quinta-feira, 7 de março de 2013


O CERCO - 21   Novela histórica 
MILTON  MACIEL                            ALANA

Resumo do cap. 20 – A Deusa levantou a interdição que punia a jovem sacerdotisa Vérica, a qual compreendeu a gravidade dos erros que havia cometido. Mas sua enérgica ação, em defesa de sua avó, levou a Deusa a perdoá-la totalmente. Kyna e Alana revelaram à moça, então, aquilo que lhe estava reservado para o futuro: Que ela, ainda que continue sendo sacerdotisa da Deusa a vida inteira, será também rainha dos francos. E que o filho do filho que dará a Meroveu, será o grande rei que unificará todos os francos e dará início a uma grande nação européia que lhes herdará o nome. O rei Meroveu, a instâncias de Kyna, perdoa imediatamente Hilduara, especialmente quando sabe que seu grande amigo e general, Armosic, pretende desposá-la. Nesse entretempo, Átila e seu enorme exército se aproximam perigosamente de Châlons.

AS HORAS DO AMOR. AS HORAS DA GUERRA.

As horas seguintes a esses eventos foram horas de grande felicidade entre as muralhas de Châlons. Vérica foi para os aposentos de Meroveu e eles fizeram amor por horas a fio, enquanto o rei dos francos resistiu. Depois, a contragosto, a moça deixou-o dormir, enquanto ela mesma ficou acordada, incapaz de sentir sono, devorando-o com os olhos e ardendo de desejo. A lição dada por Alana surtira muito pouco efeito... Vérica era intensa demais em tudo. E nas maravilhas do sexo, recém-descobertas e liberadas totalmente pra ela, estava sendo ainda mais.

Exatamente o contrário se deu com Armosic. Ele recebeu de seu rei a concessão de um aposento só para ele, para que pudesse levar consigo sua prometida Linduara. Só que eles não fizeram amor. Armosic era bem mais velho e experiente que Meroveu, já tinha conseguido dominar o desejo imaturo e incontido dos jovens. Para ele, muito mais importante era conquistar a confiança e o amor de sua delicada companheira. Explicou a ela o que pensava:

– Minha querida, eu quero que você saiba que eu vou respeitá-la não só hoje, mas todos os dias da minha vida. Jamais a forçarei a nada e jamais imporei minha vontade a você. Sei que você tem todas as razões do mundo para ter dos homens as piores impressões e lembranças. Sei que eles sempre trataram você como se fosse, além de uma escrava, um mero objeto para satisfazer seus desejos e luxúrias, sua aberrações também, com toda certeza. Tendo conhecido a alma gentil de Geodac como conheci, posso imaginar os horríveis sofrimentos por que você passou todos esses anos. Por isso mesmo, quero que você entenda o seguinte, desde o nosso começo: apesar de admirar sua beleza e desejá-la, eu jamais vou me insinuar sexualmente para você, que dirá forçá-la a qualquer coisa. E nós só faremos amor o dia em que você sentir que me ama o suficiente para sentir vontade de fazer amor comigo.

Hilduara limitava-se a olhá-lo com surpresa, encantamento e gratidão:

– Ah, meu senhor, se soubesse como suas palavras me fazem bem!...

– Por favor, Linduara, não me chame nunca mais de “meu senhor”. Eu não sou e jamais serei seu dono. Mesmo depois que casarmos, você será sempre livre para ir e vir. E, se quiser ir embora um dia, eu aceitarei sua vontade e juro que protegerei sua segurança e seu futuro.

Linduara não pôde mais resistir: Desfez-s em lágrimas, enquanto beijava, agradecida, as duas mãos daquele homem tão rijo e musculoso, tão forte e másculo, um autêntico guerreiro, o último de quem ela poderia esperar tanta delicadeza e consideração. E, mais ainda, que gostasse de criaturas exatamente como ela, que não eram mulheres completas, ao menos fisicamente. Era felicidade demais e ela mentalmente começou a agradecer à Deusa sem parar, por tanta bondade, por tanta felicidade, por tê-la libertado para sempre do monstro Ascilatus, por ter lhe dado o milagre chamado Armosic. E dizer que, apenas algumas horas atrás, tudo o que desejava era morrer rapidamente nas mãos dos francos!...

