segunda-feira, 4 de março de 2013

O CERCO – 18   Novela histórica
MILTON MACIEL                                              ARMOSIC

A PUNIÇÃO DE VÉRICA

Enquanto estava absorvida, observando Hilduara que dormia, Kyna sentiu que Alana e Vérica se aproximavam. Alana vinha contrafeita, mas Vérica vinha num entusiasmo só, falando alto e festejando sua atitude decidida. Kyna saiu para o lado de fora da casa e foi recebê-las na rua. Alana baixou os olhos e sacudiu a cabeça para os lados, vencida. Vérica abriu a boca para falar, mas Kyna a interrompeu com um veemente golpe na face. Tinha as duas mãos entrecruzadas à altura do peito, mas a jovem sentiu-se atingida por um violento tapa no rosto, que a fez oscilar e desequilibrar-se.                                                                                                                      
                                                                                                                                   
– Avó! O que significa isso?                                                                        

– Significa que nós perdemos a paciência com você, sua irresponsável orgulhosa!

– Nós? Alana e você? Como conseguiu me atingir assim, sem me tocar, sem mover sua mão?

– Alana, eu e a DEUSA! Foi dela a mão que a esbofeteou, sua louca.

Vérica sentiu-se gelar de susto. A Deusa estava assim furiosa com ela?! Mas por quê?

– Ora, você ainda tem a petulância de pensar por quê? Eu não lhe disse que era errado agir como você agiu, desobedecendo as ordens de nossa sacerdotisa-chefe? Ela foi bem clara quando determinou que nós não agíssemos contra as visigodas ainda.

– Mas eram as assassinas. Eu lembrei na hora os dois corpos esfaqueados que vi no chão esta madrugada e fiquei furiosa. Quando vi, já tinha saltado em cima delas.

– Sim, e por mais que eu a lembrasse de sua ordem, mãe, ela não conseguia parar. Bateu como uma possessa, surrou as duas mulheres ao mesmo tempo, tomou-lhe os punhais que tentaram usar e quebrou o braço direito de cada uma. Aí vieram alguns soldados correndo, pensaram que fosse apenas uma briga de mulheres. Os dois primeiros que tentaram segurar Vérica também ficaram bem machucados. Aí os outros reconheceram a arqueira da muralha e não ousaram mais se aproximar.

– Ah, e pelo que vejo, a mocinha incentivou as visigodas a confessar.

– Sim, mãe. Denunciou-as aos soldados, que mandaram chamar o segundo homem em autoridade, o franco Armosic, lugar-tenente do rei e, perante ele, Vérica as fez confessar tudo, com mil detalhes, cobrindo-as de pancadas e começando a quebrar-lhes o outro braço. E agora Armocic e seus homens estão como loucos à procura da terceira mulher, a quem as duas visigodas acusam de ser a chefe cruel que as obrigou a executar as sentinelas, embora elas não o quisessem fazer, caso contrário seriam elas as executadas pela chefe. Deram uma descrição pormenorizada da mulher, bem como a que nós já vimos, mãe.

– Muito bem, uma atitude digna de uma guerreira celta. Mas indigna de uma sacerdotisa celta.

– Mas Avó...

Outra vez ela sentiu uma mão invisível, que a empurrou pelo ombro e a obrigou a cair de joelhos.

– De agora em diante você está proibida de me chamar de avó. Deve tratar-me exclusivamente por Kyna, sua superior hierárquica, cujas ordens você desobedeceu. E, por causa disso, receberá a punição regulamentar.

– Mas que punição, av... Kyna? Eu jamais fui punida, nunca fiz nada que merecesse!

– Ah, fez, sim! Várias vezes. Eu é que não a puni antes e esse talvez tenha sido o meu erro. Se tivesse aparado suas asinhas enquanto elas estavam bem pequenas, talvez não tivesse que cortá-las agora, interditando-a.

– Interditando-me? Mas o que vem a ser isso?

Foi Alana quem respondeu:

– Significa que você ficará proibida de exercer suas atividades sacerdotais por um prazo que é a própria deusa que vai definir. E que dependerá do seu comportamento durante a interdição.

De joelhos como estava, Vérica jogou o tronco para a frente, até enterrar a face e os braços no chão. Ficou assim, imóvel, por um longo tempo, durante o qual ninguém mais rompeu o silêncio. Quando finalmente ergueu o tronco e a cabeça de novo, Kyna lhe fez sinal para que se levantasse. Quando a moça ficou em pé ante ela, a sumo-sacerdotisa falou:

– Sacerdotisa Vérica, por indisciplina, desobediência, infantilidade, irresponsabilidade e exibicionismo, eu a declaro interditada até que a Deusa determine sua desinterdição.

Vérica rilhou os dentes, sentindo um misto de fúria, revolta, dor e arrependimento, uma estranha mistura realmente. Estava prestes e explodir em lágrimas, mas evitava-o com um esforço sobre-humano. Alana, sua mãe, falou-lhe então:

– Você está bem ciente que errou, sacerdotisa Vérica. Está assustada com sua punição, está quase explodindo de dor, mas não se permite chorar por que é muito ORGULHOSA, não quer fazê-lo em nossa frente, como se nós duas não pudéssemos ver claramente o que se passa dentro de você! E é acima de tudo por causa desse orgulho que a Deusa decidiu castigá-la. Ele não é compatível com a vida sacerdotal.

