sexta-feira, 29 de março de 2013

O CERCO - 37 Novela histórica

0 CERCO - 37  Novela histórica
MILTON  MACIEL

Resumo do cap. 36 – A sumo-sacerdotisa dos celtas recomenda que os alanos sejam usados para atrair Átila, apresentando-se como um pequeno bloco entre romanos e visigodos. Mas todos os arqueiros alanos são deslocados para o extremo sul do campo de batalha, ocultando-s entre os arbustos. Quando Átila ataca os alanos, tentando desforrar-se do rei Sangiban, eles o surpreendem fugindo em direção à floresta. Os hunos os seguem e ainda desviam um destacamento para atacar um grupo de visigodos retardatários. Com isso os hunos se fragmentam e, então, são atacados na retaguarda pelos romanos. Os alanos reagem e logo a seguir, chegam os burgúndios e os francos ripuarianos. O pequeno grupo de visigodos também ataca a lateral dos hunos. Com isso a batalha se decide contra eles. Átila precisa bater em retirada, porém todos os flancos estão bloqueados por inimigos em combate, As perdas dos hunos são incomparavelmente maiores que as dos aliados. E eles passam a depender criticamente do desempenho dos seus parceiros, os ostrogodos e os gépides.

COM AMIGOS ASSIM, QUEM PRECISA DE INIMIGOS?

A pergunta que Átila e os líderes hunos se fazem insistentemente, enquanto vão sendo encurralados e dizimados por alanos, francos, burgúndios, visigodos e romanos é a mesma: O que aconteceu com os gépides?

Seriam estes os encarregados de dar combate aos legionários de Flávio Aécio. E, ao que tudo indicava previamente, este seria um duro e longo combate, com imenso número de baixas de parte a parte. Como foi possível, então, que os romanos tivessem aparecido assim de repente, tão no início da batalha ainda, e tivessem caído maciçamente sobre a retaguarda dos hunos, que perseguiam os alanos?

Dali onde estavam, era impossível para Átila e seus homens terem uma clara visão do setor onde deveriam estar o gépides em luta com romanos. Tinham mais é que cuidar de sua própria pele, uma vez que estavam comprimidos pelos inimigos por todos os lados e precisavam desesperadamente de um caminho de fuga.

O que teria acontecido com Ardaric e seus gépides?

A resposta a essa angustiante pergunta huna começou a ser dada bem antes dessa hora ferrenha de batalha. Na verdade, quando os hunos e os ostrogodos começaram a ocupar seus lugares nas linhas, antes da ordem de atacar, Átila havia estranhado a demora de Ardaric em ocupar seu lugar à frente de seus homens. O rei dos hunos chegou a ter que esperar um pouco para dar a ordem inicial de ataque por causa disso. Finalmente Ardaric havia aparecido e os hunos e ostrogodos dispararam celeremente em direção aos inimigos alanos e visigodos, respectivamente.

Contudo, voltando-se por um rápido momento quando chegava junto aos alanos, Átila ainda pôde vislumbrar que os gépides avançavam muito lentamente em direção aos romanos. E que estes faziam exatamente a mesma coisa, marchando com sua infantaria literalmente em passo de tartaruga. Que tática seria essa daqueles malucos? O que teria levado Ardaric a avançar tão devagar no campo de batalha? E os romanos a responderem na mesma moeda? Um homem huno era o responsável!

No momento em que Átila desfilava trotando em frente a seus homens formados para o ataque, um huno havia chegado à tenda de Ardaric. Era um homem alto e magro, vestido com um longo traje preto, típico dos civis hunos que ajudavam na logística dos acampamentos de guerra.

Esse civil havia surgido de algum lugar entre os ostrogodos, sem chamar atenção, andando calmamente na retaguarda protegida pelos carroções. Passando depois pela área de retaguarda dos hunos, praticamente vazia, pois quase todos já estavam formados nas linhas de ataque, à frente dos carroções, o homem acabou chegando à retaguarda civil dos gépides, bem antes de Ardaric estar pronto. Surpreendeu-o em sua tenda, começando a colocar sua armadura, com a ajuda de dois soldados.

