terça-feira, 5 de março de 2013


O CERCO – 19    Novela histórica
MILTON  MACIEL

Resumo do cap. 18 – Vérica, por ter desobedecido a determinação de Kyna e atacado as assassinas visigodas, recebeu uma rigorosa punição, sendo interditada temporariamente do trabalho sacerdotal. Ao mesmo tempo, o chefe franco Armosic descobre que Kyna tem Hilduara sob sua proteção e exige sua imediata entrega, para executá-la. Vérica não o permite, enquadrando o chefe na mira de sua flecha e de seu punhal. Mas Kyna, vendo que tudo aquilo segue um roteiro evidentemente estabelecido pela Deusa, leva Armosic e Hilduara para dentro da habitação sacerdotal.
OS CAMINHOS DE AMOR DA DEUSA

Kyna levou o chefe Armosic e Hilduara para frente da efígie da Deusa. Em seguida acendeu uma pequena chama de cor azulada e um delicioso perfume se espalhou imediatamente pelo ar.  Aspirando a fumaça perfumada da chama com visível deleite, os dois começaram a sentir uma leve tontura, que foi aumentando mais e mais, até que se converteu numa agradável sensação de euforia e plenitude. Ambos sorriam como que em êxtase e olhavam-se nos olhos com os ânimos desarmados, sem a hostilidade inicial que seria normal encontrar entre combatentes inimigos. Aos poucos, ante a altar da Deusa, não havia mais inimigos nem discórdia. Muito ao contrário, uma vibração de amor e de equilíbrio passou a dominar todo o ambiente. E as pessoas ali sentiam uma estranha vontade de confidenciar, de falar somente a verdade, como que para lograrem alívio do fardo de seus segredos.

Quando Kyna viu que a mistura de drogas havia logrado efeito total, ela se dirigiu a Armosic:

– Muito bem, nobre guerreiro. Aproveite este raríssimo momento de felicidade total que está sentindo e abra o seu coração, tirando dali as mágoas que o impedem de ser feliz todos os dias.

Ao ouvir isso, o sorriso de bobo que pairava o tempo todo nos lábios do franco começou a se transformar num esgar de sofrimento e dor. Com um profundo gemido, ele murmurou, entre os dentes:  Geodac!...

– Ele se foi, Armosic. Bruta é a guerra, que ceifa vidas tão inocentes e tão jovens. Você sente muita falta dele, não é?

– Era como um filho para mim, uma parte de mim morreu junto com ele.

– Isso você fez os outros pensarem, Armosic, quando adotou o rapaz como filho. Mas nós sabemos que o amor entre vocês era diferente. Vocês se amavam como homem e mulher. E ele, o rapaz eunuco, era a mulher.

Armosic deixou-se cair no chão, de joelhos, o rosto intensamente ruborizado. O efeito da droga aspirada começava a passar e o homem percebeu que estava numa situação extremamente embaraçosa. Havia falado demais. Entrou em desespero, por um momento chegou a pensar em matar aquelas duas mulheres, que agora conheciam o seu segredo. Mas viu que não teria coragem de fazer isso. E que ficaria, para sempre, nas mãos daquelas duas. Mas Kyna o surpreendeu, dizendo:

– Que coisa feia, general, pensando em matar duas pobres mulheres indefesas. E que coisa mais feia ainda, pensar que nós somos duas chantagistas.

Armosic olhou-a estupefato, de queixo caído, sem poder articular uma só palavra. Sentiu-se não só ameaçado, mas completamente desnudado perante aquela mulher de estranhos poderes. Quando conseguiu falar, suplicou:

– Senhora, pelos deuses, não fale do que acabamos de comentar aqui para ninguém, muito menos para meu rei. Eu lhe imploro. E à moça huna também. Tenham piedade de mim.

– E por que deveríamos tê-la, general?

– Sei que não mereço, mas pelo menos me deixem terminar minha missão nesta fortaleza, ajudar meu rei a repelir o ataque dos invasores. Vocês devem saber que eu sou um soldado de coragem e um chefe de valor. E que sou completamente leal a meu rei Meroveu. Depois disso, juro que irei embora para muito longe e se vocês revelarem minha verdade, não estarei mais aqui para passar por tal desonra, que me obrigaria a tirar minha própria vida.

– Sossegue, general Armosic. Se eu o trouxe para dentro, é porque não tinha intenção de deixar ninguém mais ouvir o seu segredo. Nós vamos fazer uma troca, general, um grande segredo por outro grande segredo. Há poucos minutos, quando vi o olhar que o general deitou em Hilduara, compreendi qual a intenção da Deusa. E, acredite-me, isso vai deixar duas pessoas muito, mas muito felizes.