Kyna retomou a palavra:

– Vérica, sua atitude intempestiva pode criar um sério problema: Armocic e seus soldados procuram a terceira mulher, para dar-lhe morte imediata. Mas essa mulher não é uma criminosa de verdade, como eu percebi ao tripé, ela era vítima de uma escravização mental e a Deusa a absolveu de todos os seus atos. A Deusa quer essa mulher para si e eu a tomei sob minha proteção pessoal.

– Essa mulher está com você, sacerdotisa? Pois eu exijo, em nome do rei Meroveu, que a entregue para mim, para que ela receba a justiça exemplar do povo franco.

Por incrível que pudesse parecer, Armosic (FOTO), que se aproximava com seis homens armados, havia escutado as últimas palavras de Kyna. Esta percebeu que aquela aparente coincidência era uma evidente ação oculta da Deusa e respondeu muito tranqüila:

– Caro Armosic, minha Deusa determina exatamente o contrário. Mas eu estou disposta a negociar esse assunto com o rei Meroveu pessoalmente.

– Impossível, sacerdotisa. O rei está acamado, parece que adoeceu por causa das fumaças do incêndio.

Nessa hora, por mais grave que fosse sua situação, Vérica não se aguentou e prorrompeu numa enorme gargalhada, que, por causa do nervosismo que estava vivendo pela punição, virou um verdadeiro ataque de riso. Ora, ora, Meroveu passando mal por causa da fumaça! Só se fumaça fosse o novo nome para um par de amazonas a cavalgá-lo por duas horas sem parar. As outras duas sacerdotisas, captando o pensamento da jovem, também foram levadas a rir, ainda que mais discretamente.

Isso enfureceu o chefe dos soldados, que achou que aquelas mulheres estavam debochando dele e menosprezando sua autoridade, como se ele não fosse o substituto único do rei quando este tivesse qualquer impedimento, ele um general franco!

– Exijo que parem com essas risadas imediatamente e que me entreguem a criminosa que está sob sua proteção.

Vérica, ainda rindo, com os olhos a derramar lágrimas copiosas pelo ataque de riso, fez um sinal como a pedir dispensa daquilo tudo e entrou na casa. Na porta cruzou com uma criatura deslumbrantemente linda, uma mulher alta, de porte nobre, coberta por um manto de cor preta da cabeça aos pés, que saía. Era ele, o eunuco! Como era linda! E, como sua avó pressentira, era uma criatura essencialmente boa. Compreendeu, no mesmo momento, por que razão Kyna a tomara sob sua proteção. Sim era evidente que aquela era uma criatura da Deusa também, sentiu-o na hora Quando os olhos das duas se encontraram, houve um imediato gostar espontâneo entre elas. Hilduara acabara de ganhar mais uma protetora!

Lá fora, o chefe franco repetiu sua ordem às sacerdotisas Kyna e Alana:

– Entreguem a assassina ou terei que puni-las também e invadirei essa casa com meus homens. Você podem ser sacerdotisas, mas não estão acima da lei dos francos e eu tenho poder para condená-las à morte também, se for preciso. E desembainhou sua espada, no que foi imitado pelos outros seis homens

– Isso é que não, soldadinho!

Quando todos se voltaram para a porta da casa, para ver quem tinha falado aquela frase desrespeitosa, deram de frente com Vérica, que tinha o seu terrível arco retesado e aquela horrorosa flecha gigante apontada exatamente para o peito de Armosic. O chefe estremeceu, já tinha visto vezes demais o que aquela flecha era capaz de fazer.

– Largue essa espada já e mande seus homens fazerem o mesmo. Agora! Não sei se eu vou resistir por muito tempo a tentação de atravessar esse seu peito de frango com a minha flecha e fazer você parar espetado naquela parede lá em frente. Vai ser muito divertido matar um imbecil que ousa ameaçar aquela que é a maior aliada que vocês já tiveram até hoje, nesta guerra contra os invasores, a mulher mais nobre e mais maravilhosa deste mundo! Vocês me dão nojo, francos. Se dependesse de mim somente, eu os deixaria hoje mesmo entregues a sua própria sorte. E vocês são tão incompetentes que não dou uma semana para os hunos terem entrado aqui e estripado todos e cada um de vocês.

Armosic soltou a espada, que caiu estrepitosamente no chão. Os demais soldados, mesmo sem esperar a ordem do chefe, fizeram o mesmo. Todos se imaginaram sob o golpe daquela flecha que mais parecia uma lança. Era tão grande e a força do impacto tão forte, que não precisava nem mesmo atingir um órgão vital. Onde quer que acertasse uma pessoa, fatalmente lhe quebraria os ossos do local e ainda sairia do outro lado, deixando um buraco grande o suficiente para levar embora todo o sangue que a vítima tivesse. Tinham visto acontecer exatamente isso com o chefe huno flechado por Vérica.

