O CERCO – 29 Novela histórica
MILTON MACIEL
Resumo do cap. 28 – A sacerdotisa Kyna explicou a
Hilduara que existem animais tão pequenos que nunca podem ser vistos pelos
humanos. E que são animaizinhos assim os que vivem dentro das pulgas dos ratos
e causam a peste negra. Dos 1000 hunos que sobreviveram ao recíproco massacre,
400 ficaram no acampamento da ponte e 600 fugiram para o sul. Ali encontraram
os outros 5000 cavaleiros que esperavam acampados ao longo da Via Agripa.
Sabedores da terrível novidade da peste, mandaram emissários para Átila, na
retaguarda, e o rei dos hunos ordenou a imediata paralisação da marcha.
Enquanto isso, os francos voltaram da floresta para a fortaleza e, de lá,
encenaram um farsa, parecendo doentes e moribundos para os 400 hunos na ponte.
Jogaram bonecos de palha e areia do alto da muralha, dando a entender aos hunos
que eram cadáveres de vítimas da peste. Isso decidiu os invasores a tentar a
fuga a nado pelo rio, com seus cavalos, o que fizeram de imediato e lhes
custou setenta novas baixas.
OS HUNOS AVANÇAM DE NOVO
Só que a
imobilidade do exército de Átila não podia ser mantida por muito tempo. E a
decisão inevitável foi tomada: marchar para o norte, com a maior velocidade
possível! Ao chegarem à ponte derrubada, teriam que procurar alguma forma de
reconstruí-la com grandes troncos tirados da floresta, que ali era tão próxima.
Afinal, segundo o relato dos homens que tinham estado lá, os grandes pilares de
pedra, ainda que parcialmente destruídos, continuavam firmes no lugar.
Possivelmente alguns estivessem destroçados até ao nível da água, mas a parte
que importava mesmo, a submersa, essa estava firmemente ancorada no fundo
rochoso.
Os hunos
poderiam fazer uma ponte improvisada, usando grandes troncos de carvalhos e
outras árvores centenárias. Para isso tinham um importante fator e seu favor:
eles eram muito numerosos, poderiam entrar com centenas de homens na floresta e
transportar a madeira cortada facilmente, com seus cavalos fortes atrelados
para arrastá-las pelo chão. Da floresta para o rio havia um declive
relativamente suave, em alguns pontos os troncos poderiam até mesmo ser
rolados.
Havia, é
verdade, o problema da fortaleza bem junto à mata e ao rio, muito próxima da
Via Agripa. E essa fortaleza estava cheia de francos portadores da mais terrível
de todas as doenças, a peste negra. Era bem possível que o mal pudesse se
espalhar entre os hunos também, como já acontecera com a guarnição que havia
invadido a cidadela. Mas também era possível que, quando chegassem por lá, os francos já
estivessem todos mortos. De qualquer forma, era melhor apostar e ter uma
chance, do que ter que enfrentar o exército inimigo que avançava do sul, mais
numeroso e mais bem equipado que o deles.
A chance viria
no momento em que, transposto o rio Marne, eles pudessem continuar mais um dia
que fosse para o norte, quando então, com certeza, se encontrariam com o
contingente que Átila mandara regressar de Lutécia e marchar rapidamente em
direção a Châlons.
O problema era
que, a essa altura, eles não sabiam que seus emissários tinham sido interceptados
pelos francos. Que um deles tinha sido morto e que o outro, um menino visigodo,
que se convertera de aliado em inimigo, estava agora a caminho de Lutécia
levando uma mensagem falsa para entregar e uma história muito convincente
para contar. Se tivesse êxito, o encontro dos dois contingentes de Átila jamais
aconteceria. E um garoto de apenas quinze anos poderia ser o maior responsável
pela derrota dos hunos e seus aliados na Gália.
As ordens foram
dadas e os 5000 homens de cavalaria, que estavam à frente da retaguarda,
levantaram acampamento, rumando o mais rápido que podiam para Châlons e sua
floresta. Antes, porém, tiveram que aguardar que da retaguarda chegassem todos os
lenhadores e carpinteiros, devidamente munidos de seus machados, enchós e
outras ferramentas. Todos os machados em poder de hunos, alamanos e gépides
foram mandados para a vanguarda.
