quinta-feira, 14 de março de 2013


O CERCO – 26   Novela histórica
MILTON  MACIEL

Resumo do cap. 25 – As sacerdotisas Alana e Kyna conseguem apurar, por seus estranhos meios, que na tarde do dia seguinte chegarão a Châlons os primeiros 3600 cavaleiros hunos. Mais 5000 os seguem, com diferença de poucas horas. Ao todo, os efetivos de Átila e seus aliados, em deslocamento pela grande estrada principal, a Via Agripa, são de 36000. Dois dias de diferença atrás, romanos, visigodos e seus aliados os perseguem com 45000 homens. Cabe aos pouco mais de 700 guerreiros francos e visigodos fazer face a eles e barrar-lhes o caminho, até a chegada dos aliados que perseguem Átila. Uma clara impossibilidade, ainda que para isso alistassem os 900 civis da fortaleza, outra clara impossibilidade. Mas as sacerdotisas sugerem um plano de destruição da grande ponte romana de pedra, sobre o Marne, usando as duas catapultas que existem na fortaleza. E preparam as outras táticas de resistência ao inexorável avanço huno.

 A DESTRUIÇÃO DA PONTE SOBRE O RIO MARNE. OS HUNOS DE ÁTILA CHEGAM.

Durante todo o dia os francos trabalharam freneticamente em diversas frentes, preparando-se para o iminente choque com a vanguarda de cavaleiros hunos. Os cavaleiros visigodos, junto com um grande número de civis, foram destacados para trabalhar na floresta, onde ficaram toda a manhã e toda a tarde daquele dia. Durante a tarde, um grande número de carroças com suprimentos diversos foi levada para a floresta também. Pareceu evidente, para todos, que os chefes (ou seja, na prática, as sacerdotisas) estavam preparando uma fuga para a floresta.

Todos concordaram e trabalharam com mais ânimo, posto que era evidente que, se tentassem ficar dentro da fortaleza, seriam colhidos como um bando de ratos numa ratoeira pelos hunos.

Quanto a Armosic e seus homens, eles levaram as duas catapultas para fora da fortaleza, remontaram-nas totalmente e começaram, no início da tarde, os exercícios de colocação a diferentes distâncias, testando-as com os primeiros projéteis de pedra. Quando do quinto fracasso, com as enormes pedras caindo além da ponte, Alana correu até eles e mandou-os parar.

Ato contínuo, ela montou na primeira catapulta e mandou os homens empurrarem-na em direção sudeste. Então, subitamente, ela ordenou que parassem:

– Aqui! Parem. Podem fixar.

E repetiu a mesma operação com a segunda catapulta, que fez deslocar ainda para mais longe, em direção nordeste.

Quando os homens dispararam a primeira pedra, ela descreveu sua trajetória parabólica e foi se estatelar em cheio sobre a ponte. Uma parte inteira da amurada ruiu fragorosamente sobre o Marne. Os homens todos prorromperam num vigoroso aplauso, com vivas e assobios. Mas Alana não se mostrou satisfeita. Subiu de novo na catapulta e então olhou para o alto da muralha norte, fazendo um aceno de mão.  

Lá de cima, a sacerdotisa-mor respondeu ao gesto, mas depois levantou o outro braço e fez um gesto de encontro dos dois braços, colocando-os em ângulo.  Alana entendeu imediatamente o significado daquilo e mandou fazer um deslocamento mínimo da máquina de guerra. Desta vez, o projétil arremessado atingiu em cheio um dos pilares centrais da ponte, arrancando-lhe um grande pedaço. A parte da pista que estava apoiada sobre ele foi fazer-lhe companhia no fundo do rio.

O operação foi repetida para a segunda catapulta. O tiro foi fatal, atingindo o leito da ponte em sua parte mais delgada, bem ao centro. A partir daí, para cada novo projétil de pedra colocado numa catapulta, as sacerdotisas repetiam o trabalho de ajuste fino. O ataque à ponte, ao invés de ser um atirar a esmo e com pressa, como os francos o fariam, possivelmente consumindo e perdendo todas as suas 48 grandes pedras dentro do rio, foi extremamente lento e preciso.

Duas horas e vinte e dois projéteis depois, a grande ponte romana sobre o rio Marne era uma ruína de todo inútil, formada agora apenas por restos de oito pilares e pedaços horizontais das duas cabeceiras. A gritaria promovida então, quando o último pedaço caiu e afundou no rio, foi qualquer coisa de extraordinária. Só então Kyna saiu de seu posto no alto da muralha e Alana pôs-se a caminhar em direção ao portão da cidadela. Ia com pressa, havia muita coisa a fazer ainda.

