segunda-feira, 11 de março de 2013


O CERCO – 23   Novela histórica
MILTON  MACIEL

Resumo do cap. 22 – Hilduara descobre, interrogando o jovem prisioneiro huno, que o rapaz é apenas um menino e que não é huno, porém ostrogodo, com ela mesma. O menino, cuja idade verdadeira é de quinze anos incompletos apenas, declara odiar os hunos, que destruíram sua aldeia natal e mataram sua família. Serve-os, uma vez que os ostrogodos são agora aliados dos hunos, mas na esperança de um dia encontrar o general huno que comandou esse massacre, quando então espera vingar-se. A sacerdotisa Kyna confirma que isso tudo é verdade e o rapaz poderá ser um aliado interessante para os francos, principalmente em função de uma idéia que Hilduara apresentou em segredo a Kyna, e que obteve dela entusiástica aprovação.

A BATALHA DA TÁTICA DA MULTIPLICAÇÃO

Feitos todos os ensaios e treinamentos durante a tarde, quando começou a chegar o início da noite o rei Meroveu começou a colocar as duas linhas de cavalaria de que dispunha. À frente, os 200 cavaleiros visigodos e os 20 únicos cavaleiros francos, todos sob o comando da sacerdotisa Alana, que montava sua fiel e veloz Almarak. Esse grupo de cavaleiros contornou o “lago” Châlons e atravessou o rio, começando a marchar lentamente em direção ao novo acampamento huno, situado agora a menos de dois quilômetros da passagem no Marne. Logo as sentinelas dos hunos detectaram esse movimento de tropas e correram a avisar seus comandantes. Desses, o principal jazia entre a vida e a morte, atingido que fora pela gigantesca flecha de Vérica dias atrás. Os outros dois estavam ainda perplexos, sem saber ao certo que atitude tomar.

Tinham perdido, entre mortos e feridos, mais de quinhentos homens, de modo que seus efetivos capazes de combater estavam agora reduzidos a pouco mais de 1400 homens. Pelos cálculos deles, os francos deviam ter mais ou menos essa quantidade de guerreiros disponíveis também. Isso ocorria porque estes haviam vestido como soldados a maior parte da população civil da fortaleza, no dia do primeiro ataque huno. Quando, na verdade, os francos contavam com 540 guerreiros somente, entre arqueiros e infantaria, os hunos haviam somado a estes mais de 700 civis vestidos com uniformes militares e mantidos a prudente distância do “lago”; E os 200 cavaleiros visigodos que haviam visto chegar por ocasião do segundo ataque repelido pelos francos.

Quando tentaram transpor o traiçoeiro fosso da planície, usando cordas para atravessá-lo,  a mulher franca de cabelos ruivos os havia atacado com mortíferas setas gigantes, que além de vencerem uma distância impossível para qualquer outro arco, huno, franco ou romano, ainda caíram sobre eles trazendo cargas infernais de um material que explodia e gerava violentos incêndios. Essas flechas de longa distância e esse material terrível que elas traziam, totalmente desconhecido para os hunos, é que os mantiveram ali no acampamento, sem coragem de empreender um novo ataque e sem justificativa para desistirem do cerco à cidadela.

O grande receio dos hunos era que todos os arqueiros francos, além daquela mulher diabólica, começassem de repente a cuspir aquelas flechas incendiárias gigantes em conjunto, contra os invasores. Ora, se uma reles mulher podia manusear aquele maldito arco gigante, era evidente que todos os homens de arco também podiam fazê-lo, e com muito mais facilidade.

Infelizmente suas espiãs dentro da fortaleza há vários dias não lhes mandavam mais informações, desde que a tentativa de transposição do fosso com cordas fora abortada pela mulher ruiva amaldiçoada e seus explosivos incendiários. Tudo indicava que as três espiãs e assassinas haviam sido capturadas e, se afirmativo, imediatamente executadas pelos francos.

Por isso foi com enorme surpresa que os dois chefes hunos receberam a informação que os francos se preparavam para atacá-los. Ordenando que todos os homens preparassem seus cavalos e arcos, os chefes subiram até o topo da torre de observação que haviam erguido à entrada de seu acampamento aberto. Dali, puderam ver, conforme anunciado por suas sentinelas, que os cavaleiros visigodos já haviam transposto o rio e estavam agora estacionados a menos de 800 metros de distância do acampamento.