Dessa forma, no
amanhecer do outro dia, as sentinelas dos francos na fortaleza correram a
avisar seus superiores que um enorme destacamento de cavaleiros inimigos estava
apontando ao longe na Via Agripa.
Mas,
estranhamente, todos se detiveram a uns cinco quilômetros da ponte destruída.
Então levaram algum tempo trabalhando no barranco que ladeava o lado leste da
estrada, abrindo uma espécie de passagem para os cavalos poderem subir por ali.
Assim que isso foi possível, começaram a subir pelo talude até que ganharam a
planície superior e, a partir daí, cavalgaram céleres para a mata.
Na cidadela,
sobre as muralhas oeste e sul, os francos observavam. Era evidente o que
acontecia, exatamente como lhes havia anunciado a sacerdotisa Alana, a qual lhes
falara, na noite anterior, que os hunos e seus aliados viriam cortar grandes
toras na floresta, com um enorme contingente de homens, para depois
arrastarem-nas até a ponte. E ali, obviamente, encetarem o trabalho de montagem
de uma ponte improvisada, que permitisse a passagem de cavaleiros e de carroças
de médio porte e peso moderado.
A razão do
estranho desvio, que os obrigava a fazer um percurso mais longo e mais íngreme,
era também evidente: manter a máxima distância possível da cidadela dos francos
contaminados pela ‘peste negra’.
– Como se essa
distância pudesse ser segura em caso de uma peste real! Tolos!
– Mas, sacerdotisa
Alana, toda essa distância não garante nenhuma proteção?
– Não, meu caro
Armosic. Se existisse uma peste negra de verdade aqui, então os seus reais
disseminadores estariam espalhados por todos os lugares, não só na fortaleza,
mas na floresta também. E esses disseminadores são os RATOS, eles é que têm as
pulgas no corpo. E eles teriam que estar em um número tão grande que uma
fortaleza com tão poucos humanos como esta não lhes garantiria comida
suficiente. Os ratos da peste dos bubões vivem perfeitamente bem na mata. Se
eles estivessem aqui, então os hunos que estão agora a caminho da floresta,
estariam a caminho da peste também.
– Pelos deuses,
isso e terrível! Espero nunca ter que cruzar com nenhum lugar praguejado com
esses horríveis ratos.
– Não é muito
provável que isso ocorra agora em nenhum lugar da Europa, general. A explicação
disso nos tomaria um tempo que não temos no momento. Mas, de qualquer forma, o
importante é que os hunos não sabem disso e estão morrendo de medo da nossa “peste.”
Então está na hora de retomarmos o nosso teatrinho.
– Você diz a
farsa dos doentes e dos mortos?
– Isso mesmo! É
óbvio que eles vão apontar suas flechas para o peito de uma meia dúzia de
coitados e forçá-los a se aproximarem de nós o suficiente para ter uma visão
mais nítida. Então vamos convocar nossos atores e atrizes outra vez, porque
daqui a pouco vamos ter platéia, vamos ter casa cheia!
Dito e feito.
Dentro de uma hora, no exato momento em que o barulho das batidas frenéticas
dos machados na floresta se fazia mais impressionante, um pequeno grupo de
homens a pé foi se aproximando devagar pelo sudoeste até chegar a menos de
duzentos metros da fortaleza. Pobres diabos, tiveram que escolher entre morrer
ou morrer! A flecha agora, ou a peste
dias depois...
Obviamente,
esses homens fariam seu relato gritando à distância para os outros e não
poderiam mais se aproximar deles. Seriam abandonados por ali a sua própria
sorte, não poderiam mais se reintegrar aos seus. Poderia ser, também, que
fossem mortos depois de apresentar seu relato. Nesse caso, o opção teria sido
flecha agora ou flecha depois.
