segunda-feira, 18 de março de 2013


O CERCO – 28   Novela histórica
MILTON MACIEL

Resumo do cap. 27 – Os hunos se dividem em dois grupos. 2000 homens acampam junto à ponte destruída. 1600 rumam para a cidadela e a invadem, sem encontrar os francos lá. Então bebem todo o vinho que foi deixado pelos francos em fuga. Mas o vinho está contaminado por um preparado das sacerdotisas, que produz em todos os sintomas da peste negra. Quando estes 1600 homens, desesperados, tentam fugir da cidadela, são recebidos a flechadas por seus companheiros, que temem ser contaminados com a peste. Segue-se uma brutal batalha de hunos contra hunos, que destroça a elite da cavalaria de Átila. Mas os sobreviventes vêm que os sintomas da peste negra desaparecem rapidamente. Era tudo um truque das sacerdotisas. Hilduara pergunta a Kyna como isso pode acontecer. Ela lhe responde: “Quais são os menores animais que você conhece?”

– Acho que os piolhos. Ou as pulgas. Lembro que alguns são tão pequenos que mal conseguimos vê-los – foi a resposta de Hilduara.

– Sim – falou Kyna – E há mosquitos menores ainda. Pois aí está o segredo, minha cara. Há animais ainda muito menores do que esses, animais de que os homens não têm conhecimento porque não os podem ver. Mas nós, sacerdotisas da Deusa, sabemos muito bem que a realidade inúmeras vezes não pode ser percebida com os olhos. Então nós temos uma sabedoria antiga, muito antiga e muito secreta, que nos diz que há ordens de animais tão pequenos que não se pode ver jamais. Pois bem, os que vocês viram em ação hoje são tão minúsculos que vivem dentro das pulgas dos ratos.

– Céus, sacerdotisa! Isso é possível?

– Sim, esses seres são pequenos demais para que os possamos ver. Mas isso não impede que eles existam, vivam nos corpos de animais muito pequenos, como as pulgas, e se multipliquem em quantidades impressionantes lá dentro. Pois bem, esses seres incrivelmente pequenos podem passar para dentro dos organismos dos humanos também. E, ao fazê-lo, provocam a peste negra e matam milhões de criaturas.

– Mas então porque que o líquido amarelo só provoca os sintomas da peste, mas não a peste em si?

–  Porque a letalidade dos animais invisíveis depende de que rato estamos falando. Cada tipo de rato tem pulgas de natureza diferente. E um deles, que nós criamos nos templos em diminutas quantidades, nos fornece as pulgas inócuas de que precisamos. Com os restos mortais delas, nós fazemos um pó cheio dos animais invisíveis que vivem nelas. Na ausência de água, esses animaizinhos hibernam, ficam adormecidos por anos, até que sejam expostos à água de novo. E aí crescem muito rapidamente se, ao invés de pulgas vivas, nós lhes dermos um alimento mais adequado. Que é o que é o líquido amarelo que levamos horas preparando. Ele é o alimento para os animaizinhos se multiplicarem milhares de vezes em poucas horas. E sabemos que eles se multiplicam maravilhosamente bem dentro do vinho também, razão pela qual ele é o veículo ideal para propagar os bichinhos invisíveis entre os humanos.

– E o que acontece com eles então, quando dentro dos humanos?

– Ah, minha querida Hilduara, eles morrem em poucas horas. Acho que é porque os seres humanos são tão maus que são piores que as pulgas dos ratos.

– Vérica! – exclamou horrorizada a moça ostrogoda – Nós somos tão ruins assim?

– Você não, meu docinho. Você é boa, muito boa, a ponto de a Deusa querer tomá-la para que a sirva.

– Você acha mesmo? Eu?...

– Você sim, criatura! Deixe de ser pessimista e valorize-se. Aliás, eu nem preciso achar nada, uma vez que a Deusa acha. E ponto final!

Hilduara ergueu os belos olhos para o infinito e ficou pensando. Eu, boa!... Seria mesmo possível? E os bichinhos que ninguém pode ver? Que coisa extraordinária. Como uma sacerdotisa sabe coisas. Kyna é tão sábia! Como eu gostaria de ser como ela um dia!...