Quando o homem entrou, Ardaric não manifestou qualquer estranheza ou preocupação com ele. O huno alto moveu-se devagar até ficar às costas dos ajudantes de Ardaric, que estavam voltados para ele nesse momento, tratando de colocar-lhe as longas proteções metálicas dos antebraços. Esperou que o rei dos gépides levantasse os olhos e o visse.
E, nesse exato instante, baixou o manto que  cobria sua cabeça. Esperou a reação de Ardaric e voltou a cobrir-se rapidamente. E fez um sinal inequívoco para o rei, dando a entender que ele devia dispensar os ajudantes.

Ardaric ficou lívido e pálido, como se tivesse visto um fantasma. Mas imediatamente se recompôs e, com um grito, como se tivesse ficado enfurecido, ordenou que seus ajudantes desaparecessem dali, o que os dois se apressaram a fazer. Ao mesmo tempo que saíam, ouviram a ordem seca de seu rei:

– Postem-se os dois do lado de fora desta tenda e não deixem ninguém – ninguém mesmo, entenderam? – entrar aqui! Seus pescoços inteiros significarão que vocês cumpriram minha ordem.

Os ajudantes saíram assustados, apanharam duas lanças que estavam ali perto e postaram-se de guarda no exterior da tenda do rei.

Este, tão pronto viu que os homens não mais o podiam ver e ouvir, soltou um suspiro e falou:

– Minha querida! Mal posso acreditar. Todos diziam que você estava morta, executada pelos francos. Ah, Hilduara, que coisa maravilhosa vê-la com vida aqui. O que lhe aconteceu? Conte-me, por favor.

Hilduara livrou-se então do manto escuro e deixou seu rosto aparecer por inteiro, com todo o esplendor de sua beleza e todo o brilho dos longos cachos negros de cabelos perfumados.

Ardaric não resistiu a tanta beleza e, avançado para ela, enlaçou-a pela cintura, procurando com os seus os belos lábios da bela ostrogoda. Ela deixou-se beijar e esperou pacientemente que o chefe dos gépides extravasasse sua emoção. E, assim que recuperou o fôlego e a liberdade da cintura, deu dois passos para atrás e disse:

– Caro Ardaric, como pode ver, eu estou viva e bem viva. De fato, eu fui descoberta pelos francos, mas eles pouparam-me a vida, executando somente as duas assassinas que trabalhavam comigo ali na fortaleza. É exatamente dali que estou chegando agora.

Ardaric demonstrou o pânico de que foi tomado:

– Deuses do céu e da terra! Você me diz que estava na cidadela da Peste Negra?!

– Não existe peste alguma, Ardaric. Nem nunca existiu! Foi tudo um grande truque, uma forma magistral de enganar os hunos. E eles acreditaram tanto nessa falsa peste que acabaram se matando aos milhares, em batalha entre si mesmos, como você já deve saber.

– Sim, sim, todos sabem disso agora. Mas como não há e nuca houve peste? Se os homens tinham todos os sintomas dessa doença maldita!

– Tinham, mas os sintomas desapareciam no mesmo dia, Ardaric! A verdadeira peste não faz isso, só piora, desfigura e debilita até matar. Todas as pessoas dentro daquela cidadela, posso lhe garantir, estiveram o tempo todo muito bem de saúde. Mas representaram papéis que levaram os hunos a creditar que estavam doentes de verdade.

Ardaric precisou sentar num banco para poder pensar e assimilar aquelas informações. Se não fossem verídicas, e Hilduara tivesse de fato vindo da fortaleza dos francos, então a esta altura ele era um homem a caminho da cova. Acabara de beijar ardentemente a boca de uma mulher contaminada. Por outro lado, se o que Hilduara afirmava, por mais inacreditável que parecesse, representasse a verdade absoluta, então ele estava a salvo e aquela criatura suave, bela e... diferente, estaria ali para servi-lo como em outras vezes. Preferiu, portanto, acreditar nela e lhe perguntou:

– E onde está aquele patife do seu dono, aquele velhaco e desprezível Ascilatus? Quero negociar já com ele, antes que algum outro chefe a veja e a queira para servi-lo antes.

