MILTON MACIEL
Resumo do cap. 25 – As sacerdotisas Alana e Kyna
conseguem apurar, por seus estranhos meios, que na tarde do dia seguinte
chegarão a Châlons os primeiros 3600 cavaleiros hunos. Mais 5000 os seguem, com
diferença de poucas horas. Ao todo, os efetivos de Átila e seus aliados, em
deslocamento pela grande estrada principal, a Via Agripa, são de 36000. Dois
dias de diferença atrás, romanos, visigodos e seus aliados os perseguem com
45000 homens. Cabe aos pouco mais de 700 guerreiros francos e visigodos fazer
face a eles e barrar-lhes o caminho, até a chegada dos aliados que perseguem
Átila. Uma clara impossibilidade, ainda que para isso alistassem os 900 civis
da fortaleza, outra clara impossibilidade. Mas as sacerdotisas sugerem um plano
de destruição da grande ponte romana de pedra, sobre o Marne, usando as duas
catapultas que existem na fortaleza. E preparam as outras táticas de
resistência ao inexorável avanço huno.
A
DESTRUIÇÃO DA PONTE SOBRE O RIO MARNE. OS HUNOS DE ÁTILA CHEGAM.
Durante todo o
dia os francos trabalharam freneticamente em diversas frentes, preparando-se
para o iminente choque com a vanguarda de cavaleiros hunos. Os cavaleiros
visigodos, junto com um grande número de civis, foram destacados para trabalhar
na floresta, onde ficaram toda a manhã e toda a tarde daquele dia. Durante a
tarde, um grande número de carroças com suprimentos diversos foi levada para a
floresta também. Pareceu evidente, para todos, que os chefes (ou seja, na
prática, as sacerdotisas) estavam preparando uma fuga para a floresta.
Todos
concordaram e trabalharam com mais ânimo, posto que era evidente que, se
tentassem ficar dentro da fortaleza, seriam colhidos como um bando de ratos
numa ratoeira pelos hunos.
Quanto a Armosic
e seus homens, eles levaram as duas catapultas para fora da fortaleza,
remontaram-nas totalmente e começaram, no início da tarde, os exercícios de
colocação a diferentes distâncias, testando-as com os primeiros projéteis de
pedra. Quando do quinto fracasso, com as enormes pedras caindo além da ponte,
Alana correu até eles e mandou-os parar.
Ato contínuo,
ela montou na primeira catapulta e mandou os homens empurrarem-na em direção
sudeste. Então, subitamente, ela ordenou que parassem:
– Aqui! Parem. Podem
fixar.
E repetiu a
mesma operação com a segunda catapulta, que fez deslocar ainda para mais longe,
em direção nordeste.
Quando os homens
dispararam a primeira pedra, ela descreveu sua trajetória parabólica e foi se
estatelar em cheio sobre a ponte. Uma parte inteira da amurada ruiu
fragorosamente sobre o Marne. Os homens todos prorromperam num vigoroso
aplauso, com vivas e assobios. Mas Alana não se mostrou satisfeita. Subiu de
novo na catapulta e então olhou para o alto da muralha norte, fazendo um aceno
de mão.
Lá de cima, a
sacerdotisa-mor respondeu ao gesto, mas depois levantou o outro braço e fez um
gesto de encontro dos dois braços, colocando-os em ângulo. Alana entendeu imediatamente o significado
daquilo e mandou fazer um deslocamento mínimo da máquina de guerra. Desta vez,
o projétil arremessado atingiu em cheio um dos pilares centrais da ponte,
arrancando-lhe um grande pedaço. A parte da pista que estava apoiada sobre ele
foi fazer-lhe companhia no fundo do rio.
O operação foi
repetida para a segunda catapulta. O tiro foi fatal, atingindo o leito da ponte
em sua parte mais delgada, bem ao centro. A partir daí, para cada novo projétil
de pedra colocado numa catapulta, as sacerdotisas repetiam o trabalho de ajuste
fino. O ataque à ponte, ao invés de ser um atirar a esmo e com pressa, como os
francos o fariam, possivelmente consumindo e perdendo todas as suas 48 grandes
pedras dentro do rio, foi extremamente lento e preciso.
Duas horas e
vinte e dois projéteis depois, a grande ponte romana sobre o rio Marne era uma
ruína de todo inútil, formada agora apenas por restos de oito pilares e pedaços
horizontais das duas cabeceiras. A gritaria promovida então, quando o último
pedaço caiu e afundou no rio, foi qualquer coisa de extraordinária. Só então
Kyna saiu de seu posto no alto da muralha e Alana pôs-se a caminhar em direção
ao portão da cidadela. Ia com pressa, havia muita coisa a fazer ainda.
A essa altura,
Meroveu – ou seja, Vérica – coordenava os trabalhos nas muralhas e na floresta.
