sexta-feira, 15 de março de 2013


O CERCO – 27  Novela histórica
MILTON  MACIEL

OS HUNOS TOMAM A CIDADELA: A PESTE!

Os vinte batedores hunos dispararam a galope em direção a seus companheiros, para colocá-los a par da terrível novidade: a ponte da Via Agripa sobre o rio Marne tinha sido destruída! Em coisa de mais meia hora, começou a aparecer na estrada uma impressionante massa de homens e cavalos que nunca parava de crescer. Era a primeira linha da vanguarda de cavaleiros, num total de 3 600 homens, todos hunos, uma das divisões de elite da cavalaria de Átila.

A larga estrada ficou literalmente coalhada de homens montados, desde o ponto mais extremo, visível ao sul, até à beira do rio Marne, onde os restos da imponente ponte compunham agora um quadro de desolação. Vários cavaleiros de maior hierarquia se deslocaram até à cabeceira sul da ponte e examinaram toda a obra de destruição levada a efeito pelo inimigo. Esse homens apearam e, mostrando grande agitação, ficaram vários minutos a discutir entre si, obviamente estabelecendo uma estratégia de ação.

A primeira deliberação foi a de mandar emissários imediatamente levar a má notícia para Átila. E, também, para o segundo destacamento de cavaleiros, um contingente de 5000 mil cavaleiros hunos, alamanos e gépides, que avançava a uma curta distância de cerca de duas a três horas de marcha não-acelerada, em relação ao pelotão de vanguarda, que estava gora à beira da ponte destruída, em Châlons. A este segundo destacamento seria recomendado que interrompesse imediatamente seu avanço e procurasse um lugar adequado para acampar, principalmente um lugar onde houvesse larga disponibilidade de capim para seus mais de 5000 cavalos. Precisariam de água abundante também.

Poucos minutos depois, um grupo de doze cavaleiros escolhidos partiu a todo galope em direção à retaguarda: eram os emissários da má notícia. Na seqüência os comandantes, ao cabo de mais algum tempo de confabulação, separaram todos os cavaleiros montados  em dois grupos. A dois mil homens, constituintes de dois regimentos distintos, foi ordenado que descessem das montarias e começassem a improvisar um grande acampamento, uma vez que teriam que estacionar por ali por algum tempo.

Os restantes 1600 homens foram mandados para a cidadela. O relatório mais recente que os chefes tinham recebido dava conta que ela muito provavelmente estaria abandonada e aberta, já que os francos, que os hunos desprezavam por julgá-los covardes, com certeza já teriam fugido. A fortaleza, constava no relatório, tinha capacidade para alojar até 1500 pessoas, já forçando seu limite máximo. Mas, rotineiramente, nunca tinha uma guarnição de mais de 50 homens de armas, porque o ponto onde ela estava há muito tempo não era palco de combates. Portanto, os chefes hunos não esperavam encontrar lá dentro qualquer despojo de valia e nem mesmo sobras de alimentos deixados pelos francos em fuga.

Mas uma coisa o relatório enfatizava: a fortaleza tinha uma nascente inesgotável de água de altíssima qualidade, que fora a razão mesma da construção da cidadela naquela colina a leste da Via Agripa. Com esse manancial permanente contavam os chefes hunos para abastecer suas tropas.

Quando os cavaleiros começaram a se deslocar para a fortaleza, margeando o rio Marne, puderam ver que, do lado oposto, possivelmente usando uma passagem ou portão na muralha sul, um bando de cerca de vinte cavaleiros partia em alta velocidade em direção à floresta. Ah, os francos covardes! Fugiam como coelhos assustados quando os hunos se aproximavam. Então aquela era a guarnição da fortaleza: meros vinte homens. Ridículo! Como coelhos medrosos que eram, que se embarafustassem pela floresta, lugar mais adequado para coelhos fujões não havia. Os hunos é que não se dariam ao trabalho de entrar na mata e perder horas preciosas procurando um punhado inexpressivo de covardes.

Foi quando aceleraram o galope, ao atingir a evidente passagem, rebaixada pelo uso e passar constante de cavalos e homens, no meio daquele capim altíssimo, que margeava o rio e atingia a planície toda, que os cavaleiros hunos tiveram a primeira surpresa: subitamente, no meio daquele capinzal gigantesco, a terra abriu-se num pantanal terrível e fundo, onde mais de uma centena de cavalos começaram a se debater e afundar, derrubando seus cavaleiros. Progressivamente, mais e mais cavaleiros se viram tragados ou pelas águas ou pelo lamaçal – este ainda pior, porque não permitia que nem animais nem homens pudesse nadar, mantendo-os presos e afundando mais à medida que se debatiam para sair.Infelizmente para os hunos, o tal relatório não fazia a menor menção ao terrível “Lago” Châlons.

