O CERCO – 24 Novela histórica
MILTON MACIEL
Resumo do cap. 23 – Os hunos foram ludibriados pelo
truque da “multiplicação das feiticeiras”. Valendo-se da extrema semelhança
entre elas, Kyna, Alana e Vérica, com roupas sacerdotais idênticas, Vérica com
seu arco descomunal e as outras duas com meras réplicas inúteis do mesmo, foram
vistas pelos hunos como uma feiticeira que se multiplicava, o que os encheu de
pavor. Crianças, encurvadas para parecerem gnomos corcundas, acendiam tochas à
frente delas e elas apareciam em lugares sempre
diferentes, “multiplicando-se” cada vez mais. Na planície, na escuridão,
mais de 700 civis e os 500 soldados francos de infantaria, portando três tochas
cada um, acenderam-nas e deram a impressão de um enorme contingente de infantaria
que avançava. Para completar, o jovem ostrogodo apareceu de repente no
acampamento, como um falso mensageiro huno, assustando ainda mais os invasores,
com a história de centenas de feiticeiras multiplicadas, que lhes comeriam as
cabeças.
TRIUNFO TOTAL
Ao mesmo tempo
em que o rapaz partia, outra flecha, que veio de uma das feiticeiras que
estavam à esquerda, atingiu em cheio o centro do acampamento. O que aquele
chefe estúpido estava esperando para ordenar a retirada, a fuga mesmo? O
desgraçado continuava de arco retesado, apontando ora para um, ora para outro,
dos seus homens e berrando descontrolado, chamando a todos de covardes. Não
tinha ouvido o que o mensageiro de Átila tinha falado?!
De repente o
chefe berrou mais alto: seu peito acabava de ser atingido por mais de dez setas
disparadas por vários dos seus próprios arqueiros. Os homens gritaram de
alegria e, incontinenti, iniciaram a marcha a máximo galope em direção ao
norte. Na fuga deixaram não só o chefe morto instantes atrás, como também o
general moribundo, que recebera no peito a flecha da feiticeira à beira do
fosso dos francos. E mais de 60 feridos com gravidade, que guardavam leito
dentro das tendas e que se renderam facilmente aos visigodos, quando estes
chegaram.
Deixaram também
tudo o que possuíam em armamentos de combate em terra: lanças, espadas, escudos
maiores. Também ficaram para trás víveres, água, óleo para tochas, animais para
alimentação e alguns objetos de saque. Fugiram levando apenas a roupa do corpo,
seus arcos e algumas poucas flechas nas aljavas, além de seus minúsculos
escudos de braço. Para sobreviver em sua longa jornada rumo ao norte, primeiro,
e ao oeste, depois, teriam que atacar propriedades rurais e vilarejos, para
arranjar o que comer e beber.
Os cavaleiros
visigodos então aceleraram a marcha para o acampamento huno e, desmontando
rapidamente, trataram de combater o incêndio que ameaçava destruir tudo o que
os fugitivos tinham deixado para trás. O fogo, vindo de apenas três flechas,
alimentadas de propósito com muito pouco FOGO GREGO, foi fácil de debelar. À
luz do restante das chamas, foi possível ver que a multidão de bruxas
multiplicadas se restringia agora a três somente, que chegavam caminhando
calmamente até o acampamento iluminado pelas chamas já sob controle. Andando
com elas, o bando de crianças corajosas, meninos e meninas, que, caminhando
encurvados como gnomos, carregaram as tochas à frente das “feiticeiras
multiplicadas”.
Alana e Kyna
sorriam aliviadas e felizes. Mas Vérica, sempre intensa, dava gargalhadas e
soltava gritos estridentes de comemoração:
– Eu não disse
que a gente vinha aqui e botava todos eles pra correr, Avó?
– Disse, sim,
minha querida. Mas eu espero que você não esteja pensando que isso é obra sua,
só porque disparou três flechinhas loucas ao acaso.
– Não avó, eu
não sou mais tão frívola e vaidosa, aprendi minha lição bem aprendida! Isto
aqui foi obra de todos nós, cada um de nós foi heróico à sua maneira.
Especialmente estas crianças, que não tiveram medo de ficar na primeira linha,
ao alcance de uma carga da cavalaria dos hunos, caminhando encurvadas como
anões corcundas.
– Sim, e graças
a Hilduara, que o descobriu e treinou, que teve a idéia em si, tivemos a ação
fantástica do menino ostrogodo. Fantástica mesmo!
E Alana
completou:
– Ainda mais
fantástica é a missão que ele leva agora, como enorme responsabilidade sobre
seus ombros delgados de criança. Se ele for bem sucedido, então poderemos dizer
que ele ganhou a guerra para todos nós.
– É verdade,
minha filha. Mas nesse ponto temos também que dar um bom crédito a nossa
arqueira aqui, que conseguiu pacientemente apagar a mensagem original de Átila,
escrita de próprio punho, com seu sinete e lacre de cera, e escreveu outra, com
o mesmo tipo de letra, mandando os hunos de Lutécia (Paris) seguirem para o
Sul, em direção a Aurelianum (Orléans). Assim esse outro exército de Átila
jamais se reunirá ao primeiro e ambos serão atacados, cada um a seu tempo, por
nossas tropas aliadas. E, sem dúvida, separados eles não nos podem resistir.
