MILTON MACIEL
A REDENÇÃO DA ESPIÃ DOS HUNOS
Ermanaric/Hilduara (foto) nada disse. Apenas baixou a cabeça e começou a chorar copiosamente, mas com uma
tal compostura que surpreendeu Kyna. Sim, senhora, aquela era mesmo uma criatura
de classe, certamente recebera uma esmeradíssima educação. Depois de uns dois
minutos, ela conseguiu finalmente falar:
– Você é a
grande sacerdotisa Kyna, eu sei. Não imaginava que você tivesse tanto poder
assim. Se sabe quem eu sou e, mais incrível, se sabe quem eu fui, se á capaz de
saber que eu não sou nem mulher nem homem, então já deve saber, com toda
certeza, que eu sou uma inimiga sua. Sou uma mulher huna e sou um homem
ostrogodo. E tanto hunos, quanto ostrogodos, hoje unidos por uma aliança de guerra,
são inimigos dos francos.
– Acalme-se Hilduara. Eu não sou um dos francos, sou celta, você sabe.
– Hilduara? Mas
você há pouco me chamou de Ermanaric.
– Apenas para
você saber que eu sei tudo a seu respeito. Vi toda sua história minutos atrás,
na água sagrada, bem mais do que as minhas colegas conseguiram ver. Sossegue,
você não é homem, nem nunca o foi, mesmo quando tinha órgãos sexuais de menino.
Você nasceu para ser mulher.
– Não posso
duvidar de nada do que diga, senhora. Estou pasma de ver como é imenso o seu
poder. E acho que posso lhe dizer que estou feliz que tenha me descoberto.
Estou cansada demais desta vida. São trinta e seis anos de uma existência
desgraçada, sem nunca saber quem eu sou na verdade, sem nunca poder ser quem eu
quero ser. Acho que vou enfrentar com tranquilidade a espada franca que vai
acabar com o meu sofrimento. Pode me levar até os soldados, sacerdotisa, não
vou oferecer nenhuma resistência, sei quando estou vencida.
– Então você
deseja a morte?
– Sim,
sacerdotisa. Foi por isso que aceitei esta missão tão arriscada. Tinha a
esperança de ser descoberta e executada. Como lhe disse, eu não agüento mais
esta vida. Agora que isso finalmente aconteceu, sinto um grande alívio, como se
um fardo infinitamente pesado fosse tirado dos meus ombros.
– E o que mais a
fez sofrer esse tempo todo?
– Ter amado
homens que nunca quiseram me amar. Alguns deles até me usaram sexualmente e
gostaram. Mas sabiam que eu não era uma mulher de verdade e que nunca poderia
lhes dar filhos. E que eles nunca poderiam assumir publicamente uma relação
comigo, viver comigo. É uma vida horrível, não a desejo para ninguém. Eu sou
uma aberração. E sou uma criminosa, também, você sabe.
– Uma criminosa
de guerra, você quer dizer.
– Sim, só estive
envolvida em ações criminosas de guerra. Eu mesma nunca matei ninguém, mas
tenho liderado grupos de mulheres assassinas, que eliminam inimigos dos hunos.
Portanto, eu sou tão ou mais criminosa do que elas. Por favor, leve-me
imediatamente aos soldados francos. Por amor de sua Deusa, ajude-me a terminar
logo com esta existência desgraçada.
E Hilduara
prostrou-se de joelhos perante a sumo-sacerdotisa celta, suplicando-lhe:
– Por favor,
senhora, tenha piedade de mim, uma desgraçada, ajude-me a morrer. Use seu poder
para que isso seja feito hoje mesmo, agora mesmo. Já vivi demais.
– Levante-se,
Hilduara. Eu vou ajudar você. Aliás foi para isso mesmo que deixei aberta a
porta para você. Eu sabia que você viria atrás da fórmula do fogo grego. Mas isso
foi um gesto inútil, essa fórmula jamais é escrita há séculos. Ela passa de
iniciado para iniciado, de boca para ouvido, só assim nós impedimos que ela
caia nas mãos de reis e militares sanguinários. E só a usamos em casos
excepcionais, sempre em pequenas quantidades.
– Você vai me
ajudar a morrer então? Promete?
– Não, Hilduara,
eu vou ajudá-la a viver!
– Não, por
favor! Por amor a sua Deusa. Eu não quero mais viver, não posso!!!
– Mas você NUNCA
VIVEU, criatura! E eu disse que vou ajudá-la a viver.
– Grande
sacerdotisa, é verdade que eu nunca vivi. Mas agora é tarde demais.
– Não, moça. É
um pouquinho cedo demais, mas eu lhe proponho apenas o seguinte: Confie em mim.
Entregue-se a mim. Entregue-se à grande Deusa. E nós mudaremos tudo para você,
nós a faremos viver de verdade, como você nunca viveu.