Passados o primeiros momentos de surpresa e pânico, os líderes mandaram os homens desmontar e começar a procurar alguma passagem seca que permitisse vadear ou contornar o medonho pantanal. Acabaram descobrindo as duas passagens que contornavam o “lago” a leste e oeste e então fizeram seguir por ali os cavaleiros que não tinham perdido suas montarias, divididos em duas colunas estreitas que avançaram lentamente até terem certeza que estavam de novo em terra firme.

Os cavaleiros foram então redispostos em linhas paralelas e retomaram o avanço em direção à cidadela. Progrediram rapidamente sem problemas até que o solo, de repente, começou a se abrir aos pés dos seus cavalos: tinham atingido o grande fosso seco escondido, cuidadosamente camuflado pelos francos novamente. Mais um terrível transtorno para os hunos, desta vez com perdas muito mais sérias e mais numerosas do que no “lago”. Ao todos, as baixas já ultrapassavam a casa dos duzentos homens e animais.

De qualquer forma, o fosso era de extensão finita e os cavaleiros invasores acabaram descobrindo como contorná-lo pelos dois lados. Chegaram, assim, à beira da muralha norte. E, para sua grande surpresa, constaram que o grande portão estava fechado e a ponte levadiça levantada! Ao redor da muralha, o fosso profundo, cheio de água límpida corrente.

– Malditos! – vociferou um dos líderes – Os covardes fogem assustados, mas deixam a ponte levadiça levantada. Como sabemos que essa é a única entrada para esta fortaleza, é evidente que eles fugiram pelo lado sul usando cordas, já tendo deixado os cavalos prontos e cuidados lá embaixo.

– Sim, até porque bastariam uns oito homens fortes para fazer o fechamento do portão e o erguimento da ponte. Então esses devem ter descido pelas cordas, enquanto os outros os aguardavam com os cavalos deles lá embaixo. O que esses covardes querem é nos dar trabalho. Pois muito bem, vamos mostrar a eles que se enganaram conosco.

Alguns cavaleiros foram mandados ao acampamento improvisado junto às ruínas da ponte e, pouco depois, voltavam com cordas e escadas de corda, para escalada, com seus grandes ganchos na ponta. Mas a muralha era alta demais e nenhum homem tinha força suficiente para arremessar a ponta com o pesado gancho tão alto. Tiveram então que perder um bom tempo abrindo orifícios na parede, onde enviavam pedaços de ferro, retirados das escadas de corda que tinha trazido do acampamento também. Dessa forma, depois de algum tempo e muitas tentativas, homens que haviam subido pela escada improvisada com os ferros na parede, conseguiram enfim alcançar o topo da muralha norte com os ganchos das cordas/

Aí subiram rapidamente e, quando estavam em número suficiente, conseguiram acionar o mecanismo que descia a ponte levadiça e abriram o grande portão a seguir. O trabalho todo lhes tinha tomado cerca de três horas, de modo que o sol já declinava no horizonte quando todos os cavaleiros hunos que não ficaram tombados no “lago” ou no grande fosso seco penetraram exultantes na fortaleza. Arrancaram e queimaram a bandeira dos francos e hastearam no lugar a bandeira negra dos hunos. Vieram em massa para o topo das muralhas e comemoraram em altos brados, acenando para seus companheiros do acampamento, que começaram a comemorar também.

Mas comemoração mesmo veio a seguir, quando os soldados que examinavam as construções em busca do que pilhar deram com a grande sala de banquetes da fortaleza. Correram a avisar os chefes e estes vieram correndo para examinar os barris de vinho encontrados. Abriram alguns deles ao acaso, cheiraram cuidadosamente a bebida, investigando a possível presença de veneno. Obviamente, não havia. Era vinho gaulês da região de Champagne, vinho envelhecido da melhor quantidade. Os chefes resolveram que era melhor que eles o bebessem imediatamente, para não ter que dividir com mais 2000 homens, aqueles que estavam acampados. E a boa notícia se espalhou rapidamente. Os hunos invadiam casas e alojamentos de soldados em busca de copos e outros recipientes onde pudessem beber o famoso vinho gaulês daquela região, um dádiva dos deuses, um verdadeiro achado.

