segunda-feira, 25 de março de 2013


LUCAS – Um vampiro gaúcho - 2ª. PARTE 
Ou: A INOCÊNCIA    
MILTON  MACIEL   

    “Almerinda, seu traste! Já não mandei avivar a lareira do meu quarto quando vou meditar? Idiota! Agora vou passar frio com o collant de ginástica.” Mas, enfim, fez-se silêncio. Madame ligou o aparelho, Deus começou a tocar cordiona no céu... Lucas estremeceu, esperou a prece de Madame. Perdeu as palavras iniciais, mas isso não tinha importância. Ele não entendia nada mesmo. Era “palavreado em língua enrolada, dos estrangero, com cantoria, chamava um tal de OOMMM. Deve de sê um grande santo  o então um anjo dos graduado.”

   Mas a parte melhor, aquela que ele adorava mesmo, essa ele sempre ouvia, já era em língua de gente:  “É pra mim, pros como eu”, emocionou-se. Madame entoava: “... minhas vibrações pelos aflitos, Senhor. Pelos que sofrem, pelos que passam frio e fome neste mundo ingrato. Pelos bêbados na rua, pelos doentes nos hospitais, pelos presos nos cárceres, pelas infelizes protitu...”

  Mais não conseguiu ouvir, só o barulho inesperado de guinchar de freios, porta de carro batendo, motor de moto rugindo, gritos. Saiu do êxtase, meio tonto de enlevo, meio tonto de cachaça. Não entendeu bem o que se passava. A filha mais moça de Madame descia do carro, aos gritos. Dois homens a seguravam, deviam ter vindo na moto, um mulato e um branco. O mulato segurava um revólver. O branco, o pescoço fino da filha de Madame.

  Despertado, enfim, do seu torpor, Lucas ficou enfurecido: “Os bandido! Tão querendo pegá a filha da Madame! Devem de sê cego, ela nem bunda tem!” Por um rápido instante passou em sua mente a imagem da filha mais velha, sua musa: podia ter sido com ela e isso o deixou mais furioso ainda. No instante seguinte lhe veio a imagem de Madame, coitada, sofrendo, os bandidos levando sua filhinha por aí, fazendo maldades com ela. Pobrezinha, nem bunda tinha. Foi demais! O sangue italiano explodiu, misturado ao de índia charrua, sua avó. Lucas saltou do esconderijo sobre os dois homens, dando um berro horroroso de raiva e indignação.

   Foi tudo tão rápido, mal dá para contar. Os bandidos (que não queriam nada com a garota magricela, queriam era entrar na casa para roubar) e a própria moça levaram todos o maior susto de toda a sua vida. Aquele vulto terrível, alto, esquelético, desgrenhado, sujo, enorme cabelo meio claro meio imundo, um farrapo cobrindo todo o corpo e, o que é pior, saindo do nada, no lusco-fusco do início da noite. Do nada? Pior, o bicho tinha saído era de dentro da parede, como é que pode?!  Só podia ser coisa de assombração, coisa do outro mundo, alma penada, o próprio cão em pessoa. Aí os três, vítima e atacantes, danaram a gritar ainda mais alto que o Lucas. Mas eram berros de puro cagaço, pavor total, absoluto!

    O mulato, com agilidade de bicho acuado, se precipitou sobre a moto e partiu como um furacão, cuidando da própria pele e deixando o companheiro para distrair o demônio. “Bruto castigo! pensou, olha o que me espera, hoje mesmo largo esta vida de bandido, viro beato, faço promessa, pago novena. Aí, Meus Deus, tenha piedade!!!” O bandido branco viu que estava na pior, não tinha saída, ia vender caro a pele ao coisa-ruim: “Minha alma ocê num leva, seu cão dos inferno!” Viu o revólver que o mulato deixara cair – Cagão duma figa, deixava-o nas mãos do diabo.