Ora, aquilo seria arrematada loucura, se só aqueles 200 e poucos homens resolvessem atacar os mais de 1400 soldados hunos. A contagem dos visigodos foi confirmada por três batedores, os quais receberam ordens de se aproximar mais deles, até chegarem ao limite de alcance das flechas gigantes do inimigo. Eram ao todo 220 homens. Era evidente que aquilo só podia ser uma armadilha. Os visigodos se expunham, os hunos saíam do acampamento e cavalgavam de encontro a eles. Então os provocadores fugiriam, atravessariam o rio e sabe-se lá que armadilhas infernais não esperavam os cavaleiros hunos do outro lado daquele rio desgraçado. Os chefes hunos concordaram que não deveriam mover um só dos seus cavaleiros, que deveriam aguardar montados –  como montados estavam os visigodos – na área do acampamento.

Ao alcance da vista dos batedores hunos, que mandavam constantes recados para aos chefes, os cavaleiros visigodos esperavam sob a liderança de seu comandante. Enquanto isso, o sol ia declinando rapidamente no oeste. Antes que isso acontecesse por completo, uma visão aterradora mostrou-se para os hunos. A mulher diabólica de cabelos de fogo e túnica branca, chegou carregando seu arco gigantesco e uma aljava enorme, cheia de flechas que mais pareciam pequenas lanças. Na ponta da flecha que ela tinha ao arco, um volume estranho estava amarrado: o explosivo, na certa!

Mas o que aconteceu a seguir deixou os hunos completamente apavorados. A mulher ruiva era uma FEITICEIRA! Estava explicado porque ela tinha tanta força assim, coisa que quase nenhum homem poderia ter. Uma bruxa! Tiveram certeza disso quando constataram com seus próprios olhos estarrecidos, que a feiticeira, de repente, havia SE MULTIPLICADO! Agora existiam TRÊS daquelas figuras horrendas, a mesma cara, a mesma roupa, os mesmos cabelos de fogo, completamente iguais. E, o pior: o mesmo arco inacreditavelmente grande na mão. Não havia dúvida, era bruxaria! A criatura começara se multiplicando em três. Em quantas poderia chegar a se multiplicar? 10, 100, 1000? Para os demônios e suas criaturas tudo era possível. O grande ataque das feiticeiras era iminente. O que poderiam fazer contra elas os guerreiros hunos? Estavam acostumados as lutar com homens e de homens nunca tinham medo. Mas lutar contra o sobrenatural, contra demônios e feiticeiras?! O terror foi se instalando no meio das hostes invasoras, à medida que anoitecia.

Os francos acenderam enormes tochas, que iluminavam perfeitamente o espaço ao redor de cada uma das efígies da feiticeira diabólica. De início três, as tochas começaram a se multiplicar, e era só uma questão de tempo para mais uma reprodução da feiticeira maldita se tornar visível. Já eram seis agora! Nesse ponto, os três batedores não agüentaram mais o medo e, coerentes com o nome, bateram... em retirada. Chegaram esbaforidos, aterrorizados, contando aos demais soldados e aos chefes que fugiram por que as bruxas se multiplicavam numa velocidade alucinante. E, para que não ficasse mal de todo para eles, para não pareceram tão covardes, encarregaram-se de inflacionar o número total de bruxas multiplicadas: Vinte, disse um. Que vinte! Muito mais de cinqüenta, afirmou o outro. Que cinqüenta! Quando tive que correr, avançavam, só contra mim, mais de cem bruxas armadas com os grandes arcos de flechas explosivas.

O moral das tropas caiu a zero. Um enorme número de cavaleiros propôs que fugissem imediatamente dali, antes que a bruxa de cabelos de fogo, multiplicada em centenas, os cercasse de fogo real, atirando simultaneamente centenas de flechas incendiárias gigantes.

A noite havia caído plenamente e agora tudo estava escuro, exceto o local onde várias dezenas de novas tochas, fincadas no chão, marcavam o lugar onde iam surgindo, a todo instante, novas multiplicações da feiticeira dos francos. Os chefes discutiam acaloradamente. Um deles concordava com a maioria da tropa, defendendo que abandonassem aquele campo de batalha eivado de demônios e tratassem de salvar a própria pele, fugindo para o norte, de volta para o seu lugar de origem, na segurança de Cologne, a uns bons 200 quilômetros daquele lugar demoníaco.