Kyna deu dois passos em direção a Hilduara e colocou uma mão no longo manto que a cobria da cabeça aos pés. A moça compreendeu o que viria a seguir e ficou rígida, transida de vergonha. Mas entendeu que aquilo era necessário e sabia que podia entregar sua vida plenamente nas mãos sábias da grande sacerdotisa. Kyna então, com um único movimento, removeu o manto negro e o corpo de Hilduara surgiu inteiro, alvo, nu, ante os olhos perplexos e extasiados de Armosic. A moça venceu o pudor e retirou as mãos que cruzara sobre o púbis.

– Esse é o segredo que estou confiando a você, Armosic, em troca do seu.  Esta linda mulher também é um eunuco, como Geodac. Só que, diferente dele, é completamente feminina, totalmente mulher na alma, sempre o foi.

Armosic tinha levantado e seus olhos percorriam o corpo esguio de Hilduara, fixando-se muitas vezes no pequenino pênis de menino que lhe restara, conseqüência da castração em tenra idade. Diferente, realmente, de Geodac, que fora castrado já adolescente e, por conseguinte, tinha um falo maior e era capaz de ter raras ereções ocasionais. Por óbvias razões, Armosic sabia tudo sobre eunucos. E sabia, por experiência própria, que eles eram pessoas delicadas e extremamente sensíveis. Viu essa delicadeza espelhada em cada pequena porção do corpo de Hilduara. Mas viu-a, principalmente, na harmonia sem par dos traços delicados do rosto, das narinas. Viu-a ainda mais nos olhos negros, que falavam do embaraço que a moça sentia.

Armosic deu um passo a frente, abaixou-se, pegou o manto negro do chão, onde havia caído, e apressou-se a cobrir com ele, novamente, o corpo nu da pretensa guerreira huna. Quando completou o movimento, ela lhe dirigiu um olhar surpreso e agradecido. Estava comovida, pois não lembrava de ter recebido de homem nenhum um gesto de tal consideração e respeito em toda sua vida. Um gesto simples, rápido, alguns poucos segundos apenas. Mas significou muito, realmente muito para Hilduara. Significou tudo! E, olhando o general franco nos olhos, ela disse, com sua voz musical, de timbre agudo como o das mulheres cantoras, de uma forma simples e encantadora:

 – Obrigada. Muito obrigada mesmo, meu senhor! Por sua compreensão e sua delicadeza.

Armosic estremeceu e voltou-se, corando, embaraçado, para Kyna:

– Por favor, sacerdotisa, diga o que devo fazer para evitar que esta jovem venha a encontrar a morte nas mãos dos meus homens. Como poderemos salvá-la?

– Muito bem, general! Assim é que se fala. Fique tranquilo, nós vamos salvá-la, sim. Primeiro nós vamos dizer para seus homens que a decisão sobre a moça será tomada pelo rei Meroveu em pessoa. E podemos garantir a eles que o rei estará em perfeita saúde até o fim do dia. Deixe que eu me encarrego dele. Por outro lado, há uma coisa que vocês, francos, ainda não sabem. Se Hilduara era boa espiã a favor dos hunos, ela poderá ser uma espiã ainda mais extraordinária a favor dos francos.

– Como assim, sacerdotisa?

– Ora, general Armosic, ela viveu seis anos no coração do comando huno, convivendo com todos os grandes chefes, inclusive com Átila em pessoa. Ela sabe dez vezes mais segredos sobre os hunos, para revelar a vocês, do que os poucos segredos francos que ela que pôde revelar aos hunos.

– Notável, eu não tinha pensado nisso. Nesse caso, ela é muito mais interessante viva do que morta, para Meroveu. Que notícia maravilhosa, sacerdotisa Kyna!

– Pelo que vejo, o senhor mudou completamente de opinião em relação a sua prisioneira.

– Ela não é minha prisioneira! E eu espero que o rei Meroveu pense assim também. Eu não poderia aceitar vê-la correr perigo.

– Perfeito, general. Vejo que o senhor gostou mesmo da moça Hilduara.

– Sim, minha senhora. Desde o primeiro minuto em que a vi. Algo nela, muito forte e muito nobre, me comoveu de imediato. Confesso que fiquei fascinado e... e depois que fiquei sabendo do segredo dela, que ela é como meu saudoso Geodac, mas incomparavelmente mais bela e mais feminina...

Kyna interrompeu-o:

– O senhor casaria com ela?

– Neste mesmo momento, senhora, se ela me aceitasse.