Os hunos e a “peste”

No acampamento huno à beira da ponte destruída, a situação era dramática. 2600 homens tinham sido eliminados pela luta fratricida. Dos 1000 que sobraram, mais de 600 haviam fugido para a retaguarda, com medo dos companheiros que tinham contraído a peste na fortaleza. Estes cavaleiros só viram os primeiros momentos da grande batalha de hunos contra hunos e logo fugiram, não tinham idéia do que tinha acontecido de fato. Mas levaram as novidades ao grupo de 5000 cavaleiros que já estavam acampados mais ao sul, esperando novas notícias do grupo que chegara à ponte. Quando estas chegaram, foram as piores possíveis.

A fortaleza dos francos estava contaminada pela terrível peste negra! Os hunos que a ocuparam ficaram todos doentes, de uma forma desconhecida até então, porque quase instantânea. Tentando fugir da tenebrosa cidadela e abrir caminho para a sobrevivência, foram recebidos como inimigos por seus companheiros sadios e uma terrível batalha havia começado entre eles, cujo resultado final ninguém ali sabia, nem mesmo os 600 homens que haviam fugido de lá.

Os chefes deste segundo acampamento huno foram também inexoráveis com os 600 fugitivos do acampamento da ponte. Mandaram-nos fazer meia volta e acampar em um lugar a pelos menos 10 quilômetros dali. Quando eles partiram, levando uma quantidade limitada de água e víveres, os homens do grande acampamento começaram a mostrar sinais de intranqüilidade e medo. E se aqueles 600 desgraçados lhes tivessem trazido a peste? Muitos homens começaram a sentir sintomas da doença e corriam a se esconder, temerosos que lhes surgissem as horríveis manchas negras pelo corpo e face e os denunciasse. Todos começaram a olhar para os outros desconfiados, cada um procurando no outro as marcas da doença maldita.

Emissários foram mandados a Átila, que vinha com a retaguarda, dando conta da terrível situação em Châlons. Átila ordenou uma parada geral imediata e reuniu-se com seus generais e conselheiros. Era certo que os romanos, visigodos e seus aliados marchavam em seu encalço. Mas a dianteira que levavam era suficientemente grande para que atravessassem a ponte sobre o Marne e em seguida a destruíssem. Até que os romanos e seus aliados conseguissem reconstruí-la, já Átila teria recebido o reforço dos 25000 homens que estavam praticamente às portas de Lutécia, e para quem ele enviara dois mensageiros de confiança e de grande competência, ordenando-lhes que retrocedessem e pegassem a Via Agripa para o sul, em direção ao Marne.

As notícias que chegavam agora eram extremamente graves e preocupantes. A ponte fora destruída pelos francos, logo a passagem do Marne com os carroções  de víveres, armas e outros materiais, além dos carroções com os resultados das pilhagens, saques e resgates, além de todas as pesadas máquinas de guerra, estava impossibilitada. Precisariam construir pontes rústicas múltiplas, usando grandes troncos de madeira colhidos na floresta, que, à altura de Châlons, era muito próxima da estrada. Mas isso demandaria muito tempo, mais de uma semana provavelmente. E eles não tinham esse tempo todo, não com Flávio Aécio e o rei Teodorico a dois dias de distância deles.

Mas o mais desconcertante era saber que agora tinham um novo inimigo. Se, por um lado, os romanos e seus aliados marchavam à sua retaguarda, pelo outro, lá onde a vanguarda da elite da cavalaria huna se havia quase auto-exterminado, havia um inimigo muito pior: a peste! Todos os generais opinaram que era mais viável ficar onde estavam e enfrentar os romanos e seus aliados. Qualquer quilômetro a mais que avançassem os colocava mais e mais perto da terrível fortaleza contaminada. E dos homens que ainda estavam próximos à ponte destruída. E dos milhares de cadáveres que era impossível sepultar e não se tinha material suficiente para queimá-los. Aliás, se tivessem, quem seria louco para se aproximar desses novos focos de peste negra?

Enquanto isso em Châlons

Enquanto todas essas desgraças aconteciam para os hunos, os francos, os 200 visigodos e as sacerdotisas celtas voltaram tranquilamente para dentro da cidadela. Nas barbas dos hunos, sem dar a mínima importância para eles. Em primeiro lugar porque à beira da ponte em ruínas havia um número muito pequeno de cavaleiros (na verdade eram pouco mais de 400). Em segundo lugar por que o moral desses sobreviventes estava baixíssimo.
E em terceiro lugar porque esses poucos hunos ainda estavam sob o impacto da descoberta que a fortaleza franca estava tomada pela peste.