Hilduara nada
respondeu. Considerou que poderia acabar com aquilo tudo imediatamente,
bastaria sair correndo dali e fazer qualquer coisa que parecesse ameaçadora aos
francos. Poderia agredir um soldado, seria presa imediatamente e confessaria
sua condição de espiã. Sim, era o único jeito, já que a sacerdotisa não parecia
disposta a entregá-la. Mas parou o que estava pensando, quando ouviu a voz do
impossível, do simplesmente impossível:
– Pare de pensar
bobagem, moça. Sair correndo daqui não é uma solução conveniente para você.
Agredir um soldado pode lhe valer é uma enorme surra, ter as pernas e o nariz
quebrados e só isso.
Sim, era
inacreditável! Aquela mulher fantástica, aquela mulher maravilhosa, acabava de
ler seus pensamentos, com toda a clareza! Perto daquele poder da sacerdotisa,
suas poucas e pobres feitiçarias hunas eram simplesmente ridículas. Hilduara
sentiu então que talvez fizesse mais sentido entregar-se à sacerdotisa e à sua
Deusa, como ela lhe havia sugerido. Talvez, naquele túnel escuro onde estava,
naquele desespero total, houvesse uma luz e uma saída possíveis:
– Grande
sacerdotisa, se há alguma coisa que ainda possa fazer por esta desgraçada, se
há algum resquício de esperança para ela, então faça de mim o que quiser. Eu
aceito entregar-me totalmente a você e sua Deusa. Mas, se você foi capaz de me
identificar, certamente terá identificado as outras duas mulheres que trabalham
comigo dentro destas muralhas. Suponho que elas também serão apanhadas, e, com
toda certeza, vão me entregar, se interrogadas. E, nesse caso, não há força
neste mundo que possa impedir minha execução.
– Mas há força
no outro mundo, minha cara: a Deusa! E eu tenho certeza que a Deusa botou a mão
sobre você. E, nesse caso, não haverá força neste mundo capaz de atingi-la.
– O que devo
fazer então, grande sacerdotisa?
– Comece por me
contar mais sobre Ascilatus, o romano.
Os olhos de
Hilduara se encheram de lágrimas no mesmo instante e seu corpo começou a tremer
visivelmente outra vez. Depois de alguns instantes, fazendo um grande esforço,
ela falou:
– Foi o homem
que me comprou de minha família ostrogoda, que era muito pobre. Venderam-me
como escravo. Mas Ascilatus mandou imediatamente me castrar e me criou como
mulher, para servi-lo sexualmente desde que eu tinha sete anos. Depois, na
adolescência, como eu tivesse adquirido a aparência de uma mulher muito bonita,
ele começou a me vender para outros homens, como uma mulher que era uma
aberração. E tive que receber centenas de homens diferentes em minha vida, que
me usavam de todas as formas possíveis, infligindo-me terríveis sofrimentos,
tanto físicos como morais. Ascilatus cobrava deles em dinheiro e em ouro. Ficou
riquíssimo, enquanto eu era apenas sua escrava, como o sou até hoje. Então, há
questão de seis anos, Ascilatus, apesar de romano, fez aliança com Átila e os
chefes hunos. Eu fui usada como moeda de troca, a grande novidade para os
hunos, a mulher-eunuco. Usaram-me fartamente na corte de Átila. Então um de
seus generais concebeu esta idéia de me mandar para cidades e acampamentos
inimigos, como espiã e coordenadora de suas assassinas, cujo papel é eliminar
chefes inimigos importantes. Ascilatus agora recebe dinheiro cada vez que eu
tenho êxito em uma missão. E eu não sei o que acontece, pois há 29 anos eu sou
escrava desse homem e, por mais oportunidades que eu tenha tido de fugir dele,
sempre acabo voltando a ficar sob seu domínio, nunca consegui lhe escapar.
– Pois era isso
mesmo que eu esperava ouvir. Você não percebe porque é a vítima, mas esse homem
monstruoso escravizou a sua mente e a sua vontade, desde que você era
criancinha. Você habituou-se a obedecê-lo e a temer seus terríveis castigos.
Mas ele forçou sua mente a acreditar que ele é a única fonte de segurança para
você. Veja como é grande o domínio mental que ele tem sobre você, que conseguiu
fazer você se identificar com os hunos e sua causa, até com sua nação em
formação. Você se declara uma mulher huna, mas isso não é realidade. Você jurou
fidelidade aos hunos, mas os hunos só lhe fizeram mal desde que você foi parar
nos domínios deles. Então agora a Deusa e eu vamos libertá-lo das correntes
mentais com que esse Ascilatus e os hunos aprisionaram você e aumentaram ainda
mais a sua infelicidade, obrigando-a a se envolver com espionagens arriscadas e
com assassinas profissionais. Mas você é intrinsecamente boa, eu vi isso desde
o começo. A Deusa vai resgatá-la do mal e da dor, e você poderá ser a doce
Hilduara que é interiormente. Confie em mim, confie na Deusa. E confie nas outras
duas sacerdotisas que você vai conhecer daqui a pouco, que são minha filha e
minha neta.