Os dois adormeceram abraçados. E Armosic manteve sua palavra por todo o tempo em que sentiu que era prematuro para Linduara que tivessem relação física. E essa foi, de fato, a coisa mais certa que podia fazer, por que isso lhe garantiu, com o passar do tempo, que conquistasse para sempre o amor incondicional, o respeito e a devoção daquela criatura em tudo diferente, em tudo excepcional, em tudo superior.

O Conselho de guerra

Mas houve pouco tempo para o amor, porque os tempos eram de guerra. Na manhã do dia seguinte à grande noite de amor do rei e do general, ambos se reuniram com as sacerdotisas e Linduara. A “corte’ de Meroveu ia celebrar mais um conselho de guerra. A iniciativa da convocação havia partido de Alana, que foi a primeira a falar, a instâncias do rei, que reconhecia perfeitamente a superioridade das sacerdotisas e não se sentia nem um pouco diminuído com isso:

– Muito bem, sendo rápida e objetiva: temos agora não uma, mas duas frentes de guerra a considerar. Além dos nossos sitiantes, do outro lado do rio, temos o avanço constante das numerosíssimas forças do próprio Átila. Pelos meus cálculos, em mais dois dias sua vanguarda estará chegando aqui. São a elite de sua cavalaria, a terrível cavalaria huna de grandes arqueiros. Creio que eles são algo entre três mil a oito mil homens. É evidente que nós não podemos enfrentá-los em campo aberto.

– Sim, uma clara impossibilidade – observou Armosic – Mas, se vierem a nós, nós não fugiremos, saberemos enfrentá-los e vender muito caro nossa derrota.

O rei Meroveu balançou a cabeça afirmativamente. Alana prosseguiu:

– Bem, nós achamos que Átila não é ainda um problema para nós. Há um contingente inimigo pior a combater, os que estão acampados do outro lado do rio.

– Esses são mais importantes que o próprio Átila? Como assim, sacerdotisa Alana?

– Rei Meroveu, o combate contra a vanguarda de Átila é inevitável. E ele deve ser dar daqui a dois ou três dias. E, nessa hora, tudo o que nós não precisamos é que os hunos acampados nos ataquem pela retaguarda. Então precisamos definir uma estratégia para nos livrarmos deles agora, imediatamente.

– Sim, Alana tem razão – concordou Armosic. Precisamos pensar numa forma de anular primeiro esses atacantes, antes que cheguem os outros. A sacerdotisa, que convocou esta reunião em caráter de urgência, tem algum plano ou idéia?

– Sim, tenho. E já discuti o assunto com minha mãe e irmã, nossa sumo-sacerdotisa Kyna. E chegamos a uma conclusão: é preciso atacar os hunos que estão acampados do outro lado do rio. Para isso, podemos contar com o reforço dos 200 cavaleiros visigodos que eu trouxe comigo, que são homens altamente treinados e de uma competência militar a toda prova.

– Sim. Mas como vamos enfrentá-los lá, em campo aberto, se temos apenas pouco mais de 500 homens, entre infantaria e arqueiros, mais esses 200 visigodos a cavalo. Exatamente a metade do contingente que os hunos devem ter disponíveis no acampamento deles, já computadas todas as baixas que lhes infligimos nos últimos dias.

– Um para dois, nada mau! – disse, sorrindo animada, a bela Vérica. Considerando que, no começo, eles eram dois mil e nós não tínhamos os 200 visigodos, a proporção era de um para quatro. Agora a coisa está muito melhor. Vamos lá e botamos esses frouxos para correr.

– Calma, minha filha, não é preciso se precipitar e enfrentar a cavalaria huna em campo aberto. Em nenhum momento devemos fazê-lo, seja com que grupo huno for.

Nesse exato momento um oficial pediu licença e se aproximou:

– Senhor rei, temos a presença de um batedor dos aliados, que acaba de chegar, vindo através da floresta sul. Ele tem uma mensagem urgente do rei Teodorico e de Flávio Aécio para o senhor. O homem está aqui do lado de fora. Posso fazê-lo entrar?

 –Sim, faça que entre imediatamente!

