MILTON MACIEL
Na ampla tenda
do estado-maior dos aliados havia jarros com água, copos, bacias para lavar as
mãos e o rosto, uma mesa para até 8 pessoas e as respectivas banquetas. Tudo
fora armado para dar o máximo de conforto ao general romano Flávio Aécio e aos
reis Teodorico, dos visigodos, Sangiban, dos alanos, Meroveu, dos francos
salianos e os que ainda tardariam um pouco a chegar, como Gondioc, dos
burgúndios e Teudeberto dos francos ripuarianos, que tinham se retardado por
terem encontrado um bando retardatário de gépides e se envolvido em uma
escaramuça com eles.
Essa escaramuça
acabou evoluindo para uma verdadeira batalha particular em miniatura, com
pesadas baixas de parte a parte. Os gépides que escaparam desse confronto
conseguiram chegar ainda a templo de se juntar aos hunos e ostrogodos, mas já
bastante desestimulados a seguirem combatendo. Por sua vez, os burgúndios e os
francos ripuarianos acabaram ficando para trás, poucos quilômetros ao sul de
Châlons, para se recomporem, descansar, tratar dos feridos e entrar na batalha
quando ela já estivesse mais adiantada, como elemento surpresa.
Teodorico,
Sangiban, Meroveu, Kyna e Alana tomaram acento junto à mesa. Flávio Aécio e
Vérica preferiram ficar de pé. Eram agitados demais para ficar tanto tempo
sentados. Aécio preferia ficar caminhando de um lado para o outro, ou ao redor
da mesa, com as mãos cruzadas para trás. Vérica ficava em pé parada, estática,
ora apoiando-se num pé, ora no outro. Mas em coisa de minutos perdia a
paciência e se agitava toda, fazendo exercícios com os braços ou começando a
agitar as pernas como se fosse sair correndo. Para imobilizar-se a seguir por
mais um ou dois minutos.
Flávio Aécio
começou a discussão, encostando-se na mesa temporariamente, sempre em pé:
– Bem, senhoras
e senhores, já que temos muito pouco tempo para nossas disposições finais,
vamos revisar rapidamente o que já temos estabelecido.
– Eu ataco os
ostrogodos, já deixamos isso claro antes, não é? Esse prazer eu quero ter,
aquele Walamir e seus irmãos têm contas a ajustar comigo e não é de hoje.
– Por mim, tudo
bem – comentou Sangiban – Não faço questão de guerrear com eles, prefiro fazer
isso com os hunos.
– Para mim
também está certo. Será visigodos contra ostrogodos – assegurou Flávio Aécio.
– E eu e
Torismundo é que vamos decidir essa batalha com os ostrogodos de Walamir.
– Como você e meu filho Torismundo, moça
Vérica?! Torismundo estará comandando um pequeno destacamento de só 700 homens,
pouco poderá fazer, eu o quero como um reforço ao meu flanco direito.
– Pois senhor
rei dos visigodos, esse destacamento, no momento certo, será o fiel da balança
e irá fazer o equilíbrio pender para o lado dos visigodos. Pode ter certeza
disso.
– Estranho! Mas
é só esperar e veremos – disse, tranquilo, o rei dos visigodos.
O romano então
interveio:
– Reservei os
burgúndios e os ripuarianos para a fase final, como elemento surpresa, já que
são eles exatamente que nos dão superioridade numérica sobre Átila. Eles estão
a poucos minutos daqui, esperando nosso chamado.
– Bela tática,
Flávio Aécio. Parabenizo-o – era o rei dos alanos, Sangiban, quem falava isso
com um sorriso.
– E seus homens
estarão tanto com os meus como com os de Teodorico, não é?
– Bem, essa foi
a disposição inicial que todos nós, inicialmente, concordamos em ter, Mas eu
acho que isso de deve, sinceramente, à falta de confiança que vocês têm neste
seu aliado aqui.
– Ora, não diga
uma coisa dessas, rei Sangiban – reclamou Teodorico.
Kyna falou pela
primeira vez:
– Não, rei
Teodorico, Sangiban não quis falar claramente, mas ele se refere
especificamente a nosso amigo Flavio Aécio, não é mesmo, general?
Aécio engasgou,
ficou um pouco mais corado e virou-se de costas para todos, dando alguns passos
em direção à saída da tenda. Então fez meia-volta e falou:
– Bem, essa
lição eu já aprendi há muitos anos, não é de agora. Quando uma sacerdotisa
celta – ou um druida celta – resolvem interpretar nossos pensamentos, estamos
em maus lençóis. Sim, vocês têm razão, rei Sangiban e sacerdotisa Kyna, eu devo
confessar que até o último minuto tive muitas dúvidas a respeito da lealdade
dos alanos ao nosso pacto de união contra Átila.
– E o general
poderia me dizer claramente por quê?
– Bem, Sangiban,
sabemos que até bem poucos dias, você tinha um acordo com Átila e estava
disposto a franquear-lhe a passagem por seus domínios. Só renunciou a esse
acordo na última hora, por causa da pressão que nós, os romanos, exercemos.
