MILTON MACIEL ARMOSIC
A PUNIÇÃO DE VÉRICA
Enquanto estava
absorvida, observando Hilduara que dormia, Kyna sentiu que Alana e Vérica se
aproximavam. Alana vinha contrafeita, mas Vérica vinha num entusiasmo só, falando
alto e festejando sua atitude decidida. Kyna saiu para o
lado de fora da casa e foi recebê-las na rua. Alana baixou os olhos e sacudiu a
cabeça para os lados, vencida. Vérica abriu a boca para falar, mas Kyna a
interrompeu com um veemente golpe na face. Tinha as duas mãos entrecruzadas à
altura do peito, mas a jovem sentiu-se atingida por um violento tapa no rosto,
que a fez oscilar e desequilibrar-se.
– Avó! O que
significa isso?
– Significa que
nós perdemos a paciência com você, sua irresponsável orgulhosa!
– Nós? Alana e
você? Como conseguiu me atingir assim, sem me tocar, sem mover sua mão?
– Alana, eu e a
DEUSA! Foi dela a mão que a esbofeteou, sua louca.
Vérica sentiu-se
gelar de susto. A Deusa estava assim furiosa com ela?! Mas por quê?
– Ora, você
ainda tem a petulância de pensar por quê? Eu não lhe disse que era errado
agir como você agiu, desobedecendo as ordens de nossa sacerdotisa-chefe? Ela
foi bem clara quando determinou que nós não agíssemos contra as visigodas
ainda.
– Mas eram as
assassinas. Eu lembrei na hora os dois corpos esfaqueados que vi no chão esta
madrugada e fiquei furiosa. Quando vi, já tinha saltado em cima delas.
– Sim, e por
mais que eu a lembrasse de sua ordem, mãe, ela não conseguia parar. Bateu como
uma possessa, surrou as duas mulheres ao mesmo tempo, tomou-lhe os punhais que
tentaram usar e quebrou o braço direito de cada uma. Aí vieram alguns soldados
correndo, pensaram que fosse apenas uma briga de mulheres. Os dois primeiros
que tentaram segurar Vérica também ficaram bem machucados. Aí os outros
reconheceram a arqueira da muralha e não ousaram mais se aproximar.
– Ah, e pelo que
vejo, a mocinha incentivou as visigodas a confessar.
– Sim, mãe.
Denunciou-as aos soldados, que mandaram chamar o segundo homem em autoridade, o
franco Armosic, lugar-tenente do rei e, perante ele, Vérica as fez confessar
tudo, com mil detalhes, cobrindo-as de pancadas e começando a quebrar-lhes o
outro braço. E agora Armocic e seus homens estão como loucos à procura da
terceira mulher, a quem as duas visigodas acusam de ser a chefe cruel que as
obrigou a executar as sentinelas, embora elas não o quisessem fazer, caso
contrário seriam elas as executadas pela chefe. Deram uma descrição
pormenorizada da mulher, bem como a que nós já vimos, mãe.
– Muito bem, uma
atitude digna de uma guerreira celta. Mas indigna de uma sacerdotisa celta.
– Mas Avó...
Outra vez ela
sentiu uma mão invisível, que a empurrou pelo ombro e a obrigou a cair de
joelhos.
– De agora em
diante você está proibida de me chamar de avó. Deve tratar-me exclusivamente
por Kyna, sua superior hierárquica, cujas ordens você desobedeceu. E, por causa
disso, receberá a punição regulamentar.
– Mas que
punição, av... Kyna? Eu jamais fui punida, nunca fiz nada que merecesse!
– Ah, fez, sim!
Várias vezes. Eu é que não a puni antes e esse talvez tenha sido o meu erro. Se
tivesse aparado suas asinhas enquanto elas estavam bem pequenas, talvez não
tivesse que cortá-las agora, interditando-a.
–
Interditando-me? Mas o que vem a ser isso?