Mas o outro chefe resistia, dizendo que tinham a obrigação de defender a honra dos hunos, ainda que tivessem todos que perecer, lutando contra os demônios, as bruxas, e os visigodos. Ou eles preferiam enfrentar o pelotão de execução do próprio Átila, ao qual ele se encarregaria pessoalmente de denunciá-los? Disse isso empunhando seu arco, ameaçando matar o primeiro que debandasse. Isso fez os homens que já começavam a se afastar do acampamento retrocederem. Mas nesse instante algo novo – e ainda pior – aconteceu.

Viram quando uma das feiticeiras levou uma corneta à boca e fez soar uma nota aguda e estridente. Imediatamente, na planície dos dois lados da estrada principal, na estrada inteira visível, sobre a grande ponte de pedra romana que atravessava o rio, na planície do lado de cá do rio, acenderam-se milhares de tochas em movimento, marcando o avanço de uma tropa de infantaria de proporções enormes.

E, como se não bastasse, a um novo toque de corneta da bruxa, começou a se deslocar um outro enorme grupo de tochas que, pelo espaçamento maior e modo característico de marcha, só podia ser uma tropa de cavalaria. Esses cavaleiros, às centenas também, avançavam pela planície íngreme que margeava a estrada, já mais próxima à muralha oeste da cidadela.

Os hunos apavorados fizeram rápidos cálculos mentais e, na confusão reinante, suas avaliações do número de inimigos iam desde dois mil até dez mil homens em armas. Mas não era isso o que os mantinha mais apavorados. Era o sobrenatural, a bruxa ruiva multiplicada e suas centenas de arcos gigantes com flechas mortais. E então, para fazer tudo ficar pior, os cavaleiros visigodos começaram a avançar lentamente em direção ao acampamento huno. À frente deles, agora conduzidas por criaturas medonhas, corcundas,  de muito baixa estatura, certamente gnomos a serviço da bruxa, vinham as dezenas de tochas. E, do meio delas, saiu a primeira flecha incendiária, que caiu a menos de 50 metros do acampamento.

Os atacantes continuavam a avançar sem parar, lentamente, de forma que, um minuto depois de a primeira flecha ser lançada do centro do grupo, uma outra flecha foi lançada a partir do lado direito. E essa explodiu a menos de 20 metros de onde estavam os primeiros homens hunos, que fugiram apavorados para o norte, ignorando os gritos do chefe que resistia à idéia de fuga. Os primeiros fogos começaram a se alastrar em direção ao acampamento. Os visigodos e a bruxa multiplicada continuavam seu lento avanço. Atrás deles avançava a imensa massa de infantaria e o outro contingente de cavalaria.

Nesse exato momento, mais uma coisa insólita aconteceu: um cavaleiro huno, que cavalgava a grande velocidade, apareceu vindo do lado esquerdo da margem do rio, como quem havia margeado a floresta e descido ao longo das corredeiras. A confusão no acampamento era tanta que ninguém chegou a interceptá-lo. Quando ele saltou do cavalo, todos notaram que era um menino ainda, muito alto, mais ainda um menino. Não estranharam,  porque era uma pratica comum dos hunos mandar mensageiros assim, que podiam facilmente se misturar aos habitantes locais, quando em risco de serem apanhados e, fingindo-se de mudos e retardados mentais, conseguiam enganar a todos, salvando a mensagem que levavam escondida no corpo e na memória.

O rapaz falou aos gritos, em desespero:

– Fujam, fujam rápido enquanto têm tempo! Sou um emissário de Átila em pessoa, levo uma mensagem para o exército do norte. Contornei há pouco essa massa de visigodos que está chegando. Tenho informações que eles são mais de doze mil homens. E, fiquei sabendo agora, há uma horda de bruxas, que subiu diretamente do inferno e que vai avançar sobre nosso exército para arrancar e comer a cabeça de cada homem que puderem pegar. Elas de alimentam de miolos e sangue de soldados valentes, por isso preferem os hunos e os alamanos, não os francos covardes, com os quais se aliaram para nos atacar. Fujam, andem logo, façam como eu!

E dando um salto monumental sobre o cavalo, partiu a toda brida em direção ao norte, demandando a estrada principal.

CONTINUA

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