Ou: A INOCÊNCIA
MILTON MACIEL
Lucas encostou o corpo (Corpo?!... Aquilo
era corpo? Bem, ossos, digamos. Ossos, cabelos, sujeira, unhas, cachaça. Agora
sim! Essa é uma versão melhor para a figura de Lucas Balmarin. Gaúcho de
nascimento, filho de colonos, neto de italiano, mendigo de profissão, duas
fraquezas fatais: jogo e cachaça. Ou melhor, três: mulher de bunda grande,
também).
Lucas encostou o corpo (Espera aí! dever de
justiça: Lucas já teve um corpo até que razoável. Naquele tempo, rapaz novo da
colônia, bom de enxada e de jogo de osso, corrias as casas de chinas, atrás das
de traseiro empinado. É... mas já faz tanto tempo, besteira perder tempo
lembrando. Hoje ele é só osso, cabelo, sujeira... Melhor seguir com a história,
o leitor se impacienta).
Bem, então Lucas encostou o corpo (Corpo! Já
pensou? Um metro e oitenta de macho gaúcho reduzidos a uns cinqüenta quilos e
olhe lá! “Bah, tchê! Que baita fria essa
de descê do caminhão do Baixinho em São Paulo!” Pois o Baixinho não era flor de camarada? “Só falava da Paraíba e de uma tal de
Campina Grande, cidade buena que só ela, lugar de se viver regalado, muita cachaça, muita mulher.”
Não tinha era trabalho, mas isso Lucas não queria mesmo. Pois o Baixinho não o
levava de carona para a Paraíba? Já não estava tudo acertado? É, mas na hora H,
posto-restaurante em Guarulhos, muito calor, bebida mais ainda, de repente
aquela idéia besta de ficar... Lucas acabou sumindo. Coitado do Baixinho, já
falava compadre prá cá, compadre prá lá. Mas a vida é assim, cada homem tem seu
destino, acaba tomando seu rumo, se quer ou se não quer.
Lucas encostou o corpo para descansar
(Descansar? E essa agora? Só se cansou
os queixos, de tanto beber no gargalo. É, até que o dia tinha sido bom. Batizado na
Igreja do Brooklin, gente bacana, esmolas mais gordas, parecia até os bons
tempos. Bêbado de sorte: numa crise braba dessas, batizado realizado logo após
missa de sétimo dia, intenção da alma de industrial recém-suicidado, crise
feia... Mas, como se diz no Sul, “Criança
e borracho, Deus anda com a mão por baixo”.
Bêbado de sorte! Esmolas gordas, batizado de criança importante, na certa um lorde-bebê
lá do Morumbi. Deu pra uma garrafa inteirinha, das boas).
Lucas encostou o corpo para descansar (Ah!
Por falar em Morumbi: Lucas adorava o Morumbi. “Bairro de gente bacana.” E tem mais: era são-paulino roxo. “Sô pó-de-arroz” (Acho que porque torcia
para o Fluminense carioca, também; e aí fazia a confusão). Adorava o Morumbi, o
São Paulo e, é lógico, mulher de bunda grande. Mas esse negócio de mulher...
Bem, coisa do passado. Há quanto tempo não sabia o que era uma? Afinal, Lucas
não é qualquer mendigo. “Bêbado eu sô,
maloquero, não! Sô pó-de-arroz.” É, Lucas não dormia com moloqueira, mulher
chinfrim, suja de rua. Preferia assim. “É
minha vida, pô!” Tá certo, cada um come o que quer. Ou não come. Pois, como
bem diz o Lucas, “Pues não hay, neste
loco mundo, lugar até pra vegetariano, um esquisito que não come churrasco
porque não qué? E até pra faquir, um santo que vive só de jejum, de só comê ar e reza?”).
Bom, mas como eu dizia, Lucas encostou o
corpo para descansar; Bem no nicho da parede da casa de Madame (Perdão, esqueci
de dizer: Lucas estava de volta ao seu Morumbi, seu bairro do coração, lugar de
gente bacana, do São Paulo. Grande Morumbi, seria perfeito “Se não tivesse tanto guarda particular cavalo, sempre empurrando os
pobre dos magro, se fosse nos bons
tempo eles ia vê!” Estava no Morumbi, no nicho da casa de Madame. Era uma
casa muito grande, toda rosa-escuro, numa daquelas ruas bem largas, cheias de
árvores enormes. Lucas adorava as árvores enormes, lembravam a serra gaúcha. E
adorava mulher de... Bem, isso eu já disse. Mas essa era uma das razões de
Lucas gostar daquela casa: a filha mais velha de Madame
tinha um traseiro que “Bah,
tchê! Cosa de cinema, cosa de praia do Rio, que não morro sem ir lá!”)