Hilduara sorriu tristemente, ao ouvir essas palavras tão terríveis. Mas em seguida sentiu seu coração aliviar-se. Os tempos eram outros, sua servidão acabara, nunca mais os homens a teriam como tiveram antes. A Deusa e Kyna a tinham agora sob sua proteção. E exatamente a serviço delas é que estava ali, naquela tenda. agora.

– Morto e bem morto, Ardaric. Castrado e executado.

– Mas quem fez isso com aquele porco miserável?

– Um general huno brandiu a espada num lugar muito longe daqui, mas quem o executou foi a grande Deusa dos celtas, através de sua sacerdotisa, ali mesmo dentro da fortaleza dos francos.

– Como?! O homem agrediu o romano trapaceiro longe daqui, por ação de uma sacerdotisa que estava aqui, a quilômetros de distância e por determinação de uma deusa? Convenhamos, minha querida, isso é bem difícil de se acreditar. Quem é essa sacerdotisa, dotada assim de tal nível de poder?

– A grande Kyna!

Ardaric arregalou os olhos surpreso e falou:

– A grande sumo-sacerdotisa dos celtas estava ali com vocês?! A grande Kyna, você me diz! Nesse caso, minha amiga, eu já começo a acreditar que você disse a verdade. Conheço essa mulher há muitos anos e sei o poder incrível que ela tem. Agora entendo como é que vocês enganaram os hunos com a peste falsa. Só pode ser coisa dela.

– Dela e de sua filha Alana, a grã-sacerdotisa da Deusa.

– Pelos deuses! Você me afirma que os francos têm ali dentro essas duas sacerdotisas ao mesmo tempo?

– Não, Ardaric.

– Não? Elas já foram embora então?

– Não. Os francos têm ali TRÊS sacerdotisas celtas! Kyna, sua filha Alana e a filha desta, Vérica.

– Céus! E quem, é essa Vérica, de quem nunca ouvi falar? Custa-me crer que uma mulher tão jovem como Kyna possa ter uma neta.

– Vérica é a mulher mais corajosa e a maior guerreira que eu já vi em toda a minha vida. E também a mais fantástica arqueira que já vi em ação. É neta de Kyna, sim e tem só dezesseis anos.

– Bem, bem , bem... Isso que você está me dizendo é de suma gravidade, minha amiga. Se a grande Deusa dos celtas está a favor dos francos e os francos são aliados dos romanos e visigodos, então nós estamos aqui em maus lençóis. Eu nunca soube de um único caso em que as sacerdotisas da Deusa celta tivessem se posicionado a favor de um exército e esse exército tenha sido o perdedor numa batalha. Isso é um péssimo augúrio para meus soldados e para mim.

– Sim, rei Ardaric. E é exatamente por isso que eu vim aqui. As sacerdotisas consultaram a Deusa através do tripé da água sagrada e não resta nenhuma dúvida: os hunos e seus aliados serão derrotados e dizimados hoje nesta batalha. Aliás, nós vimos que vocês, os gépides, foram os primeiros a serem prejudicados, numa batalha inesperada contra os francos ripuarianos.

– Sim, é verdade, perdi quase 20% do meu exército nesse combate. Por sorte consegui trazer meus homens para esta retaguarda e o francos tinham alguma ordem para não nos seguirem. Até agora não entendo como eles nos emboscaram a partir da floresta, em plena Via Agripa.

– Foram os hunos que mandaram falsos batedores francos darem a posição de vocês. Vimos isso também.

– Malditos! Fomos traídos por nossos “amigos” então? Mas com que propósito?

– Átila queria saber se havia um contingente maior de francos escondidos e só desse jeito poderia descobrir. Você foram usados desonestamente como iscas.

– Ah, traidor! E eu que empenhei minha palavra, jurando defendê-lo sempre, com minha própria vida se necessário! Mas diga-me, Hilduara, se vocês puderam ver o resultado da batalha, o que vai acontecer com meu povo e comigo? Seremos mortos em massa, então?

– Não, Ardaric. Essa é a boa noticia que eu vim lhe trazer. Hoje não haverá morte para os gépides, só para os hunos e ostrogodos.

