terça-feira, 12 de março de 2013


O CERCO – 24   Novela histórica 
MILTON  MACIEL

Resumo do cap. 23 – Os hunos foram ludibriados pelo truque da “multiplicação das feiticeiras”. Valendo-se da extrema semelhança entre elas, Kyna, Alana e Vérica, com roupas sacerdotais idênticas, Vérica com seu arco descomunal e as outras duas com meras réplicas inúteis do mesmo, foram vistas pelos hunos como uma feiticeira que se multiplicava, o que os encheu de pavor. Crianças, encurvadas para parecerem gnomos corcundas, acendiam tochas à frente delas e elas apareciam em lugares sempre  diferentes, “multiplicando-se” cada vez mais. Na planície, na escuridão, mais de 700 civis e os 500 soldados francos de infantaria, portando três tochas cada um, acenderam-nas e deram a impressão de um enorme contingente de infantaria que avançava. Para completar, o jovem ostrogodo apareceu de repente no acampamento, como um falso mensageiro huno, assustando ainda mais os invasores, com a história de centenas de feiticeiras multiplicadas, que lhes comeriam as cabeças.

TRIUNFO TOTAL

Ao mesmo tempo em que o rapaz partia, outra flecha, que veio de uma das feiticeiras que estavam à esquerda, atingiu em cheio o centro do acampamento. O que aquele chefe estúpido estava esperando para ordenar a retirada, a fuga mesmo? O desgraçado continuava de arco retesado, apontando ora para um, ora para outro, dos seus homens e berrando descontrolado, chamando a todos de covardes. Não tinha ouvido o que o mensageiro de Átila tinha falado?!

De repente o chefe berrou mais alto: seu peito acabava de ser atingido por mais de dez setas disparadas por vários dos seus próprios arqueiros. Os homens gritaram de alegria e, incontinenti, iniciaram a marcha a máximo galope em direção ao norte. Na fuga deixaram não só o chefe morto instantes atrás, como também o general moribundo, que recebera no peito a flecha da feiticeira à beira do fosso dos francos. E mais de 60 feridos com gravidade, que guardavam leito dentro das tendas e que se renderam facilmente aos visigodos, quando estes chegaram.

Deixaram também tudo o que possuíam em armamentos de combate em terra: lanças, espadas, escudos maiores. Também ficaram para trás víveres, água, óleo para tochas, animais para alimentação e alguns objetos de saque. Fugiram levando apenas a roupa do corpo, seus arcos e algumas poucas flechas nas aljavas, além de seus minúsculos escudos de braço. Para sobreviver em sua longa jornada rumo ao norte, primeiro, e ao oeste, depois, teriam que atacar propriedades rurais e vilarejos, para arranjar o que comer e beber.

Os cavaleiros visigodos então aceleraram a marcha para o acampamento huno e, desmontando rapidamente, trataram de combater o incêndio que ameaçava destruir tudo o que os fugitivos tinham deixado para trás. O fogo, vindo de apenas três flechas, alimentadas de propósito com muito pouco FOGO GREGO, foi fácil de debelar. À luz do restante das chamas, foi possível ver que a multidão de bruxas multiplicadas se restringia agora a três somente, que chegavam caminhando calmamente até o acampamento iluminado pelas chamas já sob controle. Andando com elas, o bando de crianças corajosas, meninos e meninas, que, caminhando encurvados como gnomos, carregaram as tochas à frente das “feiticeiras multiplicadas”.

Alana e Kyna sorriam aliviadas e felizes. Mas Vérica, sempre intensa, dava gargalhadas e soltava gritos estridentes de comemoração:

– Eu não disse que a gente vinha aqui e botava todos eles pra correr, Avó?

– Disse, sim, minha querida. Mas eu espero que você não esteja pensando que isso é obra sua, só porque disparou três flechinhas loucas ao acaso.

– Não avó, eu não sou mais tão frívola e vaidosa, aprendi minha lição bem aprendida! Isto aqui foi obra de todos nós, cada um de nós foi heróico à sua maneira. Especialmente estas crianças, que não tiveram medo de ficar na primeira linha, ao alcance de uma carga da cavalaria dos hunos, caminhando encurvadas como anões corcundas.

– Sim, e graças a Hilduara, que o descobriu e treinou, que teve a idéia em si, tivemos a ação fantástica do menino ostrogodo. Fantástica mesmo!

E Alana completou:

– Ainda mais fantástica é a missão que ele leva agora, como enorme responsabilidade sobre seus ombros delgados de criança. Se ele for bem sucedido, então poderemos dizer que ele ganhou a guerra para todos nós.

– É verdade, minha filha. Mas nesse ponto temos também que dar um bom crédito a nossa arqueira aqui, que conseguiu pacientemente apagar a mensagem original de Átila, escrita de próprio punho, com seu sinete e lacre de cera, e escreveu outra, com o mesmo tipo de letra, mandando os hunos de Lutécia (Paris) seguirem para o Sul, em direção a Aurelianum (Orléans). Assim esse outro exército de Átila jamais se reunirá ao primeiro e ambos serão atacados, cada um a seu tempo, por nossas tropas aliadas. E, sem dúvida, separados eles não nos podem resistir.

