sábado, 30 de março de 2013

EU AGUENTEI O QUE DEU! TRAUMÃO...


EU AGUENTEI O QUE DEU! TRAUMÃO...  
MILTON MACIEL

Verdade. Agüentei, suportei, segurei. Foi uma barra! Anos a fio. Décadas. Não sei se você agüentaria no meu lugar. É difícil. Muitos falam de dor de parto. Outro de dor de cálculo biliar. Também citam a dor-de-cotovelo. Ah, e tem também a dor-de-corno e a célebre dor de consciência.

Sei que são complicadas, não desdigo, respeito. Mas comparar qualquer delas com a minha dor... Ah, isso já é querer demais. Suportar o que eu suportei todo esse tempo! Não vou dizer que queria ver se você é capaz de agüentar algo assim, porque sou seu amigo e não desejo um sofrimento desses para ninguém nesta Terra, muito menos para você. Mas nem mesmo para os Calheiros e os Felicianos da vida, por aí você vê!

Caramba, é muita coisa! Qualquer um teria arriado antes. Que dirá você, que já é meio molengão. Acho que viveria se queixando, choramingando pelos cantos, talvez vociferando contra o Altíssimo, bradando sua revolta aos quatro cantos. Talvez cogitasse até pegar em armas.

E o pior, o mais angustiante, é que eu suporto isso desde criança. Se fosse uma dor recente, como aquela sua de ser despedido do emprego este ano, ainda vá. Mas que nada! Décadas, eu disse. D-é-c-a-d-a-s! Sabe lá o que é isso?

Ah, não sabe! Puxa, cara, década quer dizer dez anos. Em que escola você estudou, caramba? Ah, naquela! É, aí a coisa é ruim mesmo, dá pra entender essa sua ignorância acentuada. Mas não vem ao caso. A gente estava falando era do meu sofrimento. Eu disse agonia! De décadas.

Nunca falei isso pra ninguém! Nunca tive coragem. Hoje esses molengas, por qualquer coisinha, já se queixam de bullying. Queria ver esses fracos no meu lugar. Molequinho ali e já tendo que aguentar tudo isso. Que bullying, que nada, esse pessoal não sabe o que é dureza!

Mas afinal o que é??! Puxa, você mal começa a me ouvir falar da minha dor, da minha revolta e já me vem com toda essa impaciência, pô! Custa esperar? Mas é claro que eu vou contar. Não foi pra isso que a gente veio aqui?

Mas primeiro eu preciso ganhar coragem. É coisa grave, coisa feia. Uma coisa horrível que fizeram comigo, só porque eles eram grandes e eu era pequeno. Covardia! Na hora doía demais. Depois continuava doendo, era horrível de suportar. E eu sem coragem de contar em casa, a barra ficava ainda mais pesada.

Uma vez reuni toda a coragem e fui falar com um cara que tinha sido quase padre, um ex-seminarista. Achei que ele podia me compreender e me ajudar. Falei pra ele que o negócio doía na hora e continuava doendo depois. Mas sabe o que o cara me disse? Que ele gostava!  Que achava uma delícia. Meu Deus, mas tem gosto pra tudo neste mundo!

Eu achando aquilo horrível, sendo obrigado a agüentar porque os caras eram maiores e mais velhos, não podia me queixar, ninguém com quem desabafar. E o raio do cara me dizendo que gostava, que era muito bom! Arre!

Bom, agora tomei coragem de vez. Vou abrir o jogo. Mas tenha paciência comigo se eu começar a chorar, talvez eu não consiga me segurar. É dureza! Só queria ver você no meu lugar. Sim, porque ter a sua pessoa desrespeitada, violentada naquilo que tem de mais recôndito e vulnerável, ah, não é pra qualquer um, não.  Você não agüentava, tenho certeza. Aposto que hoje estaria muito pior do que eu, psicologicamente.