– Mas como pode isso ser possível? Como pode não haver morte para nós, se a nós cabe enfrentar, por imposição de Átila, é claro, justamente o inimigo mais forte de todos, os romanos de Flávio Aécio?

– Porque os gépides não enfrentarão os romanos, nem os romanos enfrentarão os gépides.

– Pelos deuses, Hilduara! Isso seria maravilhoso. Mas como podem os romanos não avançarem sobre nós?

– Porque, neste exato momento em que estou aqui lhe dando esta notícia maravilhosa, a sacerdotisa Kyna está naquela grande tenda lá longe, dizendo a mesma coisa para Flávio Aécio. E ele, tanto quanto você, conhece de sobra quem é a grande Kyna. Pode ter certeza que, se você e seu gépides não atacarem os romanos, os romanos não os atacarão também. E, desse forma, você irá salvar todos os seus homens. Não pense na reação dos hunos, que traíram você, mas pense na reação do seu povo, quando você entregar a suas mães, esposas e prometidas todos estes jovens e estes pais de família cuja vida você terá poupado.

– Mas passarei para a história como um traidor!

– Um traidor de quem traiu você primeiro, rei dos gépides? Átila e seu hunos foram os responsáveis pelos gépides mortos no combate com os ripuarianos. A esses somente você não poderá levar de volta para sua pátria. Mas a todos os outros você pode salvar. Tome a decisão certa. E tome-a agora, pois Átila já deve estar impaciente, esperando-o à frente das linhas dos gépides.

– Bem, que os deuses tenham piedade de mim! Ainda que a história possa me chamar de traidor um dia, eu o farei para salvar estes milhares de jovens cuja vida tenho agora em minhas mãos.

– A história não lhe fará essa injustiça, Ardaric. Até porque, vimos isso também na água sagrada, em cerca de três anos vocês serão aliados daqueles que hoje são seus inimigos. E os únicos inimigos que todos vocês terão, serão exatamente os hunos. E vocês, todos juntos, haverão de dar fim, para sempre a esses invasores inclementes.

– E liquidaremos Átila nesse dia?

– Não será preciso, Ardaric, ele já terá morrido antes.

Os olhos de Ardaric se iluminaram:

– Nesta batalha de hoje, então? É hoje que ele morrerá?

– Não. Mas não falta muito tempo. Vimos que o rei dos hunos está em seus anos derradeiros.

– Você fala: vimos. Você também iu essa coisas que as sacerdotisas celtas  podem ver?

– Sim, Ardaric. Eu agora sou aprendiz de sacerdotisa, sirvo à grande Deusa celta e pratico com Kyna, Alana e Vérica.

– E é uma mulher livre, então! E uma quase sacerdotisa. Creio que não adiantaria nada se eu lhe pedisse para se deitar comigo depois da batalha, não?

– Não, não adiantaria nada pedir isso. Mas agora vá e faça exatamente como lhe falei. Avance em direção aos romanos, mas faça-o de forma extremamente lenta. Eles farão exatamente a mesma coisa. E então, quando vocês estiverem mais perto, desvie o seu exército para o centro do campo de batalha, por onde os hunos já terão passado celeremente no encalço dos alanos. Os romanos girarão seus homens em sentido contrário. E, nesse momento, todos certos de que não haverá guerra entre gépides e romanos, eles atacarão e retaguarda de Átila.

– E eu?

– Você deixará o campo de batalha com todos os seus homens. Nem hunos, nem ostrogodos poderão fazer nada contra vocês, estarão lutando suas próprias batalhas mortais. Você poderá tomar pela Via Agripa em direção ao Sul. Todos os aliados saberão então que os gépides não são mais seus inimigos. Vocês marcharão em paz até suas terras.

– Que os deuses a bendigam e protejam, Hilduara... Sacerdotisa Hilduara! Você terá minha eterna gratidão e a de todo o meu povo, por esse seu gesto de hoje. E, pode ter certeza, a partir de hoje, passará a contar com todo o meu respeito também.

E, beijando agora a mão estendida da sua libertadora, Ardaric deixou a tenda e foi conversar com seus comandantes.

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