Foi Alana quem
respondeu:
– Significa que
você ficará proibida de exercer suas atividades sacerdotais por um prazo que é
a própria deusa que vai definir. E que dependerá do seu comportamento durante a
interdição.
De joelhos como
estava, Vérica jogou o tronco para a frente, até enterrar a face e os braços no
chão. Ficou assim, imóvel, por um longo tempo, durante o qual ninguém mais
rompeu o silêncio. Quando finalmente ergueu o tronco e a cabeça de novo, Kyna
lhe fez sinal para que se levantasse. Quando a moça ficou em pé ante ela, a
sumo-sacerdotisa falou:
– Sacerdotisa
Vérica, por indisciplina, desobediência, infantilidade, irresponsabilidade e exibicionismo,
eu a declaro interditada até que a Deusa determine sua desinterdição.
Vérica rilhou os
dentes, sentindo um misto de fúria, revolta, dor e arrependimento, uma estranha
mistura realmente. Estava prestes e explodir em lágrimas, mas evitava-o com um
esforço sobre-humano. Alana, sua mãe, falou-lhe então:
– Você está bem
ciente que errou, sacerdotisa Vérica. Está assustada com sua punição, está
quase explodindo de dor, mas não se permite chorar por que é muito ORGULHOSA,
não quer fazê-lo em nossa frente, como se nós duas não pudéssemos ver
claramente o que se passa dentro de você! E é acima de tudo por causa desse
orgulho que a Deusa decidiu castigá-la. Ele não é compatível com a vida
sacerdotal.
Kyna retomou a
palavra:
– Vérica, sua
atitude intempestiva pode criar um sério problema: Armocic e seus soldados
procuram a terceira mulher, para dar-lhe morte imediata. Mas essa mulher não é
uma criminosa de verdade, como eu percebi ao tripé, ela era vítima de uma
escravização mental e a Deusa a absolveu de todos os seus atos. A Deusa quer
essa mulher para si e eu a tomei sob minha proteção pessoal.
– Essa mulher está
com você, sacerdotisa? Pois eu exijo, em nome do rei Meroveu, que a entregue
para mim, para que ela receba a justiça exemplar do povo franco.
Por incrível que
pudesse parecer, Armosic (FOTO), que se aproximava com seis homens armados, havia
escutado as últimas palavras de Kyna. Esta percebeu que aquela aparente
coincidência era uma evidente ação oculta da Deusa e respondeu muito tranqüila:
– Caro Armosic,
minha Deusa determina exatamente o contrário. Mas eu estou disposta a negociar
esse assunto com o rei Meroveu pessoalmente.
– Impossível,
sacerdotisa. O rei está acamado, parece que adoeceu por causa das fumaças do
incêndio.
Nessa hora, por
mais grave que fosse sua situação, Vérica não se aguentou e prorrompeu numa
enorme gargalhada, que, por causa do nervosismo que estava vivendo pela
punição, virou um verdadeiro ataque de riso. Ora, ora, Meroveu passando mal por
causa da fumaça! Só se fumaça fosse o novo nome para um par de amazonas a
cavalgá-lo por duas horas sem parar. As outras duas sacerdotisas, captando o pensamento
da jovem, também foram levadas a rir, ainda que mais discretamente.
Isso enfureceu o
chefe dos soldados, que achou que aquelas mulheres estavam debochando dele e
menosprezando sua autoridade, como se ele não fosse o substituto único do rei
quando este tivesse qualquer impedimento, ele um general franco!
– Exijo que
parem com essas risadas imediatamente e que me entreguem a criminosa que está
sob sua proteção.
Vérica, ainda
rindo, com os olhos a derramar lágrimas copiosas pelo ataque de riso, fez um
sinal como a pedir dispensa daquilo tudo e entrou na casa. Na porta cruzou com
uma criatura deslumbrantemente linda, uma mulher alta, de porte nobre, coberta
por um manto de cor preta da cabeça aos pés, que saía. Era ele, o eunuco! Como
era linda! E, como sua avó pressentira, era uma criatura essencialmente boa.
