0 CERCO - 37 Novela histórica
MILTON MACIEL
Resumo do cap. 36 – A sumo-sacerdotisa dos celtas
recomenda que os alanos sejam usados para atrair Átila, apresentando-se como um
pequeno bloco entre romanos e visigodos. Mas todos os arqueiros alanos são deslocados
para o extremo sul do campo de batalha, ocultando-s entre os arbustos. Quando
Átila ataca os alanos, tentando desforrar-se do rei Sangiban, eles o
surpreendem fugindo em direção à floresta. Os hunos os seguem e ainda desviam
um destacamento para atacar um grupo de visigodos retardatários. Com isso os
hunos se fragmentam e, então, são atacados na retaguarda pelos romanos. Os
alanos reagem e logo a seguir, chegam os burgúndios e os francos ripuarianos. O
pequeno grupo de visigodos também ataca a lateral dos hunos. Com isso a batalha
se decide contra eles. Átila precisa bater em retirada, porém todos os flancos
estão bloqueados por inimigos em combate, As perdas dos hunos são
incomparavelmente maiores que as dos aliados. E eles passam a depender criticamente
do desempenho dos seus parceiros, os ostrogodos e os gépides.
COM AMIGOS ASSIM, QUEM PRECISA DE INIMIGOS?
A pergunta que
Átila e os líderes hunos se fazem insistentemente, enquanto vão sendo
encurralados e dizimados por alanos, francos, burgúndios, visigodos e romanos é
a mesma: O que aconteceu com os gépides?
Seriam estes os
encarregados de dar combate aos legionários de Flávio Aécio. E, ao que tudo
indicava previamente, este seria um duro e longo combate, com imenso número de
baixas de parte a parte. Como foi possível, então, que os romanos tivessem
aparecido assim de repente, tão no início da batalha ainda, e tivessem caído
maciçamente sobre a retaguarda dos hunos, que perseguiam os alanos?
Dali onde
estavam, era impossível para Átila e seus homens terem uma clara visão do setor
onde deveriam estar o gépides em luta com romanos. Tinham mais é que cuidar de
sua própria pele, uma vez que estavam comprimidos pelos inimigos por todos os
lados e precisavam desesperadamente de um caminho de fuga.
O que teria
acontecido com Ardaric e seus gépides?
A resposta a
essa angustiante pergunta huna começou a ser dada bem antes dessa hora ferrenha
de batalha. Na verdade, quando os hunos e os ostrogodos começaram a ocupar seus
lugares nas linhas, antes da ordem de atacar, Átila havia estranhado a demora
de Ardaric em ocupar seu lugar à frente de seus homens. O rei dos hunos chegou
a ter que esperar um pouco para dar a ordem inicial de ataque por causa disso.
Finalmente Ardaric havia aparecido e os hunos e ostrogodos dispararam
celeremente em direção aos inimigos alanos e visigodos, respectivamente.
Contudo,
voltando-se por um rápido momento quando chegava junto aos alanos, Átila ainda
pôde vislumbrar que os gépides avançavam muito lentamente em direção aos romanos.
E que estes faziam exatamente a mesma coisa, marchando com sua infantaria
literalmente em passo de tartaruga. Que tática seria essa daqueles malucos? O
que teria levado Ardaric a avançar tão devagar no campo de batalha? E os
romanos a responderem na mesma moeda? Um
homem huno era o responsável!
No momento em
que Átila desfilava trotando em frente a seus homens formados para o ataque, um
huno havia chegado à tenda de Ardaric. Era um homem alto e magro, vestido com
um longo traje preto, típico dos civis hunos que ajudavam na logística dos
acampamentos de guerra.
Esse civil havia
surgido de algum lugar entre os ostrogodos, sem chamar atenção, andando
calmamente na retaguarda protegida pelos carroções. Passando depois pela área
de retaguarda dos hunos, praticamente vazia, pois quase todos já estavam
formados nas linhas de ataque, à frente dos carroções, o homem acabou chegando
à retaguarda civil dos gépides, bem antes de Ardaric estar pronto.
Surpreendeu-o em sua tenda, começando a colocar sua armadura, com a ajuda de
dois soldados.