– Alana e a grande Vérica, a arqueira.
– Sim, eu as
mandei em busca das duas assassinas, a esta altura elas já as capturaram e com
toda certeza já as entregaram aos francos. Conheço a impulsividade de minha
neta e estou certa que ela fez exatamente isso, o contrário do que eu lhes
recomendei que fizessem.
–Mas com certeza você sabia que elas fariam o
que fizeram, não é?
– Sim, é claro.
Falhas da juventude, que precisaremos corrigir. Alana não deve ter concordado,
mas Vérica é irredutível, deve ter imposto a sua vontade. Mas venha, venha
comigo, vamos trabalhar juntas ante a efígie da Deusa.
Kyna demorou-se
uns poucos minutos preparando uma infusão especial, que entregou a Hilduara em
um copo escuro, para que a bebesse. E, para surpresa da moça, adiantou-se e
desnudou-a completamente, livrando-a de suas vestes masculinas, deixando seu
corpo alvo e perfeito totalmente à mostra. Em seguida, cobriu-a com um mando
negro, da cabeça aos pés e lhe disse:
– Beba até o fim. Não se assuste, você vai
perder os sentidos, mas estará tudo bem com você.
– Grande Kyna,
aconteça o que acontecer comigo, eu confiarei sempre cegamente em, você. E independente
de resultados positivos, desde já quero lhe declarar minha eterna gratidão.
– Muito bem,
obrigada. Mas agora feche seus olhos e pense fixamente em Ascilatus. Nós vamos
trazê-lo até aqui, para livrar você dele para sempre.
No instante em
que Hilduara conseguiu visualizar com precisão o semblante debochado e odioso
do gordo Ascilatus, ela desmaiou. O romano, em plena libação com um grupo de
chefes hunos, a 400 quilômetros dali, sentiu um sono irresistível e caiu
emborcado sobre o prato. Imediatamente sonhou que Hilduara aparecia com uma
enorme espada e lhe cortava pênis e testículos com um único golpe sangrento.
No mesmo momento,
entrou na sala um chefe huno de maior hierarquia à procura do romano. E o homem
vinha furibundo, um minuto atrás acabara de ouvir de seu filho de doze anos a
confissão de que Ascilatus o molestava sexualmente há vários meses. O menino,
sem conseguir explicar o porquê, sentira uma premente necessidade de confessar
a verdade ao pai e saíra correndo atrás dele, encontrando-o à entrada daquele
salão. Com um urro, o huno sacou da espada e, virando o romano desacordado
sobre a comida, rasgou-lhe a roupa e, com um golpe certeiro, não apenas
cortou-lhe fora os órgãos genitais, como lhe cortou de forma tão profunda uma
coxa e o baixo ventre, que Ascilatus sangrou até morrer em poucos minutos, sem
recobrar a consciência real, vendo o tempo todo Hilduara com a espada sangrenta
à sua frente, ao invés general huno. O braço comprido da Deusa tinha feito
justiça instantânea.
Em Châlons, Kyna assistiu a tudo dentro de
sua mente, com a vidência excepcional que a Deusa lhe proporcionava. À sua
frente, deitada de lado no chão ante a efígie da Deusa, Hilduara estava
profundamente adormecida. Era uma jovem mulher de uma beleza e uma doçura
excepcionais. Kyna comoveu-se ao olhar aquela criatura tão atormentada e tão
sofrida. Trinta anos de padecimentos incomparáveis, nas mãos de centenas de
opressores, mas, principalmente, daquele mago negro que havia escravizado sua
mente infantil e a mantivera assim prisioneira por todo o sempre.
E Kyna sussurrou:
– Durma, pobre alma, descanse do seu
tormento. Eu estou adotando você agora, em nome da Deusa. A Deusa a quer para
ela e vai lhe dar o caminho da felicidade e do amor que você tanto procurou inutilmente.
Durma, linda e suave Hilduara, quando acordar você descobrirá que está livre
para sempre de seu obsessor e que não é mais escrava de ninguém. E aprenderá
que os caminhos da Deusa são muitos e que um deles é feito especialmente para
criaturas como você, que nasceram mulheres aprisionadas em corpos de homens. A
Deusa vai libertá-la, criança, porque a sua alma é ainda a alma da criança que
foi seqüestrada aos seis anos de idade e, desde então, maltratada e seviciada
de todas as maneiras. Durma e descanse. A Deusa a absolve de todos os crimes de
guerra que você mesma se imputa. Ao acordar, o que a espera não é a morte que
você procurava, mas a vida que fugiu de você há trinta anos.
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