Compreendeu, no mesmo momento, por que razão Kyna a tomara sob sua proteção.
Sim era evidente que aquela era uma criatura da Deusa também, sentiu-o na hora
Quando os olhos das duas se encontraram, houve um imediato gostar espontâneo
entre elas. Hilduara acabara de ganhar mais uma protetora!
Lá fora, o chefe
franco repetiu sua ordem às sacerdotisas Kyna e Alana:
– Entreguem a
assassina ou terei que puni-las também e invadirei essa casa com meus homens.
Você podem ser sacerdotisas, mas não estão acima da lei dos francos e eu tenho
poder para condená-las à morte também, se for preciso. E desembainhou sua
espada, no que foi imitado pelos outros seis homens
– Isso é que
não, soldadinho!
Quando todos se
voltaram para a porta da casa, para ver quem tinha falado aquela frase
desrespeitosa, deram de frente com Vérica, que tinha o seu terrível arco
retesado e aquela horrorosa flecha gigante apontada exatamente para o peito de
Armosic. O chefe estremeceu, já tinha visto vezes demais o que aquela flecha
era capaz de fazer.
– Largue essa
espada já e mande seus homens fazerem o mesmo. Agora! Não sei se eu vou
resistir por muito tempo a tentação de atravessar esse seu peito de frango com
a minha flecha e fazer você parar espetado naquela parede lá em frente. Vai ser
muito divertido matar um imbecil que ousa ameaçar aquela que é a maior aliada
que vocês já tiveram até hoje, nesta guerra contra os invasores, a mulher mais nobre
e mais maravilhosa deste mundo! Vocês me dão nojo, francos. Se dependesse de
mim somente, eu os deixaria hoje mesmo entregues a sua própria sorte. E vocês
são tão incompetentes que não dou uma semana para os hunos terem entrado aqui e
estripado todos e cada um de vocês.
Armosic soltou a
espada, que caiu estrepitosamente no chão. Os demais soldados, mesmo sem
esperar a ordem do chefe, fizeram o mesmo. Todos se imaginaram sob o golpe
daquela flecha que mais parecia uma lança. Era tão grande e a força do impacto
tão forte, que não precisava nem mesmo atingir um órgão vital. Onde quer que
acertasse uma pessoa, fatalmente lhe quebraria os ossos do local e ainda sairia
do outro lado, deixando um buraco grande o suficiente para levar embora todo o
sangue que a vítima tivesse. Tinham visto acontecer exatamente isso com o chefe
huno flechado por Vérica.
Vérica sorriu,
encostou o arco na parede e empunhou a flecha com a mão esquerda. A seta, assim
manejada, parecia mesmo uma lança pequena, porém mortífera. E, como se isso não
bastasse, com a mão direita retirou da roupa, num movimento inacreditavelmente
rápido, seu punhal de sacerdotisa. Pegou-o pela ponta, não pelo cabo, em
posição de arremesso, portanto. Tanto a flecha-lança, em posição de arremesso
no braço esquerdo retesado, quanto o punhal, em posição de arremesso na mão
direita, apontavam para o mesmo peito de frango de antes. O impasse estava
declarado. Ninguém ousava se mexer. O silêncio era total. Mas uma voz muito
harmoniosa, musical mesmo, o interrompeu:
– Eu sou aquela
que os francos procuram. Meu nome é Hilduara, sou uma combatente a serviço dos
hunos e estou me entregando neste momento. Não há razão para esta discórdia
entre aliados, por causa de uma mulher inimiga. Guardem suas armas e eu os
acompanharei, soldados, até o meu destino final.
Quem falou isso
deixou os homens como que apatetados. Que mulher extraordinariamente bonita!
Armosic ficou tão impressionado que desejou ardentemente que houvesse algum
engano, que aquela criatura não fosse a mulher inimiga que procuravam. Mas logo
compreendeu que era, sim, e pensou que seu dever era prendê-la imediatamente.