– Ora, ora,
General! – exclamou Teodorico – Pois se não foi exatamente isso o que se passou
conosco também, os visigodos? De início nós também estávamos dispostos a não opor
resistência ao avanço dos hunos e seus aliados, desde que eles nos garantissem
a não agressão a nossos territórios. E o que me fez mudar de idéia foi a
sabedoria de outra sacerdotisa celta, Alana, aqui presente, que usou sólidos
argumentos para me convencer que eu estava errado.
Vérica fixou o
olhar em sua mãe e viu que ela teve um leve estremecimento, baixando os olhos
até o chão. Está lembrando os “sólidos
argumentos” que teve que usar para conseguir
a adesão de Teodorico à aliança – na horizontal! pensou.
Sangiban
interveio:
– General Aécio,
tente pôr-se no meu lugar. Meu povo é bem menos numeroso do que os seus romanos
e os visigodos de Teodorico. Que podia eu fazer, se quisesse me opor sozinho ao
avanço de um exército imensamente mais numeroso que o meu, que iria certamente
arrasar nosso território e chacinar nosso povo? Àquela altura, Roma ainda não
havia me garantido proteção. Por isso tratei de ganhar todo o tempo que pude,
na esperança que ainda pudesse encontrar uma saída para esse pseudo-acordo com
os hunos.
– É, rei
Sangiban, eu devo admitir que exagerei na minha prevenção contra o senhor e os
seus alanos. Efetivamente, foi mesmo por isso que os dividi em dois grupos,
colocando-os com romanos e visigodos. Assim estariam mais fracos pela divisão e
mais controláveis, caso quisessem nos trair ou desertar do campo de batalha. Sei
que é um pouco tarde, mas estou admitindo meu erro e pedindo-lhe humildemente
desculpas, em meu nome e em nome de Roma.
– Realmente, Flávio
Aécio, é um pouco tarde demais agora.
– Não, Sangiban,
não é! Temos ainda tempo de corrigir esse erro grosseiro do general Aécio
– Minha senhora
Kyna! Assim a senhora me constrange...
– Ora, general Aécio,
mais constrangido deveria ter ficado o senhor ao admitir seu erro ao rei
Sangiban. Vamos deixar disso. Erro é erro e, como tal, temos sempre que tratar
de corrigi-lo.
– Muito certo,
senhora. E qual seria sua sugestão, no caso?
Para variar, Vérica
não se conteve:
– Pois então,
general romano, desfaça sua estupidez de dividir os alanos e trate de suplicar
ao rei deles que os reúna de novo num só bloco.
O ambiente
naturalmente se fez pesado. Alana tentou remediar:
– Mas minha
filha, isso são modos de falar como general Aécio?
– São modos
proporcionais à estupidez dele, minha mãe. Não tente botar panos quentes! Eu,
no lugar do rei Sangiban, pegava meus homens na mesma hora que esse romano arrogante
ordenou que os separasse e ia embora para o meu país! Não confia em nós, pois ganhe a guerra sem nós!
Flávio Aécio agora
estava vermelho de verdade, com seus olhos pequenos deixando transparecer a fúria
em que se encontrava. Mas Kyna colocou as coisas no lugar:
– Vérica, minha
neta, o rei Sangiban jamais faria isso. Ele apôs sua assinatura no acordo com
romanos, visigodos e burgúndios, o que não chegou a fazer com Átila. E,
conhecendo-o bem como o conheço, sei que ele jamais trairia sua palavra
empenhada dessa forma. Mas a verdadeira razão do rei dos alanos ter suportado a
atitude de Aécio é que ele sabe que seus homens são imprescindíveis para a vitória
sobre Átila. E, mais do que um rei a ficar ofendido, ele é representante de
todo um povo que, se os hunos forem vitoriosos, será arrasado inapelavelmente.
– Não sei como
lhe agradecer por suas palavras sábias, Kyna. Você descreveu total e
perfeitamente minha posição e meu pensamento. Aqui não havia lugar para orgulho
e melindres pessoais, quando todo o meu povo está tão ou mais ameaçado que os
outros.
– Rei Sangiban,
eu não tinha percebido até agora o alcance dessa minha medida errada e, como
disse a menina ali, arrogante. Nem me passou pela cabeça o quanto o estava
ofendendo e aos seus. Eu volto a pedir desculpas e faço o que a moça furiosa
sugeriu há pouco: Por favor, eu lhe suplico que junte todos os seus homens e
forme seu grande regimento entre os nossos.
– Perfeitamente,
general. Vou fazer isso imediatamente. E. de minha parte, sugiro que esqueçamos
isso tudo, como se nunca tivesse existido.
– Fico-lhe imensamente
grato, rei Sangiban. Sei que o senhor é mesmo capaz de esquecer isso tudo. Mas
digo-lhe que EU não serei.
– E porque razão,
general?
– Por causa
dessa sua filha, sacerdotisa Alana?
– Ofendeu-o,
general? Quer que ela lhe peça desculpas?