– Sim, Mãe, isso
será magnífico. Mas agora acho que nós devemos apanhar nossos cavalos com meus
visigodos e voltar. Vou mandar que eles fiquem aqui até o amanhecer, guardando
este acampamento. Não que eu pense que os hunos possam voltar, mas é melhor
para que não haja pilhagem dos despojos dos hunos. Amanhã, com a luz do dia, o
rei Meroveu tomará as providências cabíveis.
Alana deu suas
ordens rapidamente, e os visigodos trataram de se acomodar da melhor maneira
que puderam para pernoitar no acampamento dos hunos. As sacerdotisas voltaram
rapidamente a cavalo, com um destacamento de trinta visigodos, levando cada um,
à garupa, uma das crianças de volta para casa, na cidadela. No caminho elas e
os visigodos foram avisando a massa de pessoas, que ainda avançava lentamente
para o norte, do grande sucesso e da fuga dos hunos.
Podiam todos
voltar para suas casas na fortaleza. Eles, os civis, mais os 500 infantes de
Meroveu, conduzindo cada um TRES tochas
ao mesmo tempo, tinham sido fundamentais para dar aos hunos a impressão que
uma massa imensa de infantaria avançava para atacá-los. A tática da
multiplicação envolvia bem mais do que “multiplicar” somente a feiticeira
ruiva.
Lá atrás, na
retaguarda, montando desajeitadamente cerca de 120 cavalos tomados aos hunos,
outro grupo de civis, portando tochas acesas, avançava sob o comando do próprio
rei Meroveu. Souberam que podiam parar e voltar para casa quando ouviram o
tremendo alarido de comemoração promovido pelas centenas de civis a pé, à sua
frente, que já tinham começado a voltar para a fortaleza. Os membros dessa
“cavalaria” imitaram os gritos de alegria dos participantes da “enorme
infantaria” e todos voltaram seus cavalos em direção de casa e dos folguedos de
comemoração. Era ainda muito cedo na noite, ninguém conseguiria dormir cedo
assim, depois do enorme sucesso desse dia memorável.
Lá fora, na
noite escura, cada vez mais distante dali, uma tropa de hunos derrotados havia
desistido do cerco a uma certa cidadela, onde um punhado de francos covardes
tinha concertado uma aliança com criaturas das profundezas do inferno. Levavam
a consciência tranqüila, não foram vencidos pelos francos, mas quem os
derrotara tinham sido as forças do mal, representadas por uma feiticeira
diabólica que se multiplicava em centenas de feiticeiras iguais e que eram
capazes de incendiar o mundo com flechas que, se quisessem, poderiam atingir
qualquer ponto da Europa numa fração impensável de tempo. Nascia ali com eles o
mito da feiticeira má que se multiplica e que, multiplicada em centenas, todas
elas arrancam as cabeças de guerreiros valentes, como os hunos, para comer-lhes
os miolos e beber-lhes o sangue. Consolava-os saber que elas não faziam o mesmo
com os guerreiros francos, porque esses eram uns frouxos e uns covardes.
As comemorações
Durante o resto
da noite, os francos, civis e militares, comemoraram o grande sucesso na
fortaleza. Comeram e beberam, tocaram instrumentos e dançaram até depois de
meia-noite. O que todos tinham visto acontecer ali era algo que beirava
totalmente o impossível. Um pseudo-exército grande, no qual existiam apenas
quinhentos e poucos infantes e 220 cavaleiros, tinha posto para correr uma
tropa inteira de mais de 1400 hunos, sem disparar um único tiro de arco,
exceção feita das três flechas incendiárias de Vérica.
Meroveu era o
mais feliz de todos e se revezava a beijar, agradecido, as mãos de cada uma das
sacerdotisas, que, mais uma vez, mediante estratagemas prodigiosos, tinham
conseguido derrotar e, desta vez, expulsar totalmente os invasores, sendo que
até o presente momento os francos só tinha a lamentar cinco baixas: três
arqueiros mortos no combate do lago e os dois sentinelas abatidos pelas
assassinas hunas sobre a muralha norte. Os invasores tinham a contar mais de
quatrocentos mortos e 60 feridos, estes entregues no momento à vigilância dos
cavaleiros visigodos no que havia sido o acampamento huno.
Armosic e
Hilduara festejavam felizes também. Num certo momento, aproveitando a
proximidade dos dois músicos, Hilduara começou a cantar uma bela melodia de sua
terra natal, uma canção ostrogoda que falava de alegria e de paz. Foi uma
surpresa absoluta para todo mundo, ao constatarem que aquela mulher
incrivelmente bonita, tinha uma voz maravilhosa e sabia cantar como quem
fizesse aquilo todos os dias profissionalmente. Não a deixaram parar mais de
cantar até bem depois de meia-noite.