Vérica sorriu, encostou o arco na parede e empunhou a flecha com a mão esquerda. A seta, assim manejada, parecia mesmo uma lança pequena, porém mortífera. E, como se isso não bastasse, com a mão direita retirou da roupa, num movimento inacreditavelmente rápido, seu punhal de sacerdotisa. Pegou-o pela ponta, não pelo cabo, em posição de arremesso, portanto. Tanto a flecha-lança, em posição de arremesso no braço esquerdo retesado, quanto o punhal, em posição de arremesso na mão direita, apontavam para o mesmo peito de frango de antes. O impasse estava declarado. Ninguém ousava se mexer. O silêncio era total. Mas uma voz muito harmoniosa, musical mesmo, o interrompeu:

– Eu sou aquela que os francos procuram. Meu nome é Hilduara, sou uma combatente a serviço dos hunos e estou me entregando neste momento. Não há razão para esta discórdia entre aliados, por causa de uma mulher inimiga. Guardem suas armas e eu os acompanharei, soldados, até o meu destino final.

Quem falou isso deixou os homens como que apatetados. Que mulher extraordinariamente bonita! Armosic ficou tão impressionado que desejou ardentemente que houvesse algum engano, que aquela criatura não fosse a mulher inimiga que procuravam. Mas logo compreendeu que era, sim, e pensou que seu dever era prendê-la imediatamente. Olhou para sua espada no chão e, em seguida, olhou para Vérica. Esta lhe lançou um olhar gélido e ameaçador, que lhe provocou um calafrio na espinha. Viu a mulher retesar inda mais o braço que empunhava a flecha e preparou-se para ser atingido no peito. Chegou a fechar os olhos, mas a flecha não partiu da mão daquela mulher louca.

Armosic estava começando a suar. Sua posição estava ficando cada vez mais insustentável. Aquela doida o estava desmoralizando na frente de seus comandados. E ele estava passando vergonha em frente a um bando de mulheres e por causa de mulheres. A ruiva linda maluca, a morena alta de rosto maravilhoso, de porte altivo, que ele tinha que prender e fazer executar, uma inimiga. Ah, que encantadora inimiga! Que ironia que só pudesse encontrar uma mulher assim no mesmo dia em que tinha que levá-la à morte.

Enquanto isso todo acontecia, Alana e Kyna sorriam uma para a outra, compreendendo claramente o que se passava, com todos os mais sutis detalhes do presente e do futuro imediato. Que honra e que glória servirem àquela Deusa, capaz de idéias e atos tão brilhantes e tão amorosos! A Deusa punira e a própria deusa criara as condições para a redenção de Vérica.

E as duas olharam para Vérica com orgulho. Sim, ali estava uma verdadeira sacerdotisa da Deusa, era só questão de um pouco mais de tempo, era ainda uma quase criança, faltava-lhe maturidade, que vem com o tempo somente. Mas em compensação, que guerreira! Há pouco a acusavam de orgulhosa, mas agora mãe e avó inchavam de orgulho daquela menina prodígio. E que caráter! E que amor demonstrado pela avó ao falar com o chefe franco. Fingira afastar-se para dentro da casa, mas na verdade fora buscar seu arco e suas flechas, para defender aquela que a estava, naquele exato momento, admoestando e punindo em nome da Deusa. E agora ali estava ela, sorrindo tranqüila, olhando os sete francos bem nos olhos, sem um pingo de medo, medo que se via facilmente nos olhos de muitos daqueles homens.

Mas não nos olhos de Armosic. Antes ele o manifestara, mas depois o medo foi substituído por uma expressão de ódio. Mas também isso passara completamente, desde que os olhos do franco pousaram na figura impressionante de Hilduara. Agora ele só tinha olhos para ela.

Então a compreensão total dos planos da Deusa chegou a Kyna, que ficou extasiada. Entendeu que devia resolver o impasse convidando Armosic para uma conversa privada dentro de sua casa. E falou:

– Comandante, não é nosso desejo desautorizá-lo e faltar-lhe com o respeito. Mas, de fato, minha neta tem razão quando disse que o senhor também nos faltou com o respeito, ao puxar armas contra nós, já que somos de fato as grandes aliadas que o rei Meroveu e os senhores todos têm nesta fortaleza.  Então, para resolvermos de vez este impasse, dou a seguinte sugestão: Entremos, o senhor e eu, em nossa modesta casa sacerdotal. Seus homens devem ficar aqui na frente, esperando-o. A sacerdotisa Vérica (e frisou bem a palavra sacerdotisa, olhando bem nos olhos da neta) não usará suas armas, isso eu lhe garanto. Alana ficará com ela. E a mulher que o senhor deseja levar, entrará conosco também. Que tal? Isso lhe parece aceitável?

Sem tirar os olhos de Hilduara, Armosic mal conseguiu fazer que sim com a cabeça e foi seguindo, como que magnetizado, a mulher alta de veste negra. Entraram os três na casa. Na soleira da porta, Alana ficou explicando para Vérica o que ia acontecer lá dentro. A outra boa notícia, que dizia respeito à moça tão somente, decidiu que deveria ser Kyna quem a daria, ao final. 

CONTINUA

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