Mas vamos lá, já que comecei desta vez vou até o fim. Sabe, eu era um menininho puro, inocente, sem maldade ou malícia. O cara, o principal nesse meu problema todo, era um adulto, tinha mais de 30 anos. Covardia! E era professor. Meu professor. Professor de Ciências.

Bem você já está imaginando, não é? Infelizmente isso não é uma coisa incomum, um adulto abusar de uma criança e lhe impor a sua vontade, por mais que a criança não queria, se revolte, resista, diga que não gosta, que é ruim, que magoa. Ele não queria saber! Vinha pra cima de mim e me impunha aquela posição por baixo. É. Eu achava aquela minha posição humilhante. Mas eu tinha que obedecer, tinha medo se não fizesse. As conseqüências seriam piores.

Não, eu não podia dizer não, reagir. Eu era só um garotinho de 11 anos, será que você não compreende? E não queria aquilo, não aceitava, não era como o ex-seminarista, o cara-de-pau, que me disse que gostava, que achava muito legal.

Bom, você acha que estou enrolando, demorando demais pra chegar no assunto direito. Mas ponha-se no meu lugar. É horrível confessar isso. Eu sei que você vai pensar que era culpa minha, que eu podia resistir, me queixar, fazer alguma coisa. Mas não dava. Não dava mesmo.

Bem, mas enfim, seja o que Deus quiser. Lá vai. Pela primeira vez eu vou abrir o meu coração, vou abrir o meu grande segredo. Vou contar como aquele adulto se aproveitava da sua posição para me forçar a fazer as suas vontades. Igualzinho ao ex-seminarista, ele também dizia que era bom, que depois que eu me acostumasse eu ia gostar como ele, que eu é que era um bobo de não gostar.

Ah, sim , o que é que ele fazia afinal. Bem, não tá fácil, mas eu vou tentar. Dureza! Ufa... Deixa eu respirar um pouco, dá um tempo. To suando, cara. Tá brabo. Bom, vamos lá. Vamos pra coisa da posição. O cara, por cima. Eu, lógico, tava por baixo. Tudo a favor dele, não é? Ele grande adulto, por cima. Eu pequeno, criança, por baixo. E aí ele vinha e me obrigava a abrir... Espera aí, em vou contar; Mas, puxa, é um baita trauma, tenha paciência.

Bom, vou contar logo qual é o meu grande trauma, o que eu nunca mais consegui esquecer, o que fez de mim um fracassado e um revoltado. O maior de todos os traumas. Traumão! Pesadíssimo! Tonelada!...  

Tá. Tá. Eu to enrolando mesmo. Dá um tempo, tá quase saindo, Bom. Vamos ver se agora vai. Vou contar o terror maior. O maior de todos. Morzão. Pesadão pacas! Tonelada!...

Tá, tá, paro de enrolar, aí vai! Então: o cara era meu professor de Ciências. Ele vinha pra cima de mim porque podia, ele era o adulto, tinha autoridade. E os outros adultos davam a maior força pra ele. Não ia adiantar eu me queixar, eu denunciar, não querer fazer.  Alem do que eu morria de medo dele, não é?

Pois bem, ele vinha pra cima de mim e me obrigava a abrir. Assim, na maior , abrir na frente dos outros mesmo. Aí, que remédio eu tinha que abrir e agüentar. Era horrível, eu detestava. Ah, abrir o que? Ora, o que poderia ser? Você não se toca? O cara era o professor de Ciências, eu não disse?

Bem ele me obrigava a abrir o maldito LIVRO DE CIÊNCIAS! Era um suplício, eu detestava. Toda vez eu tinha que abrir aquele inferno. E aí ele abusava de mim. Ah, ele abusava, sim! O covarde me mandava ler na frente de todo mundo. A aí, como se não bastasse, me tomava a lição da aula anterior. E ai de mim se não soubesse tudo. Sabe como é, uma questão de posição. Ele tava por cima, era o bonzão,  o professor. Eu tava por baixo, era só um  aluno meio tapado, que não conseguia decorar direito aquelas coisas horríveis. E aí eu sofria, cara. Como eu sofria! O coisa doía demais!