Vérica empinou o
corpo e suas narinas arfaram. Era óbvio que ela jamais faria isso!
– De maneira
alguma, Alana! Por que a jovem sacerdotisa teria que pedir desculpas se o
errado aqui fui eu? E assim como declarei minha gratidão pela atitude serena e
patriótica do rei Sangiban, quero aqui de público agradecer a essa jovem
corajosa e sincera por ter tido a decência de falar o que falou e falar como falou. Eu mereci! Confesso a todos:
nunca vi uma mulher tão corajosa e tão sincera como esta. Ela é uma criatura
rara, transparente: O que pensa fala, sem rodeios e encara as conseqüências do
que diz. Estou encantado com essa menina, sacerdotisas. Mas, sendo filha e neta
de vocês duas, só poderia ser mesmo uma pessoa excepcional.
Vérica
desarmou-se totalmente ante o inesperado da manifestação do mais importante
general do Império Romano do Ocidente. Baixou os olhos para o chão e não pôde mais
evitar um sorriso. Aécio aproveitou:
– A paz entre nós,
jovem Vérica. Aceita?
Vérica, mais uma
vez, surpreendeu a todos pelo gesto seguinte, o contrário total do que havia feito
há pouco: Curvou o corpo para a frente, flexionou a perna direita, moveu os
dois braços graciosamente e tomou a posição típica de um bailarina. Era
inacreditável que aquela menina pudesse ser, ao mesmo tempo, tão forte,
masculina mesmo, como ao saltar do cavalo ou ao enfrentar Flávio Aécio. E, no
instante seguinte, mostrasse tanta graça e leveza como a mais feminina das mulheres.
Ao terminar sua
postura, Vérica fez um simpático e sorridente Sim com a cabeça. Pronto, todos estavam em paz: romanos, alanos e aquela
que representava ali os celtas, junto com suas parentas. Kyna fez um sinal para
que Sangiban esperasse um pouco antes de sair da tenda.
– Sangiban e
demais estrategistas aqui: Chegou minha vez de dar também uma sugestão. Eu vejo
a nova disposição das tropas como extremamente mais favorável do que até a pouco.
Agora com os alanos ficando exatamente em frente aos hunos.
– E por que razão,
Kyna? – Chamava atenção a maneira como o rei dos alanos e a sumo-sacerdotisa
dos celtas se tratavam sem cerimônia...
– Por que, pelo
que você nos explicou antes, Átila deve estar furioso com você, pois contava
com sua cooperação e subserviência até o fim, ao chegar a Orléans. E, na minha
opinião, ele vai querer se vingar de você e do seu povo. Se você encurtar a distância
entre alanos e hunos, me pare óbvio que eles vão atacar preferencialmente vocês.
E ai nós podemos dar-lhes uma recepção inesperada.
– Explique
melhor, por favor, sumo-sacerdotisa – era a primeira vez que o rei Meroveu se
dignava a falar. Até então ele estava mortalmente atacado por um ciúme atroz de
Vérica, os homens não tiravam os olhos dela, desde que ela fizera aquela
demonstração maluca ao saltar do cavalo. Agora era o próprio Flávio Aécio que a
olhava a todo instante, como que fascinado pela estampa altiva da brava
guerreira e bonita da suave sacerdotisa.
– Se nós colocarmos
um contingente ainda menor de alanos em frente aos hunos, eles verão um grupo
mais fraco e mais fácil de derrotar facilmente, E como Átila deve estar
pensando em punir Sangiban e sua gente, podemos armar uma armadilha em pleno
campo aberto para os hunos.
– Humm, a idéia
está me parecendo muito interessando, sacerdotisa. Acho que percebo onde quer
chegar.
– Sim, general.
Mas vai ser necessário que nosso rei Sangiban, mais uma vez, saiba ter muita
humildade.
– E por que razão
deverei fazê-lo, Kyna?
– Porque, na
hora em que os hunos chegarem, você terá que FUGIR com seus homens!
– Fugir?! Mas
isso seria a extrema vergonha para os alanos! E para mim!
– Não se, com
essa manobra de fuga, apenas aparente, os hunos forem derrotados.
– E isso seria
possível? Porque, se for, eu aceito me submeter a qualquer situação, por mais
humilhante que seja.
– Será a derrota
certa para eles, eu lhe garanto, Sangiban. Porque os romanos os atacarão pelo
flanco e pela retaguarda. E porque você terá homens de reserva escondidos. E
porque os burgúndios cairão sobre os hunos também.
– E nós,
sacerdotisa? Os visigodos não terão participação nisso?
– Terão, sim,
rei Teodorico. Os visigodos devem deixar um pequeno contingente, capaz de
atrais os hunos que avançam contra os alanos em fuga. Competirá então a Flávio
Aécio socorrer a esses visigodos. Até porque, nesse momento, o senhor estará
enfrentando ao auge da batalha contra Walamir e seus ostrogodos.
E, voltando-se
para neta:
– Vérica, por
favor, há material sobre a mesa, faça para nós um rápido desenho da disposição
que estou querendo sugerir. (mapa abaixo)
CONTINUA
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