Enquanto isso, Kyna e Alana se recolheram a seu alojamento e começaram a fazer
a manipulação das últimas quantidades de materiais de que dispunham para fazer
mais fogo grego. Depois, após uma hora inteira de meditação e preces ante a
efígie da Deusa, acenderam um fogo, sobre o qual arremessaram um pó que lhe deu
uma estranha cor verde e iniciaram uma série de preparações líquidas, que eram
fervidas numa retorta de vidro e passavam para outros recipientes muito bem
fechados depois, todos eles de vidro também. A noite caiu e elas continuaram a
trabalhar, se revezando, sempre uma delas cuidando das preparações alquímicas e
a outra indo ter com Meroveu, Vérica, Armosic e Hilduara, para avaliar os
resultados das operações e para ordenar novas ações.
Hilduara havia
passado a tarde toda coordenando o trabalho das mulheres, que envolvia a
preparação para a retirada da fortaleza, com toda a necessária e complicada
logística de coisas a levar. Foi-lhe muito difícil conseguir que as mulheres só
levassem para as carroças aquilo que era estritamente necessário para uma curta
estada fora da cidadela. Mas, com toda sua doçura e uma incrível capacidade de
liderança, que era na verdade uma inexplicável capacidade de se fazer amada
instantaneamente, a ostrogoda conseguiu que todas as mulheres seguissem suas
determinações até o fim.
Findo esse
trabalho, já ao cair da noite Vérica, deixando Meroveu à vontade para também
dar algumas ordens, veio buscá-la para, juntas, inspecionarem o manancial da
grande nascente interna da fortaleza, o segredo de sua maior capacidade de
resistir aos cercos historicamente. Essa cidadela havia sido construída
praticamente ao redor de uma grande nascente de água puríssima, que descia das
montanhas por dentro da terra e brotava ali em um jorro poderoso. Não havia
forma alguma de um exército inimigo, que cercasse a fortaleza, conseguir cortar
ou envenenar o suprimento de água daquela cidadela. Vérica falou a Hilduara que
elas teriam que voltar àquele manancial antes de deixarem a fortaleza no dia
seguinte. Seria a última coisa que as duas fariam antes de sair.
Por sua vez
Alana levou alguns dos seus visigodos, assim que todos voltaram do trabalho na
floresta, e foi com eles retirar todos os barris de vinho da grande adega da
fortaleza, onde estavam empilhados. Ela os fez dispor numa fileira múltipla,
mas sem empilhamento, no grande salão central da cidadela, junto à parede e
próximo à grande mesa de banquete. Havia ali uma boa reserva do melhor vinho
gaulês, sessenta e dois barris lacrados, de vinho envelhecido. Alana fez abrir
cada uma das tampas com muito cuidado, para que elas fossem respostas no lugar
com perfeição depois.
Então chegou
Kyna, com três frascos longos, contendo um líquido amarelo-citrino muito
espesso, resultado da longa preparação dessa noite. O conteúdo de dois dos
frascos passou a ser vertido, por ela e Alana, dentro de cada um dos barris de
vinho. O terceiro frasco foi reservado à parte. A quantidade vertida era
ínfima, o que mostrava que aquilo não era uma substância venenosa. Todas as
tampas foram repostas criteriosamente. Qual seria o mistério por trás daquela
ação? As sacerdotisas nada disseram, apenas proibiram que alguém, a partir
daquele momento, se aproximasse dos barris. E deixaram alguns homens de
confiança de guarda a noite toda. Obviamente, tendo estes visto a estranha
adição de um líquido suspeito ao vinho, tais homens seriam os últimos a pensar
em violar um dos barris e beber do seu vinho.
Àquela altura já
fazia mais de um dia que as duas sacerdotisas trabalhavam sem parar e sem
dormir. Mas, estranhamente, pareciam não sentir qualquer resquício de cansaço
ou de sono. Quando Hilduara perguntou a Vérica como é que elas conseguiam fazer
isso, a moça lhe respondeu sorrindo:
– É a energia da
própria Deusa que nos sustenta, quando precisamos dela, em condições assim
excepcionais. Podemos passar vários dias sem dormir e sem comer nada e, ainda
assim, não teremos sono ou cansaço. Mas agora elas poderão se retirar, orar e
dormir. Tudo o que era preciso fazer já está feito. Agora é só esperar pelos
hunos calmamente.
– Calmamente?!
Você não fica com medo, sendo eles tantos milhares de atacantes?
– Medo? Eu?!
Ora, não diga bobagens, minha amiga. Meu único medo nesta vida é perder minha
avó e minha mãe. Agora, de guerra, de homens, ah, disso eu não tenho medo, não.
– Mas eles são
tantos, Vérica... E tão terríveis! Eu sei, eu os conheço muito bem.
– Ora, criatura,
e daí que eles sejam muitos? Para mim é tudo muito simples. Se eu luto com um
inimigo, ou eu o mato ou ele me mata. Se eu o mato, está tudo bem. Se é ele que
me mata, está tudo bem também. Então minha hora chegou e minha Deusa veio me
buscar, que mais eu posso querer?