O homem que entrou estava cansado, sujo e todo cheio de cortes produzidos pelos obstáculos da floresta. Ele saudou a todos os presentes igualmente, sem deter-se especialmente em Meroveu. Mas, quando falou, foi ao rei que se dirigiu:

– Senhor, vim galopando pela estrada principal tanto quanto meu pobre cavalo conseguiu agüentar. Depois tivemos que nos embrenhar na floresta, para poder contornar os hunos que avançam devagar. E, ao procurar a saída da floresta para esta cidadela, devo confessar que me perdi e vaguei aflito por mais de seis horas, perdendo um tempo precioso que não podia perder. Felizmente, com o cair da noite, consegui me orientar de novo pelas estrelas, tendo que subir para isso numa árvore especialmente alta. Então retomei a marcha, sem dormir, e pude chegar à cidadela no início desta manhã. Tenho uma pressa terrível, trago-lhe uma mensagem do rei Teodorico e de Flávio Aécio.

– Muito bem, homem de valor! Saberei recompensá-lo por seu imenso esforço, meu jovem. Mas, antes de nos falar sobre a mensagem, peço-lhe que me dê sua avaliação sobre as posições das forças de Átila e seus aliados. Quanto tempo, acredita você, que levarão para alcançarem Châlons?

– Na velocidade limitada com que avançam, meu senhor, eu diria que algo entre dois dias ou dois dias e meio.

– Hum, é exatamente a estimativa feita por nossas sacerdotisas, estas magníficas criaturas que se encontram aqui conosco.

Só então o homem deu-se o direito de olhar com mais atenção para os lados e para as outras pessoas. E ficou chocado ao ver três mulheres tão parecidas entre si e usando roupas praticamente iguais. E eram mulheres, além disso, todas jovens e muito bonitas. Como era bonita também aquela mulher alta, de fartos cabelos negros encaracolados a caírem-lhe abundantes sobre os ombros. Se o rei não tivesse falado que elas eram sacerdotisas, seguiria seu primeiro impulso de pensar que eram, todas as quatro, mulheres de um harém do próprio rei. Pelo menos, se ele um dia fosse rei, a primeira coisa que faria seria constituir um alentado harém com algumas dezenas de mulheres fascinantes como aquelas. Mas se o rei as identificava como sacerdotisas, então deveriam efetivamente ser sacerdotisas todas as quatro. Por isso mesmo, tratou de desviar os olhos delas e manter a maior compostura possível.

– Muito bem, então fale-nos agora da mensagem do rei dos visigodos e do chefe romano.

O batedor retirou de sob as roupas um pedaço de pergaminho bastante amassado e o estendeu ao rei.

– Aqui está senhor. Mas, se me permite, posso recitá-la inteira, pois eu tive que decorá-la. Caso o inimigo me cercasse, eu teria que fazer o pergaminho sumir e manter a mensagem intacta em minha memória.

– Pois fale, então. Será mais prático, assim todo mundo saberá ao mesmo tempo o teor da mensagem.

– Pois bem, senhor. A mensagem diz o seguinte:

“Do general Flavio Aécio e do rei Teodorico I, dos visigodos, para o rei Meroveu, dos francos salianos, e sua guarnição da cidadela de Châlons:

Estimado rei de todos os francos salianos:

Estamos em perseguição ao exército de Átila, que se desloca em direção ao norte pela estrada principal, em busca do local de travessia do rio Marne. Isso o leva diretamente ao seu encontro em Châlons.  É imperioso que nós não o deixemos ultrapassar sua posição, rei Meroveu. Todos sabemos que há um outro exército de hunos e ostrogodos que marcha neste exato momento em direção a Lutécia (Paris). Se Átila conseguir reunir esses dois corpos de invasores, não haverá força alguma em toda Gália que lhes possa fazer frente.

Nós, os aliados, temos no momento uma certa superioridade numérica em relação ao contingente de tropas que está com Átila. Nós lhe demos combate em frente a Aurelianum (Orléans), dias atrás, e Átila, ao sentir que poderia amargar uma derrota mais séria, preferiu bater em retirada para o norte, com o plano de reforçar seu contingente de guerreiros e nos fazer face em condições de superioridade.

No momento, Átila e seus homens nos levam uma boa vantagem em distância, pois saíram muito antes do que nós. A verdade é que nos demoramos demais a discutir inutilmente entre nós e, enquanto isso, o inimigo se evadia. Mas, graças a uma pessoa aliada de grande importância e saber, uma sacerdotisa celta, nós despertamos da nossa letargia e começamos a marcha acelerada em direção aos hunos e seus aliados.