Pelos nomes pintados nos barris, os chefes concluíram rapidamente que aquela era uma partida de vinho que estava sendo comercializada, tendo sido desembarcada na fortaleza por alguma razão que não lhes interessava. O importante era beber tudo o que pudessem daqueles mais de 60 barris de um verdadeiro néctar dos deuses. E se embriagar, para comemorar a fácil tomada da cidadela e se compensar pela longa e cansativa marcha de tantos dias pela Via Agripa. Azar dos outros companheiros que não foram destacados para ocupar a fortaleza.

Também chamou a atenção dos soldados invasores a grande quantidade de bicas de água e chafarizes instalados na cidadela, onde o povo vinha pegar água da mais incrível qualidade. Mataram sua sede com a água pura dos francos e o resto deixaram para que  a saciasse o sumarento vinho gaulês.

Os homens conseguiram acabar com todo o vinho que existia nos 62 barris e um grande número deles emborcou pelo chão mesmo, tão bêbados ficaram. E, em função dessa enorme bebedeira, os hunos acabaram dormindo muito cedo.

No outro dia de manhã, quando os soldados começaram a acordar, uma tenebrosa surpresa os aguardava. A maioria deles apresentava coriza renitente, tinham grandes manchas escuras na pele das pernas, dos braços e do rosto. As manchas iam aumentando visivelmente de volume e se transformando em bolhas purulentas. A coceira produzida era infernal e, ao coçar as bolhas, os homens as estouravam e um líquido amarelado e fétido se esparramava  sobre eles. Os sintomas era evidentes:

A  PESTE!!!

O grito de pavor se espalhou e se multiplicou às centenas, à medida que a quase totalidade dos homens e, a totalidade absoluta dos que haviam bebido muito vinho, começaram a apresentar, todos eles, os sintomas inequívocos da peste bubônica, conhecida ali na Europa como PESTE NEGRA! Então os hunos compreenderam porque razão os francos tinham abandonado a cidadela de repente, a ponto de deixarem para atrás aquela preciosa carga de vinhos finos. Certamente tinham sido afetados alguns pela peste. Ou outros os deixaram presos na fortaleza e trataram de fugir para a floresta, antes que fossem contaminados. Os homens, cerca de vinte deles, que haviam visto a fugir quando chegaram, deviam ser os infectados.

O pavor foi imediato e terrível. Sabia-se que a peste negra era fatal, não havia cura possível e a morte sobrevinha entre o terceiro e quinto dia após a parecerem os primeiros sintomas. Durante esse tempo, os padecimentos físicos eram  enlouquecedores. Os chefes na fortaleza decidiram mandar rapidamente um grupo de três homens, que ainda não mostravam sinal de contaminação, relatar aos companheiros no acampamento a desgraça que lhes sobreviera. Partiram a todo galope, enquanto na cidadela se alastrava, com os sintomas da doença, o mais completo desespero. Praticamente todos os homens tinham agora os mesmos sintomas.

Quando os três mensageiros chegaram ao acampamento da ponte, os chefes chamados a ouvi-los mandaram que eles não ousassem desmontar e que, dada a notícia, voltassem imediatamente para a cidadela. Os homens, em desespero e dizendo que os deuses os tinham poupado da doença, tentaram se aproximar mais. Todos levantaram as roupas, para mostrar que não tinham as machas e os boubões, como eram chamadas as grandes bolhas. Mas, infelizmente para ele, um dos homens já estava desenvolvendo manchas nas pernas. Quando, aos gritos, ele se prostrou no chão implorando ajuda, os soldados imediatamente o crivaram de flechas, matando-o instantaneamente. Ninguém ousou se aproximar, um homem correu a buscar óleo para tochas e o corpo do morto foi imediatamente queimado.

Os outros dois, apavorados, foram poupados, recebendo ordem de voltar imediatamente para a fortaleza com uma ordem terrível: que todos os homens que lá estavam, lá deviam permanecer. Quem ousasse sair da fortaleza e dirigir-se ao acampamento seria recebido como inimigo, com uma saraivada de flechas.