– Sim, Mãe, isso será magnífico. Mas agora acho que nós devemos apanhar nossos cavalos com meus visigodos e voltar. Vou mandar que eles fiquem aqui até o amanhecer, guardando este acampamento. Não que eu pense que os hunos possam voltar, mas é melhor para que não haja pilhagem dos despojos dos hunos. Amanhã, com a luz do dia, o rei Meroveu tomará as providências cabíveis.

Alana deu suas ordens rapidamente, e os visigodos trataram de se acomodar da melhor maneira que puderam para pernoitar no acampamento dos hunos. As sacerdotisas voltaram rapidamente a cavalo, com um destacamento de trinta visigodos, levando cada um, à garupa, uma das crianças de volta para casa, na cidadela. No caminho elas e os visigodos foram avisando a massa de pessoas, que ainda avançava lentamente para o norte, do grande sucesso e da fuga dos hunos.

Podiam todos voltar para suas casas na fortaleza. Eles, os civis, mais os 500 infantes de Meroveu, conduzindo cada um TRES tochas ao mesmo tempo, tinham sido fundamentais para dar aos hunos a impressão que uma massa imensa de infantaria avançava para atacá-los. A tática da multiplicação envolvia bem mais do que “multiplicar” somente a feiticeira ruiva.

Lá atrás, na retaguarda, montando desajeitadamente cerca de 120 cavalos tomados aos hunos, outro grupo de civis, portando tochas acesas, avançava sob o comando do próprio rei Meroveu. Souberam que podiam parar e voltar para casa quando ouviram o tremendo alarido de comemoração promovido pelas centenas de civis a pé, à sua frente, que já tinham começado a voltar para a fortaleza. Os membros dessa “cavalaria” imitaram os gritos de alegria dos participantes da “enorme infantaria” e todos voltaram seus cavalos em direção de casa e dos folguedos de comemoração. Era ainda muito cedo na noite, ninguém conseguiria dormir cedo assim, depois do enorme sucesso desse dia memorável.

Lá fora, na noite escura, cada vez mais distante dali, uma tropa de hunos derrotados havia desistido do cerco a uma certa cidadela, onde um punhado de francos covardes tinha concertado uma aliança com criaturas das profundezas do inferno. Levavam a consciência tranqüila, não foram vencidos pelos francos, mas quem os derrotara tinham sido as forças do mal, representadas por uma feiticeira diabólica que se multiplicava em centenas de feiticeiras iguais e que eram capazes de incendiar o mundo com flechas que, se quisessem, poderiam atingir qualquer ponto da Europa numa fração impensável de tempo. Nascia ali com eles o mito da feiticeira má que se multiplica e que, multiplicada em centenas, todas elas arrancam as cabeças de guerreiros valentes, como os hunos, para comer-lhes os miolos e beber-lhes o sangue. Consolava-os saber que elas não faziam o mesmo com os guerreiros francos, porque esses eram uns frouxos e uns covardes.

As comemorações

Durante o resto da noite, os francos, civis e militares, comemoraram o grande sucesso na fortaleza. Comeram e beberam, tocaram instrumentos e dançaram até depois de meia-noite. O que todos tinham visto acontecer ali era algo que beirava totalmente o impossível. Um pseudo-exército grande, no qual existiam apenas quinhentos e poucos infantes e 220 cavaleiros, tinha posto para correr uma tropa inteira de mais de 1400 hunos, sem disparar um único tiro de arco, exceção feita das três flechas incendiárias de Vérica.

Meroveu era o mais feliz de todos e se revezava a beijar, agradecido, as mãos de cada uma das sacerdotisas, que, mais uma vez, mediante estratagemas prodigiosos, tinham conseguido derrotar e, desta vez, expulsar totalmente os invasores, sendo que até o presente momento os francos só tinha a lamentar cinco baixas: três arqueiros mortos no combate do lago e os dois sentinelas abatidos pelas assassinas hunas sobre a muralha norte. Os invasores tinham a contar mais de quatrocentos mortos e 60 feridos, estes entregues no momento à vigilância dos cavaleiros visigodos no que havia sido o acampamento huno.

Armosic e Hilduara festejavam felizes também. Num certo momento, aproveitando a proximidade dos dois músicos, Hilduara começou a cantar uma bela melodia de sua terra natal, uma canção ostrogoda que falava de alegria e de paz. Foi uma surpresa absoluta para todo mundo, ao constatarem que aquela mulher incrivelmente bonita, tinha uma voz maravilhosa e sabia cantar como quem fizesse aquilo todos os dias profissionalmente. Não a deixaram parar mais de cantar até bem depois de meia-noite.