– Mas e se você
for ferida gravemente?
– Ora Hilduara,
é mais ou menos a mesma coisa. Ou a Deusa me cura e está tudo bem. Ou eu não
posso ser curada. Então eu morro e vou embora com minha Deusa. Não está bem
assim, também?
– Ah, Vérica,
Vérica, quanto mais eu a conheço, mais eu a admiro. Como eu queria ser como
você! Você é mais ágil e mais forte que qualquer homem.
– Não, Hilduara,
não queira ser como eu. Você nasceu para outra coisa. Você é muito mais mulher
que eu, muito mais delicada que eu, muito mais feminina que eu. Seja assim como
você é, você é adorável.
– Mas, Vérica,
se eu nem mesmo sou mulher de verdade...
– Ora, Hilduara,
nunca mais diga uma asneira dessas, criatura! Pois se eu mesma estou
reconhecendo que você é muito mais MULHER do que eu. Muito mais Mulher,
entendeu. Você é a criatura mais feminina que já eu conheci até hoje. Então não
repita essa bobagem nunca mais. Eu sei, a Deusa mesma me fez sentir, quando eu
vi esses seus belos olhos pela primeira vez, que você é mulher e que você
pertence a ela. Então pare de se martirizar por causa de bobagens, criatura. A
Deusa estendeu sua mão sobre você. Ninguém jamais saberá do seu segredo. Você
se tornará uma de nós, terá um marido que a ama, a Deusa lhe dará filhos e...
–Filhos?! Mas como uma pessoa como eu poderá
ter filhos, Vérica?!
–Não grite, criatura! Ora, o que mais existe
neste mundo são filhos que as mães enjeitam ou não podem criar. E, com essas
malditas guerras que nunca têm fim, invasões, saques, o que mais existe também
são órfãos, mulher! A Deusa lhe dará os seus no seu devido momento, depois que
você começar a servi-la.
Os olhos suaves
de Hilduara se encheram de lágrimas e ela começou a chorar emocionadíssima, a
ponto de fazer a dura Vérica emocionar-se e chegar às lágrimas também. Para a
sofrida moça ostrogoda, aquelas palavras que acabara de ouvir eram como se
todos os anjos dos céus tivessem descido à terra para cantar para ela. Ser Mãe!
Ela! Ela ser mãe! Seu peito parecia que ia explodir de tanta felicidade. E
Armosic, que havia renunciado definitivamente a ter filhos, um grande desejo
seu, para poder ficar com ela pelo resto da vida! Como ele ficaria feliz quando
soubesse isso! E, pensando nisso, Hilduara teve
um novo ataque de choro. Vérica
enlaçou-a pelos ombros, algo que nunca tinha feito, e surpreendeu-se com a
leveza, a delicadeza, a extrema fragilidade da estrutura óssea daquela mulher
tão alta e tão bonita. Era tão feminina que parecia que ia quebrar. E,
enlaçado-a pela cintura, levou-a até a porta do aposento onde Armosic já dormia
a um bom tempo, preparando-se para a dura jornada do dia que ia começar.
Um dia de muito
sangue, a imagem passou-lhe rápida pela mente. Viu dois grupos enormes de
cavaleiros que avançavam ferozmente um contra o outro, lançando-se centenas de
flechas mortíferas mutuamente. Homens e cavalos tombavam como moscas dos dois lados dos combatentes. A
visão sumiu rapidamente, mas deixou Vérica mortificada, lastimando pelos
cavaleiros visigodos, que adoravam Alana.
A vanguarda do hunos
No outro dia de
manhã todos ocuparam seu postos e iniciaram as marchas ou os trabalhos que tinham
que fazer. Passava pouco de meio-dia, quando um pequeno pelotão de cerca de
vinte batedores hunos se fez visível na via Agripa. Pararam, trotaram devagar
pela estrada, olhando preocupados para a cidadela de Châlons. Chegaram o mais
perto que puderam, sem sair da estrada e começaram a chamar em seu idioma. Não
obtiveram nenhuma resposta. Concluíram que a velha fortaleza de Châlons estava
tão abandonada e deserta quanto sempre estivera, com suas guarnições ridículas
de meia centena de homens ou, na maior parte das vezes, sem contar nem mesmo
com isso. Se francos houvera ali, era certo que eles, uns covardes que morriam
de medo dos hunos, há muito já tinham fugido.
Retomaram a
marcha a galope em direção à ponte sobre o Marne. E então estacaram,
estupefatos! Não existia mais ponte! Deram meia volta e partiram a toda
velocidade para o sul, para relatar a seus companheiros, que logo chegariam ali,
a terrível novidade. Homens, evidentemente usando catapultas, haviam destruído
toda a estrutura da ponte.
CONTINUA
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