Olhou para sua espada no chão e, em seguida, olhou para Vérica. Esta lhe lançou
um olhar gélido e ameaçador, que lhe provocou um calafrio na espinha. Viu a
mulher retesar inda mais o braço que empunhava a flecha e preparou-se para ser
atingido no peito. Chegou a fechar os olhos, mas a flecha não partiu da mão
daquela mulher louca.
Armosic estava
começando a suar. Sua posição estava ficando cada vez mais insustentável. Aquela
doida o estava desmoralizando na frente de seus comandados. E ele estava
passando vergonha em frente a um bando de mulheres e por causa de mulheres. A
ruiva linda maluca, a morena alta de rosto maravilhoso, de porte altivo, que
ele tinha que prender e fazer executar, uma inimiga. Ah, que encantadora
inimiga! Que ironia que só pudesse encontrar uma mulher assim no mesmo dia em
que tinha que levá-la à morte.
Enquanto isso
todo acontecia, Alana e Kyna sorriam uma para a outra, compreendendo claramente
o que se passava, com todos os mais sutis detalhes do presente e do futuro
imediato. Que honra e que glória servirem àquela Deusa, capaz de idéias e atos
tão brilhantes e tão amorosos! A Deusa punira e a própria deusa criara as
condições para a redenção de Vérica.
E as duas
olharam para Vérica com orgulho. Sim, ali estava uma verdadeira sacerdotisa da
Deusa, era só questão de um pouco mais de tempo, era ainda uma quase criança,
faltava-lhe maturidade, que vem com o tempo somente. Mas em compensação, que
guerreira! Há pouco a acusavam de orgulhosa, mas agora mãe e avó inchavam de
orgulho daquela menina prodígio. E que caráter! E que amor demonstrado pela avó
ao falar com o chefe franco. Fingira afastar-se para dentro da casa, mas na
verdade fora buscar seu arco e suas flechas, para defender aquela que a estava,
naquele exato momento, admoestando e punindo em nome da Deusa. E agora ali
estava ela, sorrindo tranqüila, olhando os sete francos bem nos olhos, sem um
pingo de medo, medo que se via facilmente nos olhos de muitos daqueles homens.
Mas não nos
olhos de Armosic. Antes ele o manifestara, mas depois o medo foi substituído
por uma expressão de ódio. Mas também isso passara completamente, desde que os
olhos do franco pousaram na figura impressionante de Hilduara. Agora ele só
tinha olhos para ela.
Então a
compreensão total dos planos da Deusa chegou a Kyna, que ficou extasiada.
Entendeu que devia resolver o impasse convidando Armosic para uma conversa
privada dentro de sua casa. E falou:
– Comandante,
não é nosso desejo desautorizá-lo e faltar-lhe com o respeito. Mas, de fato,
minha neta tem razão quando disse que o senhor também nos faltou com o
respeito, ao puxar armas contra nós, já que somos de fato as grandes aliadas
que o rei Meroveu e os senhores todos têm nesta fortaleza. Então, para resolvermos de vez este impasse,
dou a seguinte sugestão: Entremos, o senhor e eu, em nossa modesta casa
sacerdotal. Seus homens devem ficar aqui na frente, esperando-o. A sacerdotisa
Vérica (e frisou bem a palavra sacerdotisa, olhando bem nos olhos da neta) não
usará suas armas, isso eu lhe garanto. Alana ficará com ela. E a mulher que o
senhor deseja levar, entrará conosco também. Que tal? Isso lhe parece
aceitável?
Sem tirar os
olhos de Hilduara, Armosic mal conseguiu fazer que sim com a cabeça e foi
seguindo, como que magnetizado, a mulher alta de veste negra. Entraram os três
na casa. Na soleira da porta, Alana ficou explicando para Vérica o que ia
acontecer lá dentro. A outra boa notícia, que dizia respeito à moça tão
somente, decidiu que deveria ser Kyna quem a daria, ao final.
CONTINUA
CONTINUA
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