MILTON MACIEL Kyna
Resumo do cap. 24 – Os hunos são totalmente
ludibriados pelo truque da “multiplicação da feiticeira” e querem fugir,
tomados de pavor. Mais apavorados ficam quando, na planície e na grande
estrada, vêm avançar milhares de tochas acesas, mostrando que um enorme
exército de infantaria avança contra eles. Na verdade são os 500 homens de
infantaria dos francos e mais 700 civis, cada um portando três tochas ao mesmo
tempo. Quando um dos seus chefes se opõe à fuga, os hunos simplesmente o
executam a flechadas e fogem a todo galope para o norte. O cerco está acabado.
Mas, vindos do sul, milhares de outros cavaleiros hunos estão a menos de três
dias de Châlons e a verdadeira batalha de morte ainda está para começar. Hilduara
conta ao general Armosic como a jovem Vérica será importante para o futuro de
todos os francos, quando se converter em sua rainha.
OS PLANOS DE RESISTÊNCIA AOS HUNOS
Mal o sol surgiu
a leste sobre a floresta, Kyna e Alana, que passaram a noite e a madrugada
acordadas, em seus ofícios religiosos para a Deusa, em trabalhos de visão sobre
o tripé e traçando esboços rudimentares de planos de batalha, que depois Vérica
haveria de desenhar corretamente, tiveram uma grande surpresa.
A porta, que não
era trancada normalmente, foi aberta e Vérica apareceu, toda contente e
agitada. Pela mão vinha comboiando um Meroveu bem menos desperto do que ela,
mas, ainda assim acordado. Alana não pôde conter um gesto de incredulidade:
– Vérica! Vocês DOIS
aqui a esta hora! Mas o que...
– Han, Han,
Sacerdotisa-Mãe! Não esperavam por NÓS, não é? Devem ter pensado: aquela
maluca, aquela irresponsável da Vérica vai acabar com o Meroveu e nenhum deles
aparece aqui esta manhã. Não foi?
– Bem, criança,
sua mãe e eu não esperávamos ver o rei desperto tão cedo, isso é verdade. Mas
você, nós sabemos que sua energia nunca tem fim e que você cedo já estaria por
aqui, até porque não poderia contar com seu parceiro no início da manhã, não é?
A essa altura o
rei já não sabia para que lado olhar, estava vermelho como um pimentão e
mantinha os olhos fixos numa mancha no piso.
– Ah, mas ai é
que vocês se enganaram. Vériquinha é doida, mas não tanto. Como vocês eu senti
que as coisas agora vão ficar feias para o nosso lado, então eu me segurei o
que deu, não levei nosso amado rei à exaustão, resolvi o resto que faltava
comigo mesma. E por isso, agora a pouco, ainda que com uma certa dificuldade,
consegui tirá-lo da cama e jogar-lhe dois baldes de água fria. Eu garanto que o
rei está bem desperto.
Meroveu, outra
vez, não sabia onde se enfiar, ainda mais quando Vérica falou, sem a menor
cerimônia ou floreio, que, para não acabar de vez com ele, simplesmente se
masturbou enquanto ele caia exausto de sono.
Alana caiu na
gargalhada. Ah, aquela era a sua menina! Nunca tinha tido papas na língua. O
que pensava, falava na mesma hora, sem rodeios, sem concessões, sem
meias-palavras. Sem falsas vergonhas, também. Era, de fato, a criatura mais
direta e a mais sincera que ela conhecia. Mas tanto ela, quanto sua mãe Kyna
estavam era morrendo de dó de Meroveu. Kyna falou:
– Vá se
acostumando, meu rei, essa é Vérica primeira e única. Se o senhor persistir
nessa louca idéia de casar com ela, então vai ser assim todos os dias, a sós
com o senhor ou na frente de quem quer que seja, de toda a sua corte, se for preciso.
Minha neta sempre teve essa virtude, desde que começou a falar. Foram
incontáveis as vezes em que ela nos causou os maiores embaraços e nos colocou
em situações delicadas.
– Sim, rei Meroveu,
vou lhe dar só um exemplo. Há muitos anos, em Ravenna, nós fomos apresentadas
ao Imperador Valentiniano III, do Império Romano do Ocidente. Minha mãe e eu
estávamos em uma visita ao imperador e à corte, porém à serviço da Deusa.
Vérica tinha só quatro aninhos, mas era extremamente precoce. Pois veja o que
essa menina falou quando entrou Galla Placídia, a mãe do imperador, que era
quem governava de fato, pois era irmã de Teodósio I, o imperador do Império
Romano do Oriente e, além disso, o filho era totalmente submisso a ela. Pois
Vérica olhou para Galla Placídia e disse simplesmente:
– Quem é essa
velha gorda? Eu não quero ficar na mesma sala com ela. Ela é má. Muito má. Ela
trai as pessoas. Eu vou embora.
E largou a nós
duas no maior embaraço na sala do trono. Saiu, andando durinha, com um passo
pesado que mais parecia um soldadinho marchando. E aí, ao chegar a porta, gritou:
– Vocês não vêm?