Como é que não ia doer, se põe no meu lugar! Ele exigindo que eu soubesse, eu sem saber, ele me fazendo passar vergonha na frente dos outros. Me traumatizando...

Como frescura? Você acha pouco? Porque não foi com você. Mas também não é esse o traumão, o grandão. O pesadão... Tonelada...

Tá. Tá, não precisa perder a paciência assim! Qual é o meu traumão então? Bem foi assim: Foi num dia daqueles em que ele estava abusando de mim na frente de toda a classe, me fazendo decorar a lição de Ciências. Então ele me veio com a pior, a mais horrível coisa de todas. Nunca vou poder esquecer, mas nem que eu viva mil anos. Sabe o que ele exigiu que eu respondesse? Pois é, agora você vai ficar horrorizado também. E vai me dar razão. Desculpe, mas eu não consigo pensar nisso sem ter lágrimas nos olhos.

Então ele exigiu, na frente de todo mundo, o abusador sádico, que eu respondesse a esta questão:

"DESCREVA O APARELHO EXCRETOR DOS CELENTERADOS"

É ou não é uma coisa horripilante, um abuso de posição, de autoridade, de tudo? Aquele enorme homem de mais de trinta anos, se aproveitando de sua aposição por cima, me exigindo que eu descrevesse o aparelho excretor dos celenterados. Traumão, Pô! Do pior, tonelada!... Você, por exemplo, não agüentava. Tenho certeza, você arriava na hora. Mas eu agüentei. Firme ali, por mais que estivesse doendo. E fui tentar responder. Aí me lembrei do meu cachorro e lasquei o que me veio na cabeça:

Que o celenterado come pra caramba, chega a passar mal de tão abusado que o mané é na hora da mesa.  Aí ele passa mal depois, é claro. Bom eu não sabia o que era um celenterado. Que nem você: aposto que você não sabe até hoje, você é meio ignorantão mesmo!

Bom, mas eu tava suando em bicas, meu camarada. Todo mundo ali rindo da minha cara, o abusador me ameaçando com sala de direção, mais um zero, mandar chamar os pais, sabe como é. Guerra de nervos, guerra suja. Ah, como eu sofria. Traumão, pô! Tonelada... Pesadão demais...

Bom, eu tava dizendo que imaginei o que o gordão do meu cachorro fazia. Ele comia tudo o que achava pela frente, filava tudo o que o pessoal tinha na mesa, aí detonava a ração dele e saía pra virar latas de lixo e o resto das quentinhas dos caras da construção do lado. Eu não sei bem por que, mas pensei que, com aquele nome todo, o tal celenterado devia ser assim um bichão que nem um cachorro, ou até maior.

E aí lasquei: o tal do celenterado come pra caramba, passa mal, vomita, tem cólica. Aí dá uma bruta dor de barriga nele e ele se borra todo. Maior diarréia, churrio duro de segurar, dá vexame. Pelo menos o Toby, o meu cachorro gordão, faz isso. Já cansou de lavar a portaria do prédio com as porcarias dele, que saem pela boca ou saem pelo rabo. Bem, o celenterado não tinha por que ser muito diferente. E isso é o mesmo que acontece com as pessoas, também. O meu pai, por exemplo, que era gordão também, era meio que nem o Toby. A única diferença era que ele peidava muito e o Toby, não.

Mas o cara só me olhando com ar de reprovação. Pensei: tô lascado, esse filho-da-puta vai me dar zero de novo. E ele só na maciota, me olhando com desdém, com cara de enfado. Aí, quando eu terminei, o abusador só disse uma coisa;

Os celenterados não tem aparelho excretor!