A essa altura, Meroveu – ou seja, Vérica – coordenava os trabalhos nas muralhas e na floresta. Enquanto isso, Kyna e Alana se recolheram a seu alojamento e começaram a fazer a manipulação das últimas quantidades de materiais de que dispunham para fazer mais fogo grego. Depois, após uma hora inteira de meditação e preces ante a efígie da Deusa, acenderam um fogo, sobre o qual arremessaram um pó que lhe deu uma estranha cor verde e iniciaram uma série de preparações líquidas, que eram fervidas numa retorta de vidro e passavam para outros recipientes muito bem fechados depois, todos eles de vidro também. A noite caiu e elas continuaram a trabalhar, se revezando, sempre uma delas cuidando das preparações alquímicas e a outra indo ter com Meroveu, Vérica, Armosic e Hilduara, para avaliar os resultados das operações e para ordenar novas ações.

Hilduara havia passado a tarde toda coordenando o trabalho das mulheres, que envolvia a preparação para a retirada da fortaleza, com toda a necessária e complicada logística de coisas a levar. Foi-lhe muito difícil conseguir que as mulheres só levassem para as carroças aquilo que era estritamente necessário para uma curta estada fora da cidadela. Mas, com toda sua doçura e uma incrível capacidade de liderança, que era na verdade uma inexplicável capacidade de se fazer amada instantaneamente, a ostrogoda conseguiu que todas as mulheres seguissem suas determinações até o fim. 

Findo esse trabalho, já ao cair da noite Vérica, deixando Meroveu à vontade para também dar algumas ordens, veio buscá-la para, juntas, inspecionarem o manancial da grande nascente interna da fortaleza, o segredo de sua maior capacidade de resistir aos cercos historicamente. Essa cidadela havia sido construída praticamente ao redor de uma grande nascente de água puríssima, que descia das montanhas por dentro da terra e brotava ali em um jorro poderoso. Não havia forma alguma de um exército inimigo, que cercasse a fortaleza, conseguir cortar ou envenenar o suprimento de água daquela cidadela. Vérica falou a Hilduara que elas teriam que voltar àquele manancial antes de deixarem a fortaleza no dia seguinte. Seria a última coisa que as duas fariam antes de sair. 

Por sua vez Alana levou alguns dos seus visigodos, assim que todos voltaram do trabalho na floresta, e foi com eles retirar todos os barris de vinho da grande adega da fortaleza, onde estavam empilhados. Ela os fez dispor numa fileira múltipla, mas sem empilhamento, no grande salão central da cidadela, junto à parede e próximo à grande mesa de banquete. Havia ali uma boa reserva do melhor vinho gaulês, sessenta e dois barris lacrados, de vinho envelhecido. Alana fez abrir cada uma das tampas com muito cuidado, para que elas fossem respostas no lugar com perfeição depois.

Então chegou Kyna, com três frascos longos, contendo um líquido amarelo-citrino muito espesso, resultado da longa preparação dessa noite. O conteúdo de dois dos frascos passou a ser vertido, por ela e Alana, dentro de cada um dos barris de vinho. O terceiro frasco foi reservado à parte. A quantidade vertida era ínfima, o que mostrava que aquilo não era uma substância venenosa. Todas as tampas foram repostas criteriosamente. Qual seria o mistério por trás daquela ação? As sacerdotisas nada disseram, apenas proibiram que alguém, a partir daquele momento, se aproximasse dos barris. E deixaram alguns homens de confiança de guarda a noite toda. Obviamente, tendo estes visto a estranha adição de um líquido suspeito ao vinho, tais homens seriam os últimos a pensar em violar um dos barris e beber do seu vinho.

Àquela altura já fazia mais de um dia que as duas sacerdotisas trabalhavam sem parar e sem dormir. Mas, estranhamente, pareciam não sentir qualquer resquício de cansaço ou de sono. Quando Hilduara perguntou a Vérica como é que elas conseguiam fazer isso, a moça lhe respondeu sorrindo:

– É a energia da própria Deusa que nos sustenta, quando precisamos dela, em condições assim excepcionais. Podemos passar vários dias sem dormir e sem comer nada e, ainda assim, não teremos sono ou cansaço. Mas agora elas poderão se retirar, orar e dormir. Tudo o que era preciso fazer já está feito. Agora é só esperar pelos hunos calmamente.

– Calmamente?! Você não fica com medo, sendo eles tantos milhares de atacantes?

– Medo? Eu?! Ora, não diga bobagens, minha amiga. Meu único medo nesta vida é perder minha avó e minha mãe. Agora, de guerra, de homens, ah, disso eu não tenho medo, não.

– Mas eles são tantos, Vérica... E tão terríveis! Eu sei, eu os conheço muito bem.