Contudo nosso receio é que não os consigamos alcançar antes que eles possam mandar batedores velozes em busca de sua tropa que avança para Lutécia. Se isso acontecer, é óbvio que aquele destacamento mudará imediatamente de rumo e virá se juntar aos efetivos de Átila.

Portanto, senhor rei, o que lhe pedimos é algo terrivelmente difícil e que pode custar sua preciosa vida e as de seus valentes guerreiros. Nossa vitória só será possível se apanharmos Átila sem os seus reforços. E, para que isso seja possível, duas coisas precisam ser feitas pelos valentes soldados francos e seu rei:

A primeira é impedir que qualquer batedor huno consiga atravessar o Marne e se dirija pelo caminho de Reims até Lutécia.

A segunda e mais terrível, é tentar impedir, de todas as maneiras, o avanço dos hunos. Isso significa, rei Meroveu, que precisamos que seus soldados precisam obrigar os hunos a parar – a se deter o suficiente para que nossas tropas encontrem sua retaguarda e comecemos a destruir esse exército huno de sul para o norte.

Sabemos que o que lhe pedimos é uma coisa ainda mais difícil do que a missão de Leônidas, o espartano, em Termópilas. Mas confiamos na coragem e no patriotismo de todos os francos, que saberão resistir e lutar por seu território sagrado.”

– Esta é a mensagem que decorei, majestade. Acabo de recitá-la completa, sem nada esquecer.

– Muito bem, meu leal mensageiro, sua missão está cumprida. Determino aos homens da guarda que o trouxeram aqui que o levem para banhar-se, comer e descansar. Amanhã vamos nos ver novamente e quero recompensá-lo com algo à altura do seu feito e dos riscos que correu.

– Meu senhor, há uma única recompensa que almejo: que me deixe ficar aqui e combater ao lado dos seus homens. Essa honra já será suficiente para mim. Sempre nutri por Leônidas o maior respeito e admiração e para mim seria uma imensa honra poder morrer em batalha retardando o avanço dos hunos inimigos.

Todos ficaram admiradíssimos com o senso de patriotismo e com a coragem do rapaz, abrindo mão de qualquer vantagem pessoal e trocando-a por uma morte praticamente certa.

– Como é seu nome, rapaz? – quis saber Armosic

– Bertrand, senhor. Sou franco, mas neto de burgúndios.

O rei Meroveu procurou instintivamente os olhos de Kyna. E viu que ela aprovava o rapaz.

– Muito bem, Bertrand. Se esse é o seu desejo, eu o concedo de imediato. E reconheço sua grande coragem, ao pedir para ficar conosco, que vamos correr tão grande risco, ao invés de retornar à sua unidade de origem, que terá uma posição bem melhor, por ser uma das que vai atacar os hunos. Nós, ao contrário, vamos ser atacados por eles, vamos ser menos de mil criaturas tentando barrar o avanço de milhares de hunos.

– E conseguiremos fazê-lo, senhor, tenho certeza! Agora, peço licença para me retirar e aceitar seu gentil oferecimento de hospitalidade. Mal me agüento de sono e de fome. Mas preciso de um bom banho antes. Obrigado, senhores. Até a vista, senhoras.

O rei falou a seus homens que levassem Bertrand e o tratassem com cuidado e deferência. E aproveitou para ordenar que uma pequena guarnição passasse a ficar de guarda imediatamente dos dois lados da estrada principal, a cerca de uns 200 metros antes do rio. Com a instrução de interceptar todo e qualquer cavaleiro que tentasse passar por ali. Embora talvez um pouco prematuro, já poderia se tratar de um ou mais batedores hunos, em demanda do exército de Lutécia.

Quando Bertrand saiu, por algum tempo todos ficaram comentando seu gesto de extremos desprendimento e coragem.

O general Armosic ainda comentou:

– Eis um homem de verdade, a quem será uma honra comandar!

E então voltaram-se todos para Alana, que estava começando a apresentar sua idéia de ataque aos hunos acampados ao norte do rio, quando foi interrompida pela chegada de Bertrand.
CONTINUA

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