Quando o homem
entrou, Ardaric não manifestou qualquer estranheza ou preocupação com ele. O
huno alto moveu-se devagar até ficar às costas dos ajudantes de Ardaric, que
estavam voltados para ele nesse momento, tratando de colocar-lhe as longas
proteções metálicas dos antebraços. Esperou que o rei dos gépides levantasse os
olhos e o visse.
E, nesse exato
instante, baixou o manto que cobria sua
cabeça. Esperou a reação de Ardaric e voltou a cobrir-se rapidamente. E fez um
sinal inequívoco para o rei, dando a entender que ele devia dispensar os
ajudantes.
Ardaric ficou lívido
e pálido, como se tivesse visto um fantasma. Mas imediatamente se recompôs e,
com um grito, como se tivesse ficado enfurecido, ordenou que seus ajudantes
desaparecessem dali, o que os dois se apressaram a fazer. Ao mesmo tempo que
saíam, ouviram a ordem seca de seu rei:
– Postem-se os
dois do lado de fora desta tenda e não deixem ninguém – ninguém mesmo,
entenderam? – entrar aqui! Seus pescoços inteiros significarão que vocês
cumpriram minha ordem.
Os ajudantes
saíram assustados, apanharam duas lanças que estavam ali perto e postaram-se de
guarda no exterior da tenda do rei.
Este, tão pronto
viu que os homens não mais o podiam ver e ouvir, soltou um suspiro e falou:
– Minha querida!
Mal posso acreditar. Todos diziam que você estava morta, executada pelos
francos. Ah, Hilduara, que coisa maravilhosa vê-la com vida aqui. O que lhe
aconteceu? Conte-me, por favor.
Hilduara
livrou-se então do manto escuro e deixou seu rosto aparecer por inteiro, com
todo o esplendor de sua beleza e todo o brilho dos longos cachos negros de
cabelos perfumados.
Ardaric não
resistiu a tanta beleza e, avançado para ela, enlaçou-a pela cintura,
procurando com os seus os belos lábios da bela ostrogoda. Ela deixou-se beijar
e esperou pacientemente que o chefe dos gépides extravasasse sua emoção. E,
assim que recuperou o fôlego e a liberdade da cintura, deu dois passos para atrás
e disse:
– Caro Ardaric,
como pode ver, eu estou viva e bem viva. De fato, eu fui descoberta pelos
francos, mas eles pouparam-me a vida, executando somente as duas assassinas que
trabalhavam comigo ali na fortaleza. É exatamente dali que estou chegando
agora.
Ardaric
demonstrou o pânico de que foi tomado:
– Deuses do céu
e da terra! Você me diz que estava na cidadela da Peste Negra?!
– Não existe
peste alguma, Ardaric. Nem nunca existiu! Foi tudo um grande truque, uma forma magistral
de enganar os hunos. E eles acreditaram tanto nessa falsa peste que acabaram se
matando aos milhares, em batalha entre si mesmos, como você já deve saber.
– Sim, sim,
todos sabem disso agora. Mas como não há e nuca houve peste? Se os homens
tinham todos os sintomas dessa doença maldita!
– Tinham, mas os
sintomas desapareciam no mesmo dia, Ardaric! A verdadeira peste não faz isso,
só piora, desfigura e debilita até matar. Todas as pessoas dentro daquela
cidadela, posso lhe garantir, estiveram o tempo todo muito bem de saúde. Mas
representaram papéis que levaram os hunos a creditar que estavam doentes de
verdade.
Ardaric precisou
sentar num banco para poder pensar e assimilar aquelas informações. Se não
fossem verídicas, e Hilduara tivesse de fato vindo da fortaleza dos francos,
então a esta altura ele era um homem a caminho da cova. Acabara de beijar
ardentemente a boca de uma mulher contaminada. Por outro lado, se o que
Hilduara afirmava, por mais inacreditável que parecesse, representasse a
verdade absoluta, então ele estava a salvo e aquela criatura suave, bela e... diferente, estaria ali para servi-lo
como em outras vezes. Preferiu, portanto, acreditar nela e lhe perguntou:
– E onde está
aquele patife do seu dono, aquele velhaco e desprezível Ascilatus? Quero
negociar já com ele, antes que algum outro chefe a veja e a queira para
servi-lo antes.