– Ora, criatura, e daí que eles sejam muitos? Para mim é tudo muito simples. Se eu luto com um inimigo, ou eu o mato ou ele me mata. Se eu o mato, está tudo bem. Se é ele que me mata, está tudo bem também. Então minha hora chegou e minha Deusa veio me buscar, que mais eu posso querer?

– Mas e se você for ferida gravemente?

– Ora Hilduara, é mais ou menos a mesma coisa. Ou a Deusa me cura e está tudo bem. Ou eu não posso ser curada. Então eu morro e vou embora com minha Deusa. Não está bem assim, também?

– Ah, Vérica, Vérica, quanto mais eu a conheço, mais eu a admiro. Como eu queria ser como você! Você é mais ágil e mais forte que qualquer homem.

– Não, Hilduara, não queira ser como eu. Você nasceu para outra coisa. Você é muito mais mulher que eu, muito mais delicada que eu, muito mais feminina que eu. Seja assim como você é, você é adorável.

– Mas, Vérica, se eu nem mesmo sou mulher de verdade...

– Ora, Hilduara, nunca mais diga uma asneira dessas, criatura! Pois se eu mesma estou reconhecendo que você é muito mais MULHER do que eu. Muito mais Mulher, entendeu. Você é a criatura mais feminina que já eu conheci até hoje. Então não repita essa bobagem nunca mais. Eu sei, a Deusa mesma me fez sentir, quando eu vi esses seus belos olhos pela primeira vez, que você é mulher e que você pertence a ela. Então pare de se martirizar por causa de bobagens, criatura. A Deusa estendeu sua mão sobre você. Ninguém jamais saberá do seu segredo. Você se tornará uma de nós, terá um marido que a ama, a Deusa lhe dará filhos e...

 –Filhos?! Mas como uma pessoa como eu poderá ter filhos, Vérica?!

 –Não grite, criatura! Ora, o que mais existe neste mundo são filhos que as mães enjeitam ou não podem criar. E, com essas malditas guerras que nunca têm fim, invasões, saques, o que mais existe também são órfãos, mulher! A Deusa lhe dará os seus no seu devido momento, depois que você começar a servi-la.

Os olhos suaves de Hilduara se encheram de lágrimas e ela começou a chorar emocionadíssima, a ponto de fazer a dura Vérica emocionar-se e chegar às lágrimas também. Para a sofrida moça ostrogoda, aquelas palavras que acabara de ouvir eram como se todos os anjos dos céus tivessem descido à terra para cantar para ela. Ser Mãe! Ela! Ela ser mãe! Seu peito parecia que ia explodir de tanta felicidade. E Armosic, que havia renunciado definitivamente a ter filhos, um grande desejo seu, para poder ficar com ela pelo resto da vida! Como ele ficaria feliz quando soubesse isso! E, pensando nisso, Hilduara teve  um novo ataque de choro.  Vérica enlaçou-a pelos ombros, algo que nunca tinha feito, e surpreendeu-se com a leveza, a delicadeza, a extrema fragilidade da estrutura óssea daquela mulher tão alta e tão bonita. Era tão feminina que parecia que ia quebrar. E, enlaçado-a pela cintura, levou-a até a porta do aposento onde Armosic já dormia a um bom tempo, preparando-se para a dura jornada do dia que ia começar.

Um dia de muito sangue, a imagem passou-lhe rápida pela mente. Viu dois grupos enormes de cavaleiros que avançavam ferozmente um contra o outro, lançando-se centenas de flechas mortíferas mutuamente. Homens e cavalos tombavam  como moscas dos dois lados dos combatentes. A visão sumiu rapidamente, mas deixou Vérica mortificada, lastimando pelos cavaleiros visigodos, que adoravam Alana.

A vanguarda do hunos

No outro dia de manhã todos ocuparam seu postos e iniciaram as marchas ou os trabalhos que tinham que fazer. Passava pouco de meio-dia, quando um pequeno pelotão de cerca de vinte batedores hunos se fez visível na via Agripa. Pararam, trotaram devagar pela estrada, olhando preocupados para a cidadela de Châlons. Chegaram o mais perto que puderam, sem sair da estrada e começaram a chamar em seu idioma. Não obtiveram nenhuma resposta. Concluíram que a velha fortaleza de Châlons estava tão abandonada e deserta quanto sempre estivera, com suas guarnições ridículas de meia centena de homens ou, na maior parte das vezes, sem contar nem mesmo com isso. Se francos houvera ali, era certo que eles, uns covardes que morriam de medo dos hunos, há muito já tinham fugido.

Retomaram a marcha a galope em direção à ponte sobre o Marne. E então estacaram, estupefatos! Não existia mais ponte! Deram meia volta e partiram a toda velocidade para o sul, para relatar a seus companheiros, que logo chegariam ali, a terrível novidade. Homens, evidentemente usando catapultas, haviam destruído toda a estrutura da ponte.

CONTINUA

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