Mas lá estavam
eles, eram cinco pares de olhos esbugalhados e cheios de medo. Então, em
homenagem à distinta platéia, voou do alto da muralha leste o primeiro “cadáver”,
o primeiro boneco de palha e areia, vestido com uniforme militar. Pouco depois
foi o segundo, o “corpo” de uma menina. E o arremesso de bonecos aos fossos,
tanto ao oeste quanto ao sul, continuou calmo e cadenciado. Os pobres
espectadores tremendo!
Então, com
requintes de crueldade, o homem que conduzia a carroça cheia de “corpos”
empilhados, após sair pela ponte levadiça, contornou a muralha oeste e embicou
exatamente na direção onde estavam escondidos os observadores dos hunos, no
rumo sudoeste. Foi a gota d’água: Os cinco homens abandonaram o posto e saíram
na mais desabalada carreira até um lugar onde, parando, começaram a fazer a
maior gritaria, berrando todos ao mesmo tempo. Depois de um ou dois minutos,
ouviu-se igual alarido, vindo de um ponto um pouco mais ao sul. Evidentemente
estavam usando o velho recurso de gritadores em linha, repetindo a mesma
mensagem ao longo de distâncias grandes. Exatamente como os francos tinham
feito semanas atrás, só que usando crianças e bandeirolas de roupa.
O fato é que a
notícia da tenebrosa situação dos doentes de peste na fortaleza confirmou tudo
o que os chefes hunos esperavam, ou seja, suas piores expectativas. Isso
reforçou neles a idéia de ficarem o mais longe possível da cidadela
amaldiçoada, coalhada de doentes e de cadáveres podres dos francos covardes.
Bem feito, que morressem todos!
A incrível
calmaria dentro da tempestade
Por incrível que
pudesse parecer, com cerca de 5000 inimigos ao alcance da vista, na estrada, na
planície adjacente e na floresta, dentro da fortaleza reinava a maior paz. Kyna
pediu a Meroveu que reunisse todos os principais líderes de militares e civis, para
uma fala pública, logo depois que a “sessão de teatro” foi encerrada. Ela
explicou a todos que estariam muito mais defendidos agora pela falsa peste do
que se tivessem todo o exército de Flávio Aécio ali com eles.
– Será um grande
paradoxo, é verdade. Enquanto lá fora tudo é guerra ou preparativo para guerra,
nós viveremos aqui dentro momentos de grande paz. Até porque seremos obrigados
a viver essa paz. Não teremos outra alternativa. Vamos ter que ficar quietos
aqui dentro e arranjar o que fazer para afastar o tédio. Obviamente não temos condições de sair e dar
combate ao inimigo. Por outro lado, não existe o menor perigo que esse inimigo e
aproxime de nós, para nos impor um cerco.
– Desculpe
interromper, sacerdotisa, mas essa situação é a mais estranha e ridícula que já
vivi em toda a minha longa vida militar. Quando penso nisso agora, tenho
dificuldade de segurar o riso.
– É verdade,
Armosic. Eu sinto a mesma coisa. É impossível não rir vendo o absurdo dessa
nossa situação. A poucos minutos de nós está um inimigo que poderia nos estraçalhar
em poucos dias, um inimigo a quem nós deveríamos temer, encolhidos aqui dentro
das quatro linhas das nossas muralhas. E, no entanto, são eles que estão com
medo de nós, livres e soltos lá fora! Eles com todos os seus milhares de
guerreiros, com todas as suas armas e recursos, morrendo de medo de nós! Não, é
engraçado demais pelo absurdo da coisa! – e Meroveu não conseguiu mais conter a
gargalhada, no que foi secundado por Armosic e pela imensa maioria das pessoas
presentes.
– Deixe-os rir,
minha filha – disse Alana para Vérica, que já começava a se irritar com aquilo
– É importante, serve para que aliviem as tensões acumuladas. Deixe-os rir
quanto quiserem.
– Isso mesmo,
criança. Leve você também com mais espírito. Releve, fique calma.
– Mãe, eu sei do
que ela está precisando. Esse nervosismo, essa irritação toda, humm... Já que ela
não tem mais espiãs para esmurrar, nem gente para flechar, então...
– Tem razão,
minha filha. É melhor mandá-la desfrutar a paz da forma que mais lhe agrada
ultimamente.