A molecada começou a rir, a zoar com  a minha cara. E eu boiando: o que será que o desgraçado do abusador queria dizer com isso? Mas aí o João Paulo, aquele puxa-saco baba-ovo, nerd cedeefe do cacete, pra agradar o maldito do abusador, disse, apontando pra mim e rindo na minha cara:

– Há, Há! Se ferrou, seu burraldo. O celenterado não tem aparelho excretor: Ele só tem boca, mas não tem ânus.

Aí eu perdi as estribeiras e gritei com ele:

– Seu viadinho do cacete! Onde já se viu bicho que só tem boca mas não tem cu! Burraldo é você!

Mas aí, é claro que o maldito saiu em defesa do queridinho dele. Me levaram pra sala da diretora, que me passou um sabão em regra, disse que eu ia ser castigado por ter falado palavrão em sala de aula. Eu neguei que tivesse falado palavrão. Ela insistiu: Falou sim!
Eu rebati: Falei não!  Ela continupou: Falou sim: aquela coisa que você disse que o bicho tem, mas esse não tem, é palavrão. Aí eu fiquei furioso:

– Mas como? Cu não é palavrão, é o nome mais curtinho que existe, é palavrinha!

Bom, aí não teve jeito da velha aceitar minha lógica, a burralda querendo por que  querendo que aquela palavrinha fosse palavrão. E veio com essa que aquilo era “nome feio”. Eu reagi de novo, detesto mentira e injustiça:

– Desde quando isso é nome feio? Nome feio é o seu: Hermenengarda Felisbina!  E tem mais, se cu é feio, a cara da senhora é dez vezes mais feia que um. Ele, pelo menos, não é gordão.  

Ah, eu estava com a macaca!

Bom, foi aí que o traumão começou: Fui expulso da escola, minha velha me encheu de chinelada, o velho me botou pra trabalhar com o carroceiro da rua e eu não voltei mais pra escola. E, pra maior dos pecados, todos os dias ele me obrigava a recitar a lição do tal aparelho excretor dos celenterados. Que são uns bichos tão desgraçados que têm boca, mas não têm cu!

Era um tal de dipoblásticos acelmados: pólipos, hidras, caravelas, medusas e corais. Um saco! Peguei trauma. Traumão. Eu odeio celenterados! Eu odeio Ciências, eu odeio o professor de Ciências!

Introjetei, cara. Nem meu analista conseguiu extrair de mim essa história do aparelho excretor dos celenterados. Você é o primeiro. Puxa, parabéns, você devia ser analista, isso sim.

Mas agora pensa bem aqui comigo: porque é que uma criança de onze anos tinha que saber aparelho excretor de celenterado? Com tanta coisa mais importante para nos ensinarem na vida – como sentar direito, com respirar direito, o que não comer e como comer, como se relacionar com as pessoas, como aprender a respeitar as meninas, sabem as coisas básicas da vida. Isso os idiotas não ensinam nunca, as pessoas têm que aprender na marra, na rua, na prática da vida.

Mas aí eles socam as crianças nas escolas, para os pais poderem trabalhar e farrear quando dá e ficam empurrando essas patacoadas que você nunca vai usar na vida, pra terem com que ocupar o teu tempo na marra. O engomadinho de Ciências, o abusador, era um desses. O carecão de Matemática enfiava aquele porre de raiz cúbica e polinômio do segundo grau e achava que  a gente tinha que curtir. Ou levar zero. Como se todo mundo fosse que nem aquele ex-seminarista maluco, que gostava de Ciências!

Pois é, essa é a grande vergonha da minha vida, cara. Nunca tive coragem de contar o quanto eu sou traumatizado por ter tido que aprender sobre o inexistente aparelho excretor dos celenterados. Traumão! Pô, tonelada!...

Bem, agora você já sabe também. Acha que isso vai  mudar toda a sua vida para melhor? Vai ver,  sua vida nunca mais será a mesma, depois de você saber que celenterado não faz cocô!


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