terça-feira, 26 de março de 2013


LUCAS – Um vampiro  gaúcho - 3ª. PARTE (conclusão) 
Ou: A INOCÊNCIA    
MILTON  MACIEL   

Devia estar acostumado a apanhar, o desinfeliz. “Mermão, assim que tu pudé andá, se manda daqui na carreira. Se a gente te encontra outra vez nestas banda, tu é um vampiro morto. Ah, por falar nisso: toma, leva a orelha, tu mereceu. Afinal tu foi herói, é o teu troféu. O prêmio, a dona já mandou o Ceará providenciar pra ti. Eu fico com o brinco.”

   Madame, informada do acontecido, deu-se por satisfeita. Recusou, mais uma vez, o oferecimento que os vigias já lhe haviam feito: um primo do Ceará para vigilante de sua casa, PM recém-expulso da corporação, coisa fina, de primeira. “Não, muito dinheiro, não vale a pena, com tanto guarda na casa de vocês, aí em cima.” Recolheu-se, contrafeita.

   “Que dia, meu Deus! Uma pobre mulher não pode mais nem meditar em paz, orar pelos aflitos, demonstrar generosidade e desprendimento.” Xingou outra vez Almerinda, aquela burra, a lareira estava apagada. Xingou os bandidos, o mendigo, os guardas, os empregados, os fornecedores, até se acalmar. Aí acendeu de novo as velas e os incensos, colocou os cristais sobre os chakras, sentada em pose de lótus, dentro da pirâmide de varetas de alumínio.

   Não conseguiu se concentrar logo, era uma tristeza ver os pneus em sua cintura, quando estava sentada assim. “Preciso criar vergonha, dar mais atenção a mim, parar de pensar só no bem dos outros, fazer uma lipo. Ou vou pro Spa, só três mil dólares, mas e o tempo, meu Deus, e o tempo?...” Aí lembrou-se de seus Mestres Ascensionados. Mestres espirituais encarregados de pessoas da sua importância, do seu nível social, certamente não eram Mestres comuns, como os que cuidam da gente inferior. Na certa não iam gostar de vê-la com preocupações tão materiais neste momento. Melhor que se concentrasse logo em sua meditação, que elevasse sua mente, que fizesse suas poderosas orações.

    Suspirou, estendeu o braço, ligou a música, os sintetizadores trouxeram o alfa imediato; Madame sentiu-se enlevada, puro espírito a pairar muito acima das coisas mesquinhas desse mundo material. Muito acima dessa gentalha inferior que a servia em casa e na empresa, muito acima de suas próprias filhas, pedantes universitárias a fazer pouco de suas práticas espirituais, sem saber dar valor ao nobre espírito superior que tinham o privilégio de ter como mãe. E orou, sua voz agora muito doce:

   “Aceitai, Senhor, as poderosas vibrações de minha mente generosa e de meu coração cristão, desdobradas em amor por toda a humanidade; por nossos irmãos sofredores, pelos enfermos nos hospitais, pelos presos nos cárceres, pelos bêbados nas sarjetas, pelas infelizes prostitutas. Daí, Senhor, teto e alimento para eles, escola para as crianças, força, disciplina e obediência para os trabalhadores. Preservai, Senhor, as nossa sábias instituições, protegei as propriedades contra os assaltos e as fazendas contra as invasões, iluminai a mente do nosso bondoso presidente, sustentai sua maioria no Congresso. Daí novo alento ao mercado das fibras de algodão. Fazei, suplico-vos com Amor, subirem as ações da Telefônica no pregão de quinta-feira. E eu, em troca, vos darei cada vez mais minha fé, as vibrações amantíssimas de meu coração  e minha infinita devoção, meu Senhor e meu Deus...”

   O alfa virou delta. Instantes depois a música acabou e só sobraram, altos e compassados, os roncos de Madame. O que a contrariava demais: não conseguia levar muito longe sua disciplina espiritual, logo vinha aquele sono incoercível, dormia horas assim. Acordava toda doída, babando, com frio. Muito chato. Os Mestres iam ter que dar um jeito...

   Ah, sim! O Lucas, não é? Bem ele não se recuperou totalmente, até hoje. Não por causa da surra, estava acostumado. Só duas costelas quebradas, uns arranhões, dor pelo corpo todo (corpo?) que acabou passando, como sempre. Uma viatura da PM o recolhera e levara ao pronto-socorro, os soldados assustados com seu estado,  os médicos dizendo que até furo de bala ele tinha, na pelanca da coxa. “Frescura, tchê! Que bala. que nada. Então eu não ia sabê?!”

   O duro mesmo, o pior, é ter que suportar a falta da casa de Madame. Não poder ir mais naquela rua, depois de ter salvo a filha de Madame... que ironia cruel. “Mundo loco, barbaridade cabeluda!” A falta da musa não o incomodava tanto: “Bueno, bunda grande hay por todo lugar.” Já tinha até localizado uma outra casa no Morumbi, lá pros lados do Hospital Israelita, com uma babá de calça branca bem justa “mui bem dotada, mas uma Raimunda...”  Mas, que fazer, quem vê cara não vê...

   O duro mesmo, o que maltrata, “É ficá sem a santa que é a Madame, sem suas música, sem suas reza, aquela parte que fala dos bêbado... Ah, Madame! Alma de Deus, anjo na Terra, que saudade!” E Lucas chora...

Nenhum comentário:

Postar um comentário