Hunos contra hunos

Os dois emissários voltaram incontinenti à fortaleza, levando a horrível notícia. Lá a ordem dos chefes hunos do acampamento provocou uma enorme onde de revolta. Se ficassem ali, cortados de seus suprimentos de alimentos e remédios, iriam todos perecer em poucos dias. Não tinham a menor chance. E, rapidamente, chegaram à conclusão que, por menores que fossem suas chances, deviam lutar pela vida. Muitos concordaram que seria preferível morrer rapidamente pelas flechas de seus companheiros, do que se acabar ao longo de dias de sofrimento atroz, com dores lancinantes e possível cegueira. Já outros achavam que, se eles iam morrer de peste e os outros desgraçados haviam tido uma atitude tão mesquinha para com eles, então eles mereciam receber também o mesmo destino, a mesma maldição. E eles a levariam pessoalmente para os desgraçados.

Então resolveram todos, soldados e chefes, que montariam em seus cavalos, contornariam os perigosos obstáculos e armadilhas de fosso e pântano dos francos e marchariam contra os hunos acampados.

E, por volta de duas da tarde daquele dia, o que se viu foi uma batalha sangrenta, terrível, mas absolutamente inimaginável: hunos contra hunos, 1400 homens de um lado, 2000 do outro, todos a cavalo, todos disparando setas mortífersa, num feroz combate que acabou sem vencedores, com mais de 2600 mortos ou feridos gravemente. Os que não foram atingidos foram os homens que, estando no acampamento, mas guardando posições mais ao sul, ao longo da estrada, de repente resolveram fugir em desabalada carreira, quando viram que o batalhão de pesteados marchava efetivamente contra o do acampamento. Correram não por medo do combate, mas, evidentemente, por medo da peste.

Nas poucas centenas de sobreviventes, os que tinham chegado da fortaleza com as horríveis manchas negras, com as grandes bolhas pelo corpo viram então acontecer um milagre. Inúmeros deles prostraram-se de joelhos, agradecendo aos deuses pela cura milagrosa pela qual estavam passando. À medida que as horas foram escorrendo, os bubões e as manchas começaram a sumir do corpo de todos eles. Estavam salvos! A misericórdia divina tivera piedade deles. Então começaram a conjecturar que, se os chefes e os soldados do lado de cá não tivessem sido tão mesquinhos, não teria sido evitada a horrenda carnificina que havia aniquilado com quase toda a vanguarda de elite da cavalaria de Átila.

Pela estrada, rumo ao sul, galopavam assustadíssimos os cavaleiros que haviam preferido fugir ao combate e ao contato com os doentes. Levavam uma notícia terrível para a retaguarda.

Na floresta, onde permaneciam tranquilamente acampados, sem usar fogo ou fazer alarido, todos os habitantes da fortaleza celebravam, comovidos, o desdobramento da inacreditável batalha de hunos contra hunos.

Vérica, à sombra de uma grande carvalho, comentava com as outras sacerdotisas:

– Foi exatamente como eu vi, Avó: dois grupos de cavaleiros mais ou menos idênticos marchando um contra o outro e flechando-se mutuamente. Só que eu interpretei errado, pensando que o grupo que parecia sair da cidadela seria formado pelos cavaleiros visigodos de Alana. 

– Não, minha filha, o que passamos a noite toda preparando para que os hunos da cidadela bebessem, quer no vinho que nós duas contaminamos, quer na água que você e Hilduara trataram com o líquido amarelo, foi o que provocou essa batalha fratricida. É algo triste, mas esta é uma guerra sem alternativa: ou eles ou nós.

– Claro, Mãe, que sejam eles então! E o mais incrível é que ELES NÃO CONTRAÍRAM A PESTE NEGRA COISÍSSIMA NENHUMA!

– Sim, criança, como nós três e Hilduara já sabíamos, a substância amarela que sua mãe e eu preparamos não é nem veneno, nem vetor para a peste negra. Mas transmite, a quem se expõe a porções insignificantes dela, os mesmíssimos sintomas da peste. Que desaparecem em menos de um dia.

– Verdade, Mãe. Se eles tivessem esperado mais algumas horas dentro da fortaleza, teriam experimentado uma “cura” mágica, um gesto de compaixão dos deuses. E o nosso plano teria ido mais por águas abaixo do que os hunos no “Lago” Châlons.

Hilduara, que ouvia tudo em silêncio, perguntou então, em voz bem baixa:

– Grande sacerdotisa, sem ter a pretensão de lhe perguntar o segredo da preparação dessa maravilha amarela, a senhora poderia me dar ao menos um idéia superficial do que é ela? 

– Claro, minha filha. Veja bem: qual é o menor animal que você conhece?

CONTINUA

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