O CERCO – 19 Novela histórica
MILTON MACIEL
Resumo do cap. 18 – Vérica, por ter desobedecido a
determinação de Kyna e atacado as assassinas visigodas, recebeu uma rigorosa
punição, sendo interditada temporariamente do trabalho sacerdotal. Ao mesmo tempo,
o chefe franco Armosic descobre que Kyna tem Hilduara sob sua proteção e exige
sua imediata entrega, para executá-la. Vérica não o permite, enquadrando o
chefe na mira de sua flecha e de seu punhal. Mas Kyna, vendo que tudo aquilo
segue um roteiro evidentemente estabelecido pela Deusa, leva Armosic e Hilduara
para dentro da habitação sacerdotal.
OS CAMINHOS DE AMOR DA DEUSA
Kyna levou o
chefe Armosic e Hilduara para frente da efígie da Deusa. Em seguida acendeu uma
pequena chama de cor azulada e um delicioso perfume se espalhou imediatamente
pelo ar. Aspirando a fumaça perfumada da
chama com visível deleite, os dois começaram a sentir uma leve tontura, que foi
aumentando mais e mais, até que se converteu numa agradável sensação de euforia
e plenitude. Ambos sorriam como que em êxtase e olhavam-se nos olhos com os ânimos
desarmados, sem a hostilidade inicial que seria normal encontrar entre
combatentes inimigos. Aos poucos, ante a altar da Deusa, não havia mais
inimigos nem discórdia. Muito ao contrário, uma vibração de amor e de
equilíbrio passou a dominar todo o ambiente. E as pessoas ali sentiam uma
estranha vontade de confidenciar, de falar somente a verdade, como que para
lograrem alívio do fardo de seus segredos.
Quando Kyna viu
que a mistura de drogas havia logrado efeito total, ela se dirigiu a Armosic:
– Muito bem,
nobre guerreiro. Aproveite este raríssimo momento de felicidade total que está
sentindo e abra o seu coração, tirando dali as mágoas que o impedem de ser
feliz todos os dias.
Ao ouvir isso, o
sorriso de bobo que pairava o tempo todo nos lábios do franco começou a se
transformar num esgar de sofrimento e dor. Com um profundo gemido, ele
murmurou, entre os dentes: Geodac!...
– Ele se foi,
Armosic. Bruta é a guerra, que ceifa vidas tão inocentes e tão jovens. Você
sente muita falta dele, não é?
– Era como um
filho para mim, uma parte de mim morreu junto com ele.
– Isso você fez
os outros pensarem, Armosic, quando adotou o rapaz como filho. Mas nós sabemos
que o amor entre vocês era diferente. Vocês se amavam como homem e mulher. E
ele, o rapaz eunuco, era a mulher.
Armosic
deixou-se cair no chão, de joelhos, o rosto intensamente ruborizado. O efeito
da droga aspirada começava a passar e o homem percebeu que estava numa situação
extremamente embaraçosa. Havia falado demais. Entrou em desespero, por um
momento chegou a pensar em matar aquelas duas mulheres, que agora conheciam o
seu segredo. Mas viu que não teria coragem de fazer isso. E que ficaria, para
sempre, nas mãos daquelas duas. Mas Kyna o surpreendeu, dizendo:
– Que coisa
feia, general, pensando em matar duas pobres mulheres indefesas. E que coisa
mais feia ainda, pensar que nós somos duas chantagistas.
Armosic olhou-a
estupefato, de queixo caído, sem poder articular uma só palavra. Sentiu-se não
só ameaçado, mas completamente desnudado perante aquela mulher de estranhos
poderes. Quando conseguiu falar, suplicou:
– Senhora, pelos
deuses, não fale do que acabamos de comentar aqui para ninguém, muito menos
para meu rei. Eu lhe imploro. E à moça huna também. Tenham piedade de mim.
– E por que
deveríamos tê-la, general?
– Sei que não
mereço, mas pelo menos me deixem terminar minha missão nesta fortaleza, ajudar
meu rei a repelir o ataque dos invasores. Vocês devem saber que eu sou um
soldado de coragem e um chefe de valor. E que sou completamente leal a meu rei
Meroveu. Depois disso, juro que irei embora para muito longe e se vocês
revelarem minha verdade, não estarei mais aqui para passar por tal desonra, que
me obrigaria a tirar minha própria vida.
– Sossegue,
general Armosic. Se eu o trouxe para dentro, é porque não tinha intenção de
deixar ninguém mais ouvir o seu segredo. Nós vamos fazer uma troca, general, um
grande segredo por outro grande segredo. Há poucos minutos, quando vi o olhar
que o general deitou em Hilduara, compreendi qual a intenção da Deusa. E,
acredite-me, isso vai deixar duas pessoas muito, mas muito felizes.