Querem que essa bruxa mande matar vocês? Eu vou embora, não digam que eu não
avisei.
E foi embora
mesmo, começou a sair do palácio, eu tive que ir correndo atrás dela. Deixei
minha pobre mãe no maior constrangimento, com o imperador e sua mãe, não tive
mais condições de voltar, por causa da menina.
Meroveu, mais
aliviado do vexame agora, conseguiu falar alguma coisa:
– E o que
aconteceu?
– Bem, aconteceu
que eu fiquei entregue às duas feras e tive que improvisar uma saída. Fazendo
exatamente o contrário do que a menina tinha feito, isto é, mentindo. Inventei
que ela fazia sempre confusão de muitas pessoas com uma mulher que havia
ajudado a cuidar dela e que, de fato era muito má e havia maltratado muito a
criança, escondida de nós. E aí a menina, traumatizada, tinha ficado com essa
mania desde então. Sempre que via uma mulher de cabelos loiros e compridos, como
os da imperatriz, ela ficava muito excitada e começava a falar essas bobagens,
Eu supliquei que me perdoassem e perdoassem minha neta: “Ela não sabe o que diz, tem só três anos (diminuí a idade dela na
hora!). Bem, o imperador até começou a rir, mas Galla Placídia fechou a cara e
não falou mais comigo aquela noite. De fato, ela não era gorda, era só um pouco
larga demais na cintura. E, claro, não se achava nem um pouquinho velha, aos 55
anos.
– E eu tive que
ficar o resto da noite lá fora com ela, não havia força que a fizesse voltar ao
palácio, apesar do frio horrível que fazia na rua. Por esse simples exemplo, o
senhor vê, rei Meroveu, como é essa menina.
Só desfez a cara emburrada quando Kyna apareceu e ela pôde se
tranqüilizar com a saúde da avó. Aí saiu correndo toda feliz para abraçá-la.
– Minha adorável
troglodita... – falou mansamente o rei dos francos salianos – Por mim, ela pode
fazer tudo o que quiser, desde que fique a meu lado para sempre.
Vérica olhou
para ele sorrindo. O que estava pensando, só as outras duas sacerdotisas podiam
perceber: “Você está me devendo uma
noite inteira decente, seu molengão!” Mas, logo a seguir, captando o que sua
avó estava pensando, disse num arroubo, enquanto corria para a porta da rua:
– Pode deixar
que eu vou correndo, Avó. Se estiverem dormindo, arranco os dois da cama nem
que seja a muque!
E, face ao olhar
atônito de Meroveu, a sacerdotisa-mor explicou:
– Ela foi buscar
o general Armosic e Hilduara. Precisamos discutir muitos e graves temas a
partir de agora.
Em menos de 10
minutos Vérica estava de volta, correndo, precedendo o casal, que entrou logo a
seguir, cumprimentando os presentes.
Kyna então
convidou todos a se sentarem à mesa onde apresentaria os planos de combate.
Quando todos ocuparam seus lugares, ela começou:
– Bem, agora que
terminamos de comemorar nossa vitória total de ontem, chegou a hora de
tratarmos da dura realidade que se aproxima. Amanhã, pelo final da tarde, a
vanguarda da cavalaria de Átila nos alcançará em Châlons. Eu gostaria de ouvir
dos senhores, os dois guerreiros, qual seria o procedimento normal em um caso
assim, quando o inimigo que se aproxima é, no mínimo, dez vezes mais numeroso
que nós.
– Correr para
salvar a pele, senhora – foi a resposta bem humorada e concisa de Armosic.
– Sim –
concordou Meroveu – Fugiríamos para a floresta, tentando tomar o rumo sul.
– Só que não o
podemos fazer, não é?
– Não. Nosso
dever é ficar e lutar até o último homem, para retardar o avanço de Átila,
conforme nos pediram que fizéssemos o romano Flávio Aécio e o rei Teodorico,
dos visigodos. Eu e todos os meus soldados, desde o meu general aqui presente até
o mais humilde do infantes, estamos prontos para fazê-lo. Aliás, essa já era a
nossa perspectiva quando resolvemos ficar na cidadela e esperar aqui pelo cerco
dos hunos que vieram do norte. Contávamos como certa a nossa derrota e
estávamos prontos para vender muito caro nossas peles.
– Exatamente,
meu rei. Mas aí tivemos a felicidade de ter as três sacerdotisas celtas entre
nós e isso mudou completamente o quadro das batalhas a nosso favor. Quando que,
apenas duas semanas atrás, nós poderíamos sequer sonhar com o que aconteceu
ontem, a debandada total dos hunos do norte, a vitória total!
– Isso mesmo,
Armosic. Que bom que você também reconhece que não teríamos tido
sucesso sem
essas três maravilhosas dádivas da Deusa celta.
Kyna
interrompeu-os, apressada:
– Muito bem,
agradeço em nome da Deusa, mas agora temos que decidir nossas táticas contra o
avanço de Átila. Temos a confirmação, através dos nossos estudos desta
madrugada, pelos nossos métodos, que avançam em direção a nós um total de 36000
hunos e seus aliados. E que, na sua retaguarda, a dois dias de distância, vêm
Flávio Aécio e Teodorico, com seus aliados alanos e burgúndios, totalizando
45000 homens em armas.