E agora foras as
duas sacerdotisas que caíram na risada, embora muito discretamenete.
Ali onde as outras
teriam corado, mortas de vergonha, Vérica iluminou seu semblante, até então
carregado, com um esplêndido sorriso e mudou completamente de humor. Ficou
alegre, entusiasmada, e... apressada.
Kyna deu por
encerrada a rápida reunião, estabelecendo, em consenso com Meroveu, para não
desautorizá-lo em público, que todos os homens de prontidão podiam relaxá-la e
que, exceto os sentinelas em seus turnos, todos os outros estavam dispensados e
podiam fazer o que bem entendessem. Não havia mais risco de espécie alguma
naquela cidadela, que os hunos e seus aliados tanto temiam agora. E não havia
nada que pudessem fazer lá fora, também.
Uma sorridente e
animada Vérica aproximou-se de Meroveu e disse-lhe rapidamente ao ouvido:
– Arranje uma
explicação e voe para casa! Você está em débito comigo. E eu quero cobrar tudo
agora mesmo.
O rei dos
francos sentiu um estremecimento e um fogo a subir-lhe incontrolável pelo corpo.
Balbuciou qualquer coisa para Armosic, que sorriu, e se retirou incontinenti.
Vérica, sempre correndo como gostava de fazer, já o esperava à porta do
alojamento. Quando avistou o rei, empurrou a porta, que estava trancada, com
tanta força, que ela cedeu. A moça precipitou-se para dentro do quarto e
abaixou-se atrás da pesada mesa. Quando Meroveu passou por ela, intrigado à sua
procura, ela saltou em suas costas, abraçando-o e arrancando-lhe todas as
roupas. Quando ele quis pegá-la, ela lhe escapou e, empurrando-o pelas costas
com força, o fez entrar no aposento usado para banhos, onde estavam diversos
baldes com água.
Aí ela arrancou
de forma incrivelmente rápida sua própria roupa e, levantando o primeiro balde
enorme e cheio, com uma só mão, como se estivesse vazio, despejou a água gelada
sobre ambos. Repetiu a operação com o segundo balde, enquanto esfregava todas as partes do corpo do homem. Então não conseguiu mais se conter: Passou-lhe uma
espécie de rasteira sem violência, enquanto o empurrava pelo ombro para baixo.
Meroveu caiu sentado no chão.
Vérica colocou
seu pé direito sobre o ombro esquerdo de Meroveu, expondo assim, aos olhos
encantados do rei, toda a beleza de sua intimidade rósea, recoberta de suaves
pelos ruivo-dourados. Meroveu explodiu e ela, percebendo-o, terminou de
empurrá-lo até que ele estivesse completamente deitado no chão úmido e gelado.
E imediatamente montou-o e o cavalgou furiosamente enquanto ele pôde resistir.
Quanto ao débito
de prazer que o rei tinha com ela, também não foi dessa vez que ele conseguiu
resgatá-lo. Ao contrário, pode-se dizer que sua dívida aumentou ainda mais. Mas
desta vez não havia pressa, a guerra só existia do lado de fora da cidadela. Lá
dentro a paz absoluta permitiu que a jovem sacerdotisa usasse seus dons e
conhecimentos para reanimar seguidamente o rei dos francos, para, a cada
sucesso, exauri-lo outra vez. A noite e a madrugada os encontraram nesses mesmos fogosos jogos de amor, que só findaram quando o sol já estava começando a iluminar a floresta e
os campos de Châlons, as conhecidas planícies catalaúnicas.
E o mesmo sol, que encontrou um Meroveu exausto pelos jogos do amor, encontrou também, exaustos,
centenas de soldados hunos, que haviam passado a noite e a madrugada, assim como
a manhã e a tarde anteriores, a cortar enormes árvores centenárias, a
desgalhá-las e a carregar seus pesados troncos encosta abaixo, em direção aos
pilares da ponte. A ninguém foi permitido dormir. Não havia tempo para isso. Dormiria quem
conseguisse chegar do outro lado do rio, essa a promessa dos chefes.
CONTINUA
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