Kyna deu dois
passos em direção a Hilduara e colocou uma mão no longo manto que a cobria da
cabeça aos pés. A moça compreendeu o que viria a seguir e ficou rígida, transida
de vergonha. Mas entendeu que aquilo era necessário e sabia que podia entregar
sua vida plenamente nas mãos sábias da grande sacerdotisa. Kyna então, com um
único movimento, removeu o manto negro e o corpo de Hilduara surgiu inteiro,
alvo, nu, ante os olhos perplexos e extasiados de Armosic. A moça venceu o
pudor e retirou as mãos que cruzara sobre o púbis.
– Esse é o
segredo que estou confiando a você, Armosic, em troca do seu. Esta linda mulher também é um eunuco, como
Geodac. Só que, diferente dele, é completamente feminina, totalmente mulher na
alma, sempre o foi.
Armosic tinha
levantado e seus olhos percorriam o corpo esguio de Hilduara, fixando-se muitas
vezes no pequenino pênis de menino que lhe restara, conseqüência da castração
em tenra idade. Diferente, realmente, de Geodac, que fora castrado já
adolescente e, por conseguinte, tinha um falo maior e era capaz de ter raras ereções
ocasionais. Por óbvias razões, Armosic sabia tudo sobre eunucos. E sabia, por
experiência própria, que eles eram pessoas delicadas e extremamente sensíveis.
Viu essa delicadeza espelhada em cada pequena porção do corpo de Hilduara. Mas
viu-a, principalmente, na harmonia sem par dos traços delicados do rosto, das
narinas. Viu-a ainda mais nos olhos negros, que falavam do embaraço que a moça
sentia.
Armosic deu um
passo a frente, abaixou-se, pegou o manto negro do chão, onde havia caído, e
apressou-se a cobrir com ele, novamente, o corpo nu da pretensa guerreira huna.
Quando completou o movimento, ela lhe dirigiu um olhar surpreso e agradecido.
Estava comovida, pois não lembrava de ter recebido de homem nenhum um gesto de
tal consideração e respeito em toda sua vida. Um gesto simples, rápido, alguns
poucos segundos apenas. Mas significou muito, realmente muito para Hilduara.
Significou tudo! E, olhando o general franco nos olhos, ela disse, com sua voz
musical, de timbre agudo como o das mulheres cantoras, de uma forma simples e
encantadora:
– Obrigada. Muito obrigada mesmo, meu senhor! Por
sua compreensão e sua delicadeza.
Armosic
estremeceu e voltou-se, corando, embaraçado, para Kyna:
– Por favor,
sacerdotisa, diga o que devo fazer para evitar que esta jovem venha a encontrar
a morte nas mãos dos meus homens. Como poderemos salvá-la?
– Muito bem,
general! Assim é que se fala. Fique tranquilo, nós vamos salvá-la, sim.
Primeiro nós vamos dizer para seus homens que a decisão sobre a moça será tomada
pelo rei Meroveu em pessoa. E podemos garantir a eles que o rei estará em perfeita
saúde até o fim do dia. Deixe que eu me encarrego dele. Por outro lado, há uma
coisa que vocês, francos, ainda não sabem. Se Hilduara era boa espiã a favor dos
hunos, ela poderá ser uma espiã ainda mais extraordinária a favor dos francos.
– Como assim,
sacerdotisa?
– Ora, general
Armosic, ela viveu seis anos no coração do comando huno, convivendo com todos
os grandes chefes, inclusive com Átila em pessoa. Ela sabe dez vezes mais
segredos sobre os hunos, para revelar a vocês, do que os poucos segredos
francos que ela que pôde revelar aos hunos.
– Notável, eu
não tinha pensado nisso. Nesse caso, ela é muito mais interessante viva do que
morta, para Meroveu. Que notícia maravilhosa, sacerdotisa Kyna!
– Pelo que vejo,
o senhor mudou completamente de opinião em relação a sua prisioneira.
– Ela não é
minha prisioneira! E eu espero que o rei Meroveu pense assim também. Eu não
poderia aceitar vê-la correr perigo.
– Perfeito,
general. Vejo que o senhor gostou mesmo da moça Hilduara.
– Sim, minha
senhora. Desde o primeiro minuto em que a vi. Algo nela, muito forte e muito
nobre, me comoveu de imediato. Confesso que fiquei fascinado e... e depois que
fiquei sabendo do segredo dela, que ela é como meu saudoso Geodac, mas
incomparavelmente mais bela e mais feminina...
Kyna
interrompeu-o:
– O senhor
casaria com ela?
– Neste mesmo
momento, senhora, se ela me aceitasse.
Hilduara mal
podia acreditar que aquilo estava realmente acontecendo. Quando, em sua mísera
condição de reles escrava do romano Ascilatus, poderia esperar que um dia iria
ouvir o que se afigurava como um autêntico e inesperado pedido de casamento. E
vindo de um importante chefe franco, homem de confiança do rei (e um dono de
muitas terras e propriedades, coisa que Hilduara ignorava). Além do que, aos
seus 50 anos de idade, forte e rijo, era um homem de bela figura também. Mas
uma sombra perpassou em sua mente, pois lembrou de repente sua condição de
sujeição ao romano que a escravizara de corpo e alma. Mas Kyna interrompeu-a
imediatamente:
– Minha querida,
ainda não tive tempo de lhe dar a boa notícia: seu antigo dono, o maldito
romano Ascilatus, está MORTO. Você está livre.
