domingo, 24 de março de 2013


LUCAS Um vampiro gaúcho no Morumbi, tchê!
Ou: A INOCÊNCIA
MILTON  MACIEL 

   Lucas encostou o corpo (Corpo?!... Aquilo era corpo? Bem, ossos, digamos. Ossos, cabelos, sujeira, unhas, cachaça. Agora sim! Essa é uma versão melhor para a figura de Lucas Balmarin. Gaúcho de nascimento, filho de colonos, neto de italiano, mendigo de profissão, duas fraquezas fatais: jogo e cachaça. Ou melhor, três: mulher de bunda grande, também).

  Lucas encostou o corpo (Espera aí! dever de justiça: Lucas já teve um corpo até que razoável. Naquele tempo, rapaz novo da colônia, bom de enxada e de jogo de osso, corrias as casas de chinas, atrás das de traseiro empinado. É... mas já faz tanto tempo, besteira perder tempo lembrando. Hoje ele é só osso, cabelo, sujeira... Melhor seguir com a história, o leitor se impacienta).

  Bem, então Lucas encostou o corpo (Corpo! Já pensou? Um metro e oitenta de macho gaúcho reduzidos a uns cinqüenta quilos e olhe lá! “Bah, tchê! Que baita fria essa de descê do caminhão do Baixinho em São Paulo!”  Pois o Baixinho não era flor de camarada? “Só falava da Paraíba e de uma tal de Campina Grande, cidade buena que só ela, lugar de se viver regalado, muita cachaça, muita mulher.” Não tinha era trabalho, mas isso Lucas não queria mesmo. Pois o Baixinho não o levava de carona para a Paraíba? Já não estava tudo acertado? É, mas na hora H, posto-restaurante em Guarulhos, muito calor, bebida mais ainda, de repente aquela idéia besta de ficar... Lucas acabou sumindo. Coitado do Baixinho, já falava compadre prá cá, compadre prá lá. Mas a vida é assim, cada homem tem seu destino, acaba tomando seu rumo, se quer ou se não quer.

   Lucas encostou o corpo para descansar (Descansar? E essa agora?  Só se cansou os queixos,  de tanto beber no gargalo.   É, até que o dia tinha sido bom. Batizado na Igreja do Brooklin, gente bacana, esmolas mais gordas, parecia até os bons tempos. Bêbado de sorte: numa crise braba dessas, batizado realizado logo após missa de sétimo dia, intenção da alma de industrial recém-suicidado, crise feia... Mas, como se diz no Sul, “Criança e borracho, Deus anda com a mão por baixo”. Bêbado de sorte! Esmolas gordas, batizado de criança importante, na certa um lorde-bebê lá do Morumbi. Deu pra uma garrafa inteirinha, das boas).

   Lucas encostou o corpo para descansar (Ah! Por falar em Morumbi: Lucas adorava o Morumbi. “Bairro de gente bacana.” E tem mais: era são-paulino roxo. “Sô pó-de-arroz” (Acho que porque torcia para o Fluminense carioca, também; e aí fazia a confusão). Adorava o Morumbi, o São Paulo e, é lógico, mulher de bunda grande. Mas esse negócio de mulher... Bem, coisa do passado. Há quanto tempo não sabia o que era uma? Afinal, Lucas não é qualquer mendigo. “Bêbado eu sô, maloquero, não! Sô pó-de-arroz.” É, Lucas não dormia com moloqueira, mulher chinfrim, suja de rua. Preferia assim. “É minha vida, pô!” Tá certo, cada um come o que quer. Ou não come. Pois, como bem diz o Lucas, “Pues não hay, neste loco mundo, lugar até pra vegetariano, um esquisito que não come churrasco porque não qué? E até pra faquir, um santo que vive só de jejum, de só comê ar e reza?”).

   Bom, mas como eu dizia, Lucas encostou o corpo para descansar; Bem no nicho da parede da casa de Madame (Perdão, esqueci de dizer: Lucas estava de volta ao seu Morumbi, seu bairro do coração, lugar de gente bacana, do São Paulo. Grande Morumbi, seria perfeito “Se não tivesse tanto guarda particular cavalo, sempre empurrando os pobre dos magro, se fosse nos bons tempo eles ia vê!” Estava no Morumbi, no nicho da casa de Madame. Era uma casa muito grande, toda rosa-escuro, numa daquelas ruas bem largas, cheias de árvores enormes. Lucas adorava as árvores enormes, lembravam a serra gaúcha. E adorava mulher de... Bem, isso eu já disse. Mas essa era uma das razões de Lucas gostar daquela casa: a filha mais velha de  Madame  tinha um traseiro  que  “Bah, tchê! Cosa de cinema, cosa de praia do Rio, que não morro sem ir lá!”)