Essa
superioridade não é expressiva, mas nós podemos fazer a diferença.
– NÓS,
sacerdotisa? Mas como?
– Em primeiro
lugar, meu rei, barrando a passagem dos homens de Átila pelo rio Marne. E
depois, opondo uma feroz resistência a eles, usando táticas de guerrilha.
– Mas como
podemos impedir a travessia do Marne? Não temos homens suficientes para isso.
Ainda mais que sabemos que a vanguarda dos hunos é toda de cavalaria. Onde os
enfrentaríamos? Antes ou depois da ponte?
– A grande ponte
será nosso trunfo, rei Meroveu.
Hilduara falou
pela primeira vez:
– Sim, grande
Kyna, já vejo perfeitamente o que quer dizer. As catapultas, não é?
– Isso mesmo,
menina. Parabéns, você está com seus sentidos bem aguçados. Lembre-me de
tomá-la a meus cuidados tão logo seja possível. Vamos afinar isso ainda mais.
Armosic
reclamou:
– Ora, ora, eu
não estou entendendo nada. Que história é essa de ponte e de catapultas e...
Foi interrompido
pelo ruído de um tremendo tapa que Meroveu deu em sua própria testa, gritando:
– Caramba, é
isso! Genial, sacerdotisa: vamos destruir a ponte de pedra usando nossas
catapultas.
Armosic soltou
um assobio de admiração:
– Pelos deuses,
acho que eu nunca teria pensado nisso. Mas é, sim, a coisa mais evidente a ser
feita. Temos 48 projéteis estocados. Vamos ter que levar as catapultas para a
planície e ensaiar até acharmos a melhor distância. São duas catapultas
idênticas. Temos também que colocar muitas parelhas de cavalos para puxar as
carretas com os projéteis de pedra. E muitas dezenas de homens para conseguir
transportá-las até os carros. É um trabalho de muitas horas. Precisamos começar
já. Tenho sua autorização, meu rei?
– Claro, claro,
meu bom Armosic, Providencie tudo imediatamente, com sua competência de sempre.
E acho que eu devo acompanhá-lo também.
E começou a
levantar do banco.
– Não, você
fica! – falou Vérica, imperativa, puxando-o pela roupa e fazendo-o estatelar-se
de traseiro no banco outra vez.
– Minha filha
tem razão, rei Meroveu, desculpe seus maus modos, mas precisamos do senhor
aqui. Temos muito mais coisas a discutir e planejar, além da destruição da
grande ponte.
– Si.. Sim,
sacerdotisa Alana. Estou prestando toda a atenção.
– Bem, pelos
nossos cálculos, os hunos devem chegar no fim da tarde de amanhã à região da
ponte, com uma força de uns 3000 cavaleiros, que são os que formam a vanguarda.
Evidentemente não temos como lhes oferecer combate direto. Até mesmo porque,
poucas horas atrás, vem outro destacamento, este com cerca de 5000 cavaleiros
mais. No ponto de encontro com a ponte sobre o marne, a estrada principal, que
os romanos chamam de Via Agripa, tem cerca de 20 metros de largura, entre pista
carroçável e laterais. Logo depois, pelos dois lados, erguem-se colinas de
média elevação, desfavoráveis para o combate a cavalo. Então, quando chegarem e
constatarem que a ponte está destruída, os hunos vão perceber que nossa
fortaleza está ocupada por inimigos deles e, não, por seus homens, como eles
supõe que aconteceria.
– E imediatamente
virão nos atacar na cidadela, é evidente. E não temos como impedi-los, pois
eles estarão do mesmo lado do rio que nós.
– Certo, rei
Meroveu – rebateu Kyna – E ficaremos aqui dentro, constituindo-nos para eles na
primeira armadilha que encontrarão. Eles terão que nos fazer um cerco. Mas suas
máquinas de guerra estão dois dias atrás, em sua retaguarda. Então eles não poderão atacar-nos com
eficiência de imediato. São homens de cavalaria, eficientes no ataque direto em
planícies, com arco e flecha, mas isso não lhes vai valer nas primeiras horas.
– Mas eles vão
nos cercar pelos quatro lados! Nunca mais poderemos sair. E, quando chegarem
suas máquinas de guerra, eles nos pulverizarão aqui dentro. E escalarão as
muralhas com toda a facilidade, usando suas torres de assalto. E então nos
matarão a todos.
– Não a todos,
Meroveu! Escute, deixe a Avó terminar, criatura!
E então, para um
Meroveu que estava tão ruborizado quanto apaixonado, as três sacerdotisas
começaram a delinear o plano de resistência. Uma Hilduara maravilhada, não só com o que ia ouvindo, mas, ainda mais, com
o que ia captando previamente antes de ouvir, os acompanhava em silêncio, a
linda face iluminada por um sorriso de paz.
CONTINUA
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