Hilduara mal podia acreditar que aquilo estava realmente acontecendo. Quando, em sua mísera condição de reles escrava do romano Ascilatus, poderia esperar que um dia iria ouvir o que se afigurava como um autêntico e inesperado pedido de casamento. E vindo de um importante chefe franco, homem de confiança do rei (e um dono de muitas terras e propriedades, coisa que Hilduara ignorava). Além do que, aos seus 50 anos de idade, forte e rijo, era um homem de bela figura também. Mas uma sombra perpassou em sua mente, pois lembrou de repente sua condição de sujeição ao romano que a escravizara de corpo e alma. Mas Kyna interrompeu-a imediatamente:

– Minha querida, ainda não tive tempo de lhe dar a boa notícia: seu antigo dono, o maldito romano Ascilatus, está MORTO. Você está livre.

–Ascillatus morto??! Eu, livre?! Livre?!! – foi emoção demais para Hilduara e ela, perdendo os sentidos, tombou pesadamente no chão.

Armosic deu um salto, assustado, procurando erguê-la. Mas Kyna o impediu:

– Deixe, deixe, general, ela vai ficar bem. É ainda um pouco o efeito de algo que lhe dei para beber, alguns momentos atrás. É bom que ela fique assim se refazendo, é muita emoção chegando junta, coitadinha. Imagine que ela é escrava desse romano há exatos trinta anos. E o desgraçado a explorou como objeto sexual dele desde criancinha, depois passou a fazer fortuna, vendendo-a aos homens que pudessem pagar o alto preço que ele lhes impunha. E, nos últimos seis anos, obrigou-a a trabalhar como espiã para os hunos. Mas ela não é uma mulher huna, é ostrogoda. Essa tem sido a terrível, a triste história dessa pobre moça, general. Mas agora a Deusa a adotou como uma das suas, uma de nós, e ela está plenamente protegida. Nada mais lhe irá acontecer de mal. Pode ter certeza.

– Isso é maravilhoso. Então o maldito romano está morto. Como soube?

– Nós acabamos de executá-lo, general. Morreu castrado, esvaindo-se em sangue.

Nós acabamos? A senhora e quem mais? Há quanto tempo? E onde foi isso?

– Bem, general, respondo pela ordem de suas perguntas: Nós quer dizer a Deusa e eu; só que, como braço golpeante, usamos um general huno. Há quanto tempo? Menos de uma hora atrás. Onde foi isso? Em Tournai.

– Mas isso fica a 300 Km daqui! Como é possível matar um homem a essa distância? E como pode ter certeza que isso aconteceu de fato. Desculpe, não é que duvide da sua palavra, é só que não consigo entender...

–Eu VI tudo, general! Vi dentro da minha mente. Da mesma forma que vi seu amor por Geodac. Da mesma forma que sei que seu rei Meroveu vai se casar com minha neta Vérica.

Armosic arregalou os olhos ao ouvir esta última frase. Com que então aquela ruiva terrível, que o desmoralizara em público, ia se tornar sua rainha?! Precisava urgentemente pensar em um jeito de fazer as pazes com aquela criatura selvagem. Selvagem e lindíssima, o rei Meroveu seria aquinhoado com uma mulher e tanto. Isso se conseguisse domá-la, o que o general achava mais do que impossível. Seus pensamentos foram interrompidos por Kyna, que arrematou:

– Assim como sei, general, que o senhor vai se casar muito em breve também.

E, ante o olhar de surpresa e expectativa do franco, Kyna simplesmente apontou para Hilduara, ainda deitada no chão, começando a recobrar a consciência.

– Com ela!

– Sim, sim, eu caso, eu caso! Será maravilhoso para mim. Se ela me quiser, vou ser o homem mais feliz de toda Gália.

– Eu quero!... – era a voz musical de Hilduara, que acabara de acordar e ouvira as últimas frases dos dois.

– Claro que você quer, claro que ele quer. Simplesmente porque ELA quer! Essa é a vontade da Deusa. Eu lhe disse, Hilduara, que nós lhe daríamos a vida de volta e o amor também. Pois agora você pode ver que não estamos brincando. ELA fez tudo acontecer com esta velocidade estupenda. Vocês estarão – não, já estão – totalmente envolvidos, apaixonados, porque essa é a vontade, é a energia da Deusa. Mas é tudo somente para fazer vocês viverem a felicidade de um amor verdadeiro.

Kyna tomou a mão de Hilduara, colocou-a dentro da mão de Armosic, e falou:

– Muito bem, agora tratem de conversar e de se conhecer, tudo correrá muito depressa para vocês, anormalmente depressa. Seus segredos estão preservados, vocês não correm riscos. As duas mulheres visigodas, que sabiam da verdade de Hilduara, já foram sumariamente executadas, tenho certeza. Do resto cuidará a Deusa. Eu tenho que sair, explicar ao pessoal aí fora que vocês estão conversando, porque a mulher “huna” passou-se para o nosso lado e está fazendo revelações importantíssimas sobre os segredos dos hunos – o que de fato vai acontecer. Mas tenho que sair principalmente para ajudar o rei Meroveu a se recuperar do cansaço da madrugada.

CONTINUA

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