Lucas era um voyeur de classe. Legítimo. Só olhava. “Bueno, olhar não tira
pedaço.” Ainda bem! Se tirasse, coitada da filha de Madame! Nunca mais ia
sentar... A filha mais velha, porque a outra não tinha quase nada atrás: “Pobrezita, dá pena tchê, é um desbunde só.” Lucas olhava com respeito. Mais.
Olhava com devoção. Devoção de voyeur
de classe, de artista ante sua musa. Lucas tinha alma de artista. Embora, neste
caso, a musa não fosse propriamente a moça, mas sua bunda empinada. Pobre
Lucas... Ninguém jamais lhe disse que ele é um voyeur, ele adoraria
saber disso. “Francês é língua de bacana,
deve tar assim de francês no Morumbi.”
Bem, mas onde estávamos? Ah, sim, Lucas
encostou o corpo, etc. Sim, encostou ali no nicho (Nicho, providencial, primor
da arquitetura do Morumbi: cabia certo um homem bem magro, oculto pela folhagem
das trepadeiras). “Nome mais
sem-vergonha! Não gosto de erva com esse nome em casa de gente que respeito.” Lucas era respeitador, a
longa abstinência o fizera até pudico. Olhava, é claro, que olhar não tira
pedaço nem nada. Mas pensar em passar a mão... “Tá loco, tchê?! Más respeito
com a bunda da mocinha. É cosa de arte, vê se tu entende.” Bom sujeito,
o Lucas. Respeitador, calmo, uma alma de artista. Artista, só?! Não, filósofo. E que filósofo!
Mas, filósofo ou artista, o fato é que Lucas
encostou o corpo no nicho da parede da casa de Madame. Madame era a outra razão
de Lucas vir a essa rua, a essa casa bendita. Madame era o máximo! “Coitada, deve tar mal das perna, sem gaita,
dinheiro curto, não tem guarda. Bom pra mim, mas é injusto. Mundo ruim, desgraça de uns, sorte de otros.”
Para Lucas, Madame não merecia estar de dinheiro pouco,crise mais sem-vergonha,
mais desrespeitosa, não reconhecia uma pessoa boa no meio das outras. “Mundo velho sem portera, planeta de doido!”
Lucas se encolheu contra a parede. Seu corpo (corpo?) conseguiu
ficar mais magro ainda. Acho bobagem. Do jeito que vai, daqui um tempo só uma
folha já o esconde. Magro demais, esse
Lucas! Mas o encolhimento fora causado pela chegada da filha mais velha de
Madame, que acabava de estacionar o carro. “Oba! Do otro lado da rua. Que bom, dá prá ver más
tempo!”. A moça trancou o carro,
atravessou a rua, entrou em casa, Lucas murchou. “De novo de saia! Isso não vale. Governo más mole esse! Eu, presidente,
baixava decreto: só pode usá saia mulher sem trasero. As otra, era tudo no
shortinho ou na calça comprida.”
Mas era um filósofo, logo se consolou. Afinal, muito mais importante
era Madame. Mas continuou espremido contra a parede por muito tempo, força do
hábito. “Sabe como é, se me enxergam vão
pensar que sô bandido. Mundo loco, este. Hay gente mui malvada: os guarda particular,
os polícia, os ladrão que roubam armado, os que desrespeitam mulher e gente
velha. Se pego um, eu mato!”
E, enfim, o momento supremo: Madame ia rezar.
Lucas distendeu-se todo, relaxou os músculos, fechou os olhos assim que viu a
luz trêmula das velas na alta vidraça fosca e colorida. Preparou-se. A música
ia começar. “Cosa más linda, tchê! Parece
até que é Deus no céu, que tá tocando sua cordiona! Um som más diferente, cosa
de aparelho. Mas que faz a alma da gente subir que nem fumaça no campo.” Lucas
encostou a cabeça na parede, para ouvir melhor a doce voz de Madame:
CONTINUA AMANHÃ
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