Com Vérica a coisa foi bem diferente. Ao começar a segunda canção, ela fez um sinal para a Avó, que apenas balançou a cabeça e riu, concordando. Então Vérica aproximou-se de Meroveu, deu-lhe um beliscão no traseiro e o empurrou em direção à rua que levava ao alojamento do rei. Ele reconheceu a premência do desejo dela, falou uma rápida e incabível desculpa e se afastou, com a jovem sacerdotisa já a colhê-lo pelos ombros e a ensaiar os primeiros beijos, empurrando-o sempre para fazê-lo apressar-se.

Todos desataram a rir, maliciosos, e Armosic, dirigindo-se em voz baixa a Hilduara, que havia feito uma pequena pausa para beber água, falou:

– Nunca que nosso rei vai conseguir botar freios nessa potranca selvagem. Mas certamente ele está muito feliz!

– Sabe, meu amado, acho que na força de Vérica está todo o futuro da nação de vocês, francos.

– Como assim, Hilduara?

– Eu sinto que ela, dominando totalmente o rei dos francos, se tornará uma rainha sábia, inspirada e, como uma grande sacerdotisa que é, contando ainda com a ajuda de sua mãe e de sua avó, governará com rara sabedoria e competência. Obter da Deusa a permissão de desposar Vérica, meu amado, será o maior feito histórico do reino de Meroveu.

– Pelos deuses! Da maneira como você fala, parece que o rei vai ser castrado por essa mulher tão poderosa.

– Não, não se trata de castrá-lo. Eu diria que se trata de civilizá-lo, de convertê-lo ao culto da Deusa, de humanizá-lo e de fazê-lo sábio o suficiente para ser capaz de compreender o privilégio que é ter uma mulher tão extraordinária como Vérica a seu lado. Ela é tão mais sábia que ele, Armosic, que ele só não dará o comando total a ela se for um vaidoso fútil. E isso ele já não está sendo desde agora, desde o começo.

– Bem, devo admitir que ela é uma grande e incomparável guerreira,. Mas... você fala em sabedoria e ela, que eu saiba, ainda não fez nem dezessete anos, apesar de todo aquele tamanho e toda aquela massa muscular impressionante.

– Ai é que você se engana, amado meu. Você não pode avaliar criaturas incomuns com valores comuns. Vérica é uma sacerdotisa celta. E está em contato direto com a Deusa. Ela tem a seu alcance a sabedoria milenar da Deusa. E isso a faz sábia, Armosic. Você verá como eu tenho razão, é só uma questão de tempo.

– Pode ser, minha querida, quem sou eu para duvidar de você, que também sabe muito mais do que eu e do que o próprio Meroveu. Nós somos apenas rudes guerreiros, a serviço da construção de uma nação para os francos. Muito provavelmente você tem razão e eu haverei, nesse caso, de ser um súdito leal e agradecido a minha futura rainha celta.

– Armosic, Vérica não faz a mínima questão de ser rainha, ela quer ser somente sacerdotisa. Mas eu soube por ela própria e por Kyna, sua avó, que ela está efetivamente destinada a ser a grande rainha dos francos e a grande presença por trás da unificação de todos os francos.

– Pelos deuses! Isso poderá um dia acontecer? É meu maior sonho na vida.

– Sim, isso acontecerá, Armosic. E será por obra de Vérica e sua semente.

– Que os deuses a bendigam, protejam e lhe dêem longa vida então!

– Sim amado, tanto quanto já o faz a grande Deusa.


Um tempo de dor e sofrimento se avizinha. A guerra de Átila.

Enquanto os últimos notívagos começavam a se recolher, enquanto Hilduara e seu general se recolhiam felizes para o bênção do repouso e enquanto Vérica, insaciável,  exterminava as últimas energias de Meroveu, as duas sacerdotisas, Alana e Kyna, se recolheram à casa sacerdotal e iniciaram um período de vigília e oração, que alcançaria o raiar do novo dia e a maior parte de sua manhã. Viam nuvens negras no horizonte. O período fácil, de combates quase simbólicos estava acabado. De agora em diante, perdas, dor, sangue e sofrimento estavam claramente delineados no céu dos francos. Competia a ela continuar a ajudá-los, ainda mais agora nos momentos de maior aflição moral.

Souberam, durante sua longa meditação, que a vanguarda dos cavaleiros hunos de Átila atingiria Châlons em apenas um dia e meio. Então o dia seguinte era tudo de que iram dispor para se preparar para o ataque. Importantes medidas tinham que ser tomadas logo ao raiar do sol. E as duas já imaginavam em que péssimo estado estaria o comandante em chefe da fortaleza, o rei Meroveu. Com toda certeza, aquela maluca da descendente delas, a esta altura, já o teria colocado fora de combate, sabe-se lá por quanto tempo.

Decidiram que muito cedo recorreriam a Armosic. Ele era o homem certo para assumir o comando naquela hora tão grave.

CONTINUA

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