximidade necessária para acertá-los exporia
os hunos ao contágio. Mas muito pior seria não fazer nada e deixar aqueles
malditos pesteados se aproximarem da ponte.
Mas, quando o grupo de luzes chegou à
estrada, ele simplesmente estacionou. Nem sul, nem norte. A tensão entre os
hunos subia insuportavelmente a cada minuto que passava. Então, depois de um tempo
de espera terrível, de cerca de 15 minutos, a procissão de luzes voltou a se
mover. E vinha para o norte, direto para a ponte, direto para eles, os hunos.
O líder deu a ordem de atacar
imediatamente. Obviamente iam fazer aquela carga contra aquele reduzido bando
de miseráveis contaminados a pé mesmo. Inútil, desnecessário preparar os cavalos
para um ataque na escuridão. Como os andarilhos também marchavam em direção a
eles, em menos de cinco minutos já estariam suficientemente próximos para lançar
sobre os francos do inferno uma chuva tão intensa de flechas que cada um deles
cairia varado por um monte delas. Aí era rezar aos deuses para que a inevitável
proximidade não os fizesse também vítimas da peste negra.
Quando os arqueiros hunos já estavam bem
perto do ponto de tiro, a procissão dos francos se deteve. Certamente, tinham
pressentido a presença dos hunos. As tochas ficaram rigorosamente imóveis por
algum tempo. Então, não agüentando mais a pressão, os hunos começaram a atirar
sua flechas em direção às tochas, sem nem mesmo esperar a ordem do chefe. Gritos
de dor e desespero confirmavam que as setas estavam acertando seus alvos no
escuro e cumprindo sua missão. Cada arqueiro descarregou totalmente sua aljava,
atirando todas as flechas que tinha. Todos queriam estar seguros de que haviam
acabado de vez com os perigosos doentes.
Quando o ataque com flechas cessou, os
hunos, sem ousarem avançar mais um metro e conferir se havia algum franco ainda com
vida, voltaram-se em direção à ponte e começaram a caminhar externando expressões
de júbilo e frases de preocupação. Os malditos estavam mortos! Mas e eles, os
matadores, não teriam acaso entrado em contato com a maldita peste negra?
Tinham andado cerca de trinta metros
quando, das barrancas da colina esquerda, cai-lhes em cima um furioso batalhão
de cavaleiros, que saltavam sobre a estrada, ora esmagando com seus cavalos,
ora acertando com sua longas espadas os hunos apavorados. A pé e sem flechas
nas aljavas, sem armas de combate em terra, sem escudos, aqueles duzentos
homens foram vítimas fáceis dos atacantes e, em menos de dez minutos, estavam
todos fora de combate. A ponte acabara de ficar sem defensores militares.
CONTINUA
Nenhum comentário:
Postar um comentário