Para dar um reforço a essa certeza dos hunos, os francos entraram lentamente na cidadela, com mais um menos uma metade carregando a outra. Nos carros puxados pelos cavalos, homens, mulheres e crianças vinham empilhados, como cadáveres, com as pernas jogadas para fora. Homens marchavam estropiados pela “doença”, mancando, agarrados a rústicos bastões cortados na mata. Não havia dúvida para os hunos: os francos estavam voltando porque estavam condenados de qualquer maneira. Para eles tanto fazia que a cidadela estivesse contaminada, pois eles já estavam à beira da morte.

Só que aí começou a correr uma idéia no campo huno: ora, aqueles francos haviam fugido da peste antes e estavam de volta, cobertos por ela. Mas, se a peste havia poupado um grande número de hunos, tendo seus sintomas desaparecido... Isso queria dizer que a terrível verdade era bem outra: a cura dos hunos era só aparente! A horrível peste parecia sumir e depois voltava com força total, exterminando todo mundo, como estava acontecendo com o francos, que preferiram voltar a sua cidadela, para morrer em paz lá dentro.

Para confirmar essa horrenda verdade, os francos a todo momento, arremessavam corpos de mortos do alto das muralhas, jogando-os no largo fosso que as circundava totalmente. Isso levou os poucos hunos da ponte ao desespero. Não podiam retroceder, porque, já tinham visto isso, seriam recebidos por seus companheiros como portadores da morte e exterminados a flechadas.

Por outro lado, aquele campo todo, eivado de milhares de cadáveres que logo entrariam em decomposição, iria se tornar insuportável para a vida. E ainda havia a ameaça do francos pesteados dentro da cidadela, sua peste poderia facilmente atingir o acampamento da ponte, a distância era pequena demais para garantir segurança.

Então alguém teve uma idéia e todos se apressaram a colocá-la em prática. Juntaram seus pertences, montaram em seus cavalos e jogaram-se com eles nas barrancas do rio, confiando que os animais conseguissem nadar contra aquela correnteza forte e pudessem levá-los a salvo para o outro lado do Marne. Ali, pelo menos, estariam a salvo das flechas dos seus próprios camaradas, que estavam para chegar – era isso o que eles pensavam.

Na travessia alguns homens caíram dos cavalos e muitos deles não conseguiram sobreviver, afogando-se. Mesmo alguns cavalos cansaram e forma arrastados para o fundo. A contagem dos que chegaram ao outro lado do rio confirmou cerca de setenta novas baixas. Mas os que tiveram êxito estavam exultantes. Haviam vencido a luta contra as águas revoltas do rio e estavam a salvo dos seus companheiros hunos e da peste dos francos da fortaleza.

Depois de algumas horas de descanso, esse grupo de cavaleiros tomou o mesmo rumo norte que haviam tomado, poucos dias antes, os hunos que vieram do norte para tentar tomar a fortaleza. Como estes, também os egressos da ponte destruída teriam agora que atacar e pilhar propriedades e vilarejos, para arranjar comida e bebida.

Fim da farsa

Dentro da fortaleza, do alto das muralhas, os francos viram a debandada final dos hunos que atravessaram o rio a nado. Então foi dada a ordem de parar com a farsa. Ou seja, pararam de jogar “corpos” de bonecos pesados, de palha e areia, do alto das muralhas, para dentro dos fossos frontal e laterais, onde os recolhiam diversos homens e os levavam de volta para a fortaleza, para serem arremessados novamente. Àquela altura já tinham jogado os 20 bonecos mais de30 vezes do alto das muralhas, eliminando assim uns 600 “cadáveres”, dando aos hunos da ponte a idéia de um morticínio em massa e crescente.

Agora a missão mais importante era queimar imediatamente o campo onde estavam os cadáveres dos hunos “sadios” e dos hunos “pesteados”, que se haviam exterminado em batalha. Primeiro um destacamento de civis, munidos de recipientes adequados, fez uma criteriosa varredura em todo o campo, apanhando milhares de flechas que estavam caídas pelo chão. Eram tantas, que não precisaram arrancar as que estavam cravados nos corpos dos mortos.  Muito óleo e um pouco de fogo grego foi utilizado nessa tarefa, reduzindo muito o estoque dos francos. Durante o resto do dia e da noite, a fumaça escura subiu do campo, com seu cheiro característico de carne assada. Mas a higiene estava garantida.

Enquanto isso acontecia, o exército de Átila e seus aliados estava rigorosamente imobilizado. Mas os romanos de Flávio Aécio, com todos os seu aliados, continuavam avançando em direção a ele.

CONTINUA

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