–Ascillatus
morto??! Eu, livre?! Livre?!! – foi emoção demais para Hilduara e ela, perdendo
os sentidos, tombou pesadamente no chão.
Armosic deu um
salto, assustado, procurando erguê-la. Mas Kyna o impediu:
– Deixe, deixe,
general, ela vai ficar bem. É ainda um pouco o efeito de algo que lhe dei para beber,
alguns momentos atrás. É bom que ela fique assim se refazendo, é muita emoção
chegando junta, coitadinha. Imagine que ela é escrava desse romano há exatos
trinta anos. E o desgraçado a explorou como objeto sexual dele desde
criancinha, depois passou a fazer fortuna, vendendo-a aos homens que pudessem
pagar o alto preço que ele lhes impunha. E, nos últimos seis anos, obrigou-a a
trabalhar como espiã para os hunos. Mas ela não é uma mulher huna, é ostrogoda.
Essa tem sido a terrível, a triste história dessa pobre moça, general. Mas
agora a Deusa a adotou como uma das suas, uma de nós, e ela está plenamente
protegida. Nada mais lhe irá acontecer de mal. Pode ter certeza.
– Isso é
maravilhoso. Então o maldito romano está morto. Como soube?
– Nós acabamos
de executá-lo, general. Morreu castrado, esvaindo-se em sangue.
– Nós acabamos? A senhora e quem mais? Há
quanto tempo? E onde foi isso?
– Bem, general,
respondo pela ordem de suas perguntas: Nós quer dizer a Deusa e eu; só que,
como braço golpeante, usamos um general huno. Há quanto tempo? Menos de uma
hora atrás. Onde foi isso? Em Tournai.
– Mas isso fica
a 300 Km daqui! Como é possível matar um homem a essa distância? E como pode
ter certeza que isso aconteceu de fato. Desculpe, não é que duvide da sua
palavra, é só que não consigo entender...
–Eu VI tudo,
general! Vi dentro da minha mente. Da mesma forma que vi seu amor por Geodac.
Da mesma forma que sei que seu rei Meroveu vai se casar com minha neta Vérica.
Armosic
arregalou os olhos ao ouvir esta última frase. Com que então aquela ruiva
terrível, que o desmoralizara em público, ia se tornar sua rainha?! Precisava
urgentemente pensar em um jeito de fazer as pazes com aquela criatura selvagem.
Selvagem e lindíssima, o rei Meroveu seria aquinhoado com uma mulher e tanto.
Isso se conseguisse domá-la, o que o general achava mais do que impossível.
Seus pensamentos foram interrompidos por Kyna, que arrematou:
– Assim como
sei, general, que o senhor vai se casar muito em breve também.
E, ante o olhar
de surpresa e expectativa do franco, Kyna simplesmente apontou para Hilduara,
ainda deitada no chão, começando a recobrar a consciência.
– Com ela!
– Sim, sim, eu
caso, eu caso! Será maravilhoso para mim. Se ela me quiser, vou ser o homem
mais feliz de toda Gália.
– Eu quero!... –
era a voz musical de Hilduara, que acabara de acordar e ouvira as últimas
frases dos dois.
– Claro que você
quer, claro que ele quer. Simplesmente porque ELA quer! Essa é a vontade da
Deusa. Eu lhe disse, Hilduara, que nós lhe daríamos a vida de volta e o amor
também. Pois agora você pode ver que não estamos brincando. ELA fez tudo
acontecer com esta velocidade estupenda. Vocês estarão – não, já estão –
totalmente envolvidos, apaixonados, porque essa é a vontade, é a energia da
Deusa. Mas é tudo somente para fazer vocês viverem a felicidade de um amor
verdadeiro.
Kyna tomou a mão
de Hilduara, colocou-a dentro da mão de Armosic, e falou:
– Muito bem,
agora tratem de conversar e de se conhecer, tudo correrá muito depressa para
vocês, anormalmente depressa. Seus segredos estão preservados, vocês não correm
riscos. As duas mulheres visigodas, que sabiam da verdade de Hilduara, já foram
sumariamente executadas, tenho certeza. Do resto cuidará a Deusa. Eu tenho que
sair, explicar ao pessoal aí fora que vocês estão conversando, porque a mulher
“huna” passou-se para o nosso lado e está fazendo revelações importantíssimas
sobre os segredos dos hunos – o que de fato vai acontecer. Mas tenho que sair
principalmente para ajudar o rei Meroveu a se recuperar do cansaço da
madrugada.
CONTINUA
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