Agiu mais rápido do que pensou. Jogou-se ao chão, catou a arma, descarregou o tambor. Três em direção ao covarde que fugia na moto, errou, longe demais. Voltou-se para a aparição do demo, deu mais três vezes no gatilho. “Te esconjuro, alma do cão!” O vulto, magro demais para ser atingido, cresceu em sua direção. Uma dor horrorosa lhe entrou na altura da orelha, sentiu, com desespero, o cheiro que deve ter o próprio inferno, cheiro de coisa podre, de coisa ruim. Devia ser o tal de enxofre de que falavam. Deu um empurrão na coisa, pernas prá que te quero, deve estar correndo até hoje.

   Lucas limpou a boca, cuspiu uma coisa, sentiu um gosto esquisito. No chão, rolou um pedaço de orelha branca, com brinquinho de ouro e tudo. Lucas não viu nada, no escuro. Voltou-se à procura da menina, que já batia o portão de entrada atrás de si. Gritava ainda, sem parar, descontrolada, apavorada com o vulto horrendo que a atacara e aos bandidos. Voltou-se, terrificada, ainda um último instante, enquanto o portão se fechava. Uma fração de segundo, o suficiente para ver que o a criatura tinha sangue na boca. Deus do céu, um vampiro!

  Dentro de casa o susto foi terrível também. Madame, a filha mais velha, as empregadas, Almerinda aos prantos, gelada com a visão do vampiro. Ela é que abrira o portão para a menina, providenciara o rápido resgate, puxando com toda a força a garota que estacara a tremer, totalmente travada, aos berros.

   Mas Madame agiu rápido. Era prática, era uma mulher de negócios. Não acreditava em vampiros, “Isso é bobagem de novela, de filme idiota de terror”. Indiferente aos gritos de “Liga prá polícia!”, ligou foi para a mansão do vizinho do quarteirão de cima. Dois minutos depois, dois dos vigilantes da casa do vizinho, industrial importante, chegavam correndo. Madame chamou-os ao canto, explicou logo: “Besteira essa história de vampiro. Tenho certeza que vi um homem bem assim, alto e magro, todo esfarrapado, com um cabelo de assombração. Vi umas duas vezes, andando nestas imediações. É evidente que os bandidos assaltaram a minha filha e tenho certeza que esse homem a salvou. Deve ser um louco, perigoso com certeza. Quero que vocês procurem bem. Se acharem, já sabem: surra de criar bicho! Assim o desgraçado nunca mais põe os pés por aqui.”

  Madame falou, escorregou algumas notas para as mãos grossas dos vigias. O suficiente para eles saírem loucos de raiva, prontos para exorcizar vampiro favelado. Ceará, o maior deles, foi logo encontrando Lucas, a poucos metros dali. Ceará estava possesso, chegou batendo, chutando, gritando pelo companheiro. Este assistia a tudo, divertido: estava ocupado, tentando tirar um brinquinho de ouro de um pedaço de orelha caído na calçada; encontrara logo ao sair, noite de sorte. Além disso, não precisava bater também no mendigo.

   Ceará era suficiente. Além disso, estava necessitado, coitado. Há dias que não brigava, mais de semana sem dar porrada em ninguém. Ceará ficava com os nervos à flor da pele. Em boa hora aparecia aquele mendigo providencial. Com certeza agora, depois de descarregar uns bons sopapos, ia se acalmar. Aí ficava romântico, cantava bolero dor-de-cotovelo, chegava a encher os olhos de lágrimas, homem sensível estava ali. Um bom camarada, o Ceará, se pudesse distribuir uns chutes e porradas regularmente.

Mas agora era preciso acalmar o homem, arrancá-lo de cima da presa.  Quando chegou lá, levou um susto: “Pára, Ceará, o cara é magro demais, assim tu mata ele, vai dar a maior mão-de-obra pra sumir com o corpo”. Corpo?  – pensou o vigia – vai é espalhar osso pela rua toda, é só chamar os cachorros, imaginou divertido. A caro custo conseguiu retirar o companheiro da presa; encolhido no chão, o farrapo de homem dentro dos farrapos de pano, não gritava, não fazia escândalo, só gemia.

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