Com Vérica a
coisa foi bem diferente. Ao começar a segunda canção, ela fez um sinal para a
Avó, que apenas balançou a cabeça e riu, concordando. Então Vérica aproximou-se
de Meroveu, deu-lhe um beliscão no traseiro e o empurrou em direção à rua que
levava ao alojamento do rei. Ele reconheceu a premência do desejo dela, falou
uma rápida e incabível desculpa e se afastou, com a jovem sacerdotisa já a
colhê-lo pelos ombros e a ensaiar os primeiros beijos, empurrando-o sempre para
fazê-lo apressar-se.
Todos desataram
a rir, maliciosos, e Armosic, dirigindo-se em voz baixa a Hilduara, que havia
feito uma pequena pausa para beber água, falou:
– Nunca que
nosso rei vai conseguir botar freios nessa potranca selvagem. Mas certamente
ele está muito feliz!
– Sabe, meu
amado, acho que na força de Vérica está todo o futuro da nação de vocês,
francos.
– Como assim,
Hilduara?
– Eu sinto que
ela, dominando totalmente o rei dos francos, se tornará uma rainha sábia,
inspirada e, como uma grande sacerdotisa que é, contando ainda com a ajuda de
sua mãe e de sua avó, governará com rara sabedoria e competência. Obter da
Deusa a permissão de desposar Vérica, meu amado, será o maior feito histórico
do reino de Meroveu.
– Pelos deuses!
Da maneira como você fala, parece que o rei vai ser castrado por essa mulher
tão poderosa.
– Não, não se
trata de castrá-lo. Eu diria que se trata de civilizá-lo, de convertê-lo ao
culto da Deusa, de humanizá-lo e de fazê-lo sábio o suficiente para ser capaz
de compreender o privilégio que é ter uma mulher tão extraordinária como Vérica
a seu lado. Ela é tão mais sábia que ele, Armosic, que ele só não dará o
comando total a ela se for um vaidoso fútil. E isso ele já não está sendo desde
agora, desde o começo.
– Bem, devo
admitir que ela é uma grande e incomparável guerreira,. Mas... você fala em sabedoria e ela, que eu saiba, ainda não
fez nem dezessete anos, apesar de todo aquele tamanho e toda aquela massa
muscular impressionante.
– Ai é que você
se engana, amado meu. Você não pode avaliar criaturas incomuns com valores
comuns. Vérica é uma sacerdotisa celta. E está em contato direto com a Deusa.
Ela tem a seu alcance a sabedoria milenar da Deusa. E isso a faz sábia,
Armosic. Você verá como eu tenho razão, é só uma questão de tempo.
– Pode ser,
minha querida, quem sou eu para duvidar de você, que também sabe muito mais do
que eu e do que o próprio Meroveu. Nós somos apenas rudes guerreiros, a serviço
da construção de uma nação para os francos. Muito provavelmente você tem razão
e eu haverei, nesse caso, de ser um súdito leal e agradecido a minha futura
rainha celta.
– Armosic,
Vérica não faz a mínima questão de ser rainha, ela quer ser somente sacerdotisa.
Mas eu soube por ela própria e por Kyna, sua avó, que ela está efetivamente
destinada a ser a grande rainha dos francos e a grande presença por trás da
unificação de todos os francos.
– Pelos deuses!
Isso poderá um dia acontecer? É meu maior sonho na vida.
– Sim, isso
acontecerá, Armosic. E será por obra de Vérica e sua semente.
– Que os deuses
a bendigam, protejam e lhe dêem longa vida então!
– Sim amado,
tanto quanto já o faz a grande Deusa.
Um tempo de dor e sofrimento se avizinha. A guerra de
Átila.
Enquanto os
últimos notívagos começavam a se recolher, enquanto Hilduara e seu general se
recolhiam felizes para o bênção do repouso e enquanto Vérica, insaciável, exterminava as últimas energias de Meroveu,
as duas sacerdotisas, Alana e Kyna, se recolheram à casa sacerdotal e iniciaram
um período de vigília e oração, que alcançaria o raiar do novo dia e a maior
parte de sua manhã. Viam nuvens negras no horizonte. O período fácil, de
combates quase simbólicos estava acabado. De agora em diante, perdas, dor,
sangue e sofrimento estavam claramente delineados no céu dos francos. Competia
a ela continuar a ajudá-los, ainda mais agora nos momentos de maior aflição
moral.
Souberam,
durante sua longa meditação, que a vanguarda dos cavaleiros hunos de Átila
atingiria Châlons em apenas um dia e meio. Então o dia seguinte era tudo de que
iram dispor para se preparar para o ataque. Importantes medidas tinham que ser
tomadas logo ao raiar do sol. E as duas já imaginavam em que péssimo estado
estaria o comandante em chefe da fortaleza, o rei Meroveu. Com toda certeza,
aquela maluca da descendente delas, a esta altura, já o teria colocado fora de
combate, sabe-se lá por quanto tempo.
Decidiram que
muito cedo recorreriam a Armosic. Ele era o homem certo para assumir o comando
naquela hora tão grave.
CONTINUA
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