  Lucas era um voyeur de classe. Legítimo. Só olhava. “Bueno, olhar não tira pedaço.” Ainda bem! Se tirasse, coitada da filha de Madame! Nunca mais ia sentar... A filha mais velha, porque a outra não tinha quase nada atrás: “Pobrezita, dá pena tchê, é um desbunde só.” Lucas olhava com respeito. Mais. Olhava com devoção. Devoção de voyeur de classe, de artista ante sua musa. Lucas tinha alma de artista. Embora, neste caso, a musa não fosse propriamente a moça, mas sua bunda empinada. Pobre Lucas... Ninguém jamais lhe disse que ele é um voyeur, ele adoraria saber disso. “Francês é língua de bacana, deve tar assim de francês no Morumbi.”

   Bem, mas onde estávamos? Ah, sim, Lucas encostou o corpo, etc. Sim, encostou ali no nicho (Nicho, providencial, primor da arquitetura do Morumbi: cabia certo um homem bem magro, oculto pela folhagem das trepadeiras). “Nome mais sem-vergonha! Não gosto de erva com esse nome em casa de gente que respeito.” Lucas era respeitador, a longa abstinência o fizera até pudico. Olhava, é claro, que olhar não tira pedaço nem nada. Mas pensar em passar a mão... “Tá loco, tchê?! Más respeito com a bunda da mocinha. É cosa de arte, vê se tu entende.” Bom sujeito, o Lucas. Respeitador, calmo, uma alma de artista. Artista, só?!  Não, filósofo. E que filósofo!

   Mas, filósofo ou artista, o fato é que Lucas encostou o corpo no nicho da parede da casa de Madame. Madame era a outra razão de Lucas vir a essa rua, a essa casa bendita. Madame era o máximo! “Coitada, deve tar mal das perna, sem gaita, dinheiro curto, não tem guarda. Bom pra mim, mas é injusto. Mundo ruim, desgraça de uns, sorte de otros.” Para Lucas, Madame não merecia estar de dinheiro pouco,crise mais sem-vergonha, mais desrespeitosa, não reconhecia uma pessoa boa no meio das outras. “Mundo velho sem portera, planeta de doido!”

   Lucas se encolheu contra a parede. Seu corpo (corpo?) conseguiu ficar mais magro ainda. Acho bobagem. Do jeito que vai, daqui um tempo só uma folha já o esconde. Magro  demais, esse Lucas! Mas o encolhimento fora causado pela chegada da filha mais velha de Madame, que acabava de estacionar o carro. “Oba!  Do otro lado da rua. Que bom, dá prá ver más tempo!”. A moça trancou o carro, atravessou a rua, entrou em casa, Lucas murchou. “De novo de saia! Isso não vale. Governo más mole esse! Eu, presidente, baixava decreto: só pode usá saia mulher sem trasero. As otra, era tudo no shortinho ou na calça comprida.”

   Mas era um filósofo, logo se consolou. Afinal, muito mais importante era Madame. Mas continuou espremido contra a parede por muito tempo, força do hábito. “Sabe como é, se me enxergam vão pensar que sô bandido. Mundo loco, este. Hay gente mui malvada: os guarda particular, os polícia, os ladrão que roubam armado, os que desrespeitam mulher e gente velha. Se pego um, eu mato!”

  E, enfim, o momento supremo: Madame ia rezar. Lucas distendeu-se todo, relaxou os músculos, fechou os olhos assim que viu a luz trêmula das velas na alta vidraça fosca e colorida. Preparou-se. A música ia começar. “Cosa más linda, tchê! Parece até que é Deus no céu, que tá tocando sua cordiona! Um som más diferente, cosa de aparelho. Mas que faz a alma da gente subir que nem fumaça no campo.” Lucas encostou a cabeça na parede, para ouvir melhor a doce voz de Madame:

CONTINUA AMANHÃ

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