Hilduara sorriu
tristemente, ao ouvir essas palavras tão terríveis. Mas em seguida sentiu seu
coração aliviar-se. Os tempos eram outros, sua servidão acabara, nunca mais os
homens a teriam como tiveram antes. A Deusa e Kyna a tinham agora sob sua
proteção. E exatamente a serviço delas é que estava ali, naquela tenda. agora.
– Morto e bem
morto, Ardaric. Castrado e executado.
– Mas quem fez
isso com aquele porco miserável?
– Um general
huno brandiu a espada num lugar muito longe daqui, mas quem o executou foi a
grande Deusa dos celtas, através de sua sacerdotisa, ali mesmo dentro da
fortaleza dos francos.
– Como?! O homem
agrediu o romano trapaceiro longe daqui, por ação de uma sacerdotisa que estava
aqui, a quilômetros de distância e por determinação de uma deusa? Convenhamos,
minha querida, isso é bem difícil de se acreditar. Quem é essa sacerdotisa,
dotada assim de tal nível de poder?
– A grande Kyna!
Ardaric
arregalou os olhos surpreso e falou:
– A grande
sumo-sacerdotisa dos celtas estava ali com vocês?! A grande Kyna, você me diz!
Nesse caso, minha amiga, eu já começo a acreditar que você disse a verdade.
Conheço essa mulher há muitos anos e sei o poder incrível que ela tem. Agora
entendo como é que vocês enganaram os hunos com a peste falsa. Só pode ser
coisa dela.
– Dela e de sua
filha Alana, a grã-sacerdotisa da Deusa.
– Pelos deuses!
Você me afirma que os francos têm ali dentro essas duas sacerdotisas ao mesmo
tempo?
– Não, Ardaric.
– Não? Elas já
foram embora então?
– Não. Os
francos têm ali TRÊS sacerdotisas celtas! Kyna, sua filha Alana e a filha
desta, Vérica.
– Céus! E quem,
é essa Vérica, de quem nunca ouvi falar? Custa-me crer que uma mulher tão jovem
como Kyna possa ter uma neta.
– Vérica é a
mulher mais corajosa e a maior guerreira que eu já vi em toda a minha vida. E
também a mais fantástica arqueira que já vi em ação. É neta de Kyna, sim e tem
só dezesseis anos.
– Bem, bem ,
bem... Isso que você está me dizendo é de suma gravidade, minha amiga. Se a
grande Deusa dos celtas está a favor dos francos e os francos são aliados dos
romanos e visigodos, então nós estamos aqui em maus lençóis. Eu nunca soube de
um único caso em que as sacerdotisas da Deusa celta tivessem se posicionado a
favor de um exército e esse exército tenha sido o perdedor numa batalha. Isso é
um péssimo augúrio para meus soldados e para mim.
– Sim, rei
Ardaric. E é exatamente por isso que eu vim aqui. As sacerdotisas consultaram a
Deusa através do tripé da água sagrada e não resta nenhuma dúvida: os hunos e
seus aliados serão derrotados e dizimados hoje nesta batalha. Aliás, nós vimos
que vocês, os gépides, foram os primeiros a serem prejudicados, numa batalha
inesperada contra os francos ripuarianos.
– Sim, é
verdade, perdi quase 20% do meu exército nesse combate. Por sorte consegui
trazer meus homens para esta retaguarda e o francos tinham alguma ordem para não
nos seguirem. Até agora não entendo como eles nos emboscaram a partir da
floresta, em plena Via Agripa.
– Foram os hunos
que mandaram falsos batedores francos darem a posição de vocês. Vimos isso
também.
– Malditos!
Fomos traídos por nossos “amigos” então? Mas com que propósito?
– Átila queria
saber se havia um contingente maior de francos escondidos e só desse jeito
poderia descobrir. Você foram usados desonestamente como iscas.
– Ah, traidor! E
eu que empenhei minha palavra, jurando defendê-lo sempre, com minha própria
vida se necessário! Mas diga-me, Hilduara, se vocês puderam ver o resultado da
batalha, o que vai acontecer com meu povo e comigo? Seremos mortos em massa,
então?
– Não, Ardaric.
Essa é a boa noticia que eu vim lhe trazer. Hoje não haverá morte para os
gépides, só para os hunos e ostrogodos.
– Mas como pode
isso ser possível? Como pode não haver morte para nós, se a nós cabe enfrentar,
por imposição de Átila, é claro, justamente o inimigo mais forte de todos, os
romanos de Flávio Aécio?
– Porque os
gépides não enfrentarão os romanos, nem os romanos enfrentarão os gépides.
– Pelos deuses,
Hilduara! Isso seria maravilhoso. Mas como podem os romanos não avançarem sobre
nós?
– Porque, neste
exato momento em que estou aqui lhe dando esta notícia maravilhosa, a
sacerdotisa Kyna está naquela grande tenda lá longe, dizendo a mesma coisa para
Flávio Aécio. E ele, tanto quanto você, conhece de sobra quem é a grande Kyna.
Pode ter certeza que, se você e seu gépides não atacarem os romanos, os romanos
não os atacarão também. E, desse forma, você irá salvar todos os seus homens.
Não pense na reação dos hunos, que traíram você, mas pense na reação do seu
povo, quando você entregar a suas mães, esposas e prometidas todos estes jovens
e estes pais de família cuja vida você terá poupado.
– Mas passarei
para a história como um traidor!
– Um traidor de quem
traiu você primeiro, rei dos gépides? Átila e seu hunos foram os responsáveis
pelos gépides mortos no combate com os ripuarianos. A esses somente você não
poderá levar de volta para sua pátria. Mas a todos os outros você pode salvar.
Tome a decisão certa. E tome-a agora, pois Átila já deve estar impaciente,
esperando-o à frente das linhas dos gépides.
– Bem, que os
deuses tenham piedade de mim! Ainda que a história possa me chamar de traidor
um dia, eu o farei para salvar estes milhares de jovens cuja vida tenho agora
em minhas mãos.
– A história não
lhe fará essa injustiça, Ardaric. Até porque, vimos isso também na água
sagrada, em cerca de três anos vocês serão aliados daqueles que hoje são seus
inimigos. E os únicos inimigos que todos vocês terão, serão exatamente os hunos.
E vocês, todos juntos, haverão de dar fim, para sempre a esses invasores
inclementes.
– E liquidaremos
Átila nesse dia?
– Não será
preciso, Ardaric, ele já terá morrido antes.
Os olhos de
Ardaric se iluminaram:
– Nesta batalha
de hoje, então? É hoje que ele morrerá?
– Não. Mas não
falta muito tempo. Vimos que o rei dos hunos está em seus anos derradeiros.
– Você fala: vimos. Você também iu essa coisas que as
sacerdotisas celtas podem ver?
– Sim, Ardaric.
Eu agora sou aprendiz de sacerdotisa, sirvo à grande Deusa celta e pratico com
Kyna, Alana e Vérica.
– E é uma mulher
livre, então! E uma quase sacerdotisa. Creio que não adiantaria nada se eu lhe
pedisse para se deitar comigo depois da batalha, não?
– Não, não
adiantaria nada pedir isso. Mas agora vá e faça exatamente como lhe falei.
Avance em direção aos romanos, mas faça-o de forma extremamente lenta. Eles
farão exatamente a mesma coisa. E então, quando vocês estiverem mais perto,
desvie o seu exército para o centro do campo de batalha, por onde os hunos já
terão passado celeremente no encalço dos alanos. Os romanos girarão seus homens
em sentido contrário. E, nesse momento, todos certos de que não haverá guerra
entre gépides e romanos, eles atacarão e retaguarda de Átila.
– E eu?
– Você deixará o
campo de batalha com todos os seus homens. Nem hunos, nem ostrogodos poderão fazer
nada contra vocês, estarão lutando suas próprias batalhas mortais. Você poderá
tomar pela Via Agripa em direção ao Sul. Todos os aliados saberão então que os
gépides não são mais seus inimigos. Vocês marcharão em paz até suas terras.
– Que os deuses
a bendigam e protejam, Hilduara... Sacerdotisa Hilduara! Você terá minha eterna
gratidão e a de todo o meu povo, por esse seu gesto de hoje. E, pode ter
certeza, a partir de hoje, passará a contar com todo o meu respeito também.
E, beijando
agora a mão estendida da sua libertadora, Ardaric deixou a tenda e foi
conversar com seus comandantes.
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