domingo, 31 de março de 2013


ONOFRE E OS FRUTOS DO MAR   
MILTON  MACIEL  

- Cumpadre Onofre! Que surpresa, que faz vancê batendo aflito aqui a esta hora?

- Pois nem le conto, cumpadre Gaudêncio. É cosa do otro mundo de mala suerte... Vim correndo porque preciso usá seu banhero. Cum licensa, cumpadre!

E Onofre correu para o banheiro do quintal, já com as mãos nas bombachas. Ficou por lá uns bons 10 minutos e depois reapareceu, com a cara mais desenxabida do mundo.

- Mas então, índio velho! Mas me diga, que cosa tan mala que lhe assucedeu?

- Bueno, tu lembra do Fritz, aquele do posto de gasolina, o Posto Ipiranga aqui de Santana do Livramento? É aquele alemão que tem um sobrenome que é uma barbaridade que ninguém consegue falá, mas nem dando câimbra na língua... Bueno, o nome não importa. Mas tu sabe, o alemão é macanudo, é gente boa demás. Vai daí que ele me convidô pra um almoço na casa dele hoje. E eu fui, é claro.

- E ele caprichô no churrasco, cumpadre?

- Pois aí é que tá o problema, tchê. Dexa le contá dereito. Bueno, pois eu fui na casa do alemão e lá tava toda a parentada dele pro almoço. Aí ele me apresentô a prenda dele, uma alemã gorda e alta, branca que nem papel, com os olho azul que nem bolita. Flor de criatura também. E com um nome também brabo de repeti. Eu entendi algo como Ingue Borges, só que acho ela mui branca prá sê parente dos Borges lá do Alegrete, que é tudo cor de bugre.

- E o churrasco, cumpadre? Como é que estava a costela do alemão? Tinha chicho?

- Mas bah, cumpadre Gaudêncio! Pois era isso mesmo que eu queria sabê. Porque eu cheguei passado da uma da tarde e nada de cherinho bom vindo do fogo de chão. Até pensei: Será que esse vivente é daqueles índio que usa a tal de churrasquera, essa cosa más esquisita, de assá carne dentro de casa?

- Bueno, e entonces, que se passô?

- O que se passô é que eu já tava com uma fome de antonte e nada de sentí o cheirinho da carne na brasa. Fui ficando assustado: Que hora que vão serví essa carne, se ainda nemcomeçaram a assá ela? Calculei que ia ficá varado de fome até umas quatro da tarde. Foi quando o Fritz me trouxe uma travessa grande, com uns negócio esquisito dentro, uns pedacito esbranquiçado meio enrolado que eu nunca tinha visto em toda a minha vida. E aí o Fritz falô, naquela fala pesada, meio engrolada que ele tem. Foi mais o menos um cosa assim, vô arremedá a fala dele:

- Ah, agorra Onofrre vai comerrr os melhorr frruto do marr que xá comeu no fida! Olha só essa cumarron pranquinhas, sente só a cheirrinho dela.

- Bueno, cumpadre, eu não sabia se aquilo era de planta o era de bicho. Se era bicho, não sei porque o nome. Eu olhei bem e não vi nenhum deles que tivesse o cú marrom. E quanto ao tal cheirinho... Bueno, não sei bem porque, mas na hora me veio na lembrança a Isaltina, uma chinoca que eu derrubava nos mato quando eu era más novo.

- E o churrasco, cumpadre? Fala logo!

- Bueno, não teve churrasco nenhum!

- Como não teve churrasco, Onofre? Pois não era um almoço? Ora não pode tê almoço sem carne, sem churrasco. Isso nunca que existiu no mundo.

- Pois existe nas casa dos alemão. Olha, não deu nem meia hora e a dona Ingue e as parenta dela botaram na mesa um monte de cosa que elas tava cozinhando fazia tempo. E também o tal bichinho de cú marrom que o Fritz tinha me mostrado e que me lembrô a Isaltina. Só que o bicho agora era de otra cor, alaranjado, mas a Dona Ingue me jurô que era o mesmo, sim senhor.

- E o cumpadre comeu?

- Bueno, eu não podia desfeiteá o Fritz, que é mui buena pessoa, tu sabe. E a mulher dele, o que tem de gorda e alta tem de divertida. Dava risada e botava mais dos bichinho no meu prato. E botava outras cosa também, tudo esquisito. Tinha pedaço de pexe, que isso eu reconheci. E tinha más um monte de cosa estranha, meio pequena, umas argola branca de carne, uns bicho pequeno meio arroxeado, que eu acho que era um tipo de taturana o então larva de vespa.

- A la pucha, cumpadre! Que situação. E que gosto que tinha essa cosa esquisita?

- Bueno, até que dava pra comê. O tal bicho esbranquiçado que virô avermelhado até que não era ruim, embora nunca que tivesse o cú marrom. Eu até podia gostá, mas é que eu tava comendo aquilo como tira-gosto, enquanto esperava pelo churrasco que, àquelas altura, eu ainda não sabia que não ia ser servido.

- E as tal das fruta do mar, cumpadre, era bom?

- Pois nunca que serviram, tchê! Alemão é bicho esquisito mesmo. Pois ele falô das tal de fruta do mar o tempo intero, mas não serviram foi nada. E eu ali enrolando, comendo os bichinho esquisito, mas  morrendo de curiosidade de vê essas fruta, nunca que eu soube que dava fruta no mar. Mas, como eu nunca vi esse tal de mar de perto, mesmo...

- Ah, pois diz que o mar é uma lagoa mui grande, falam até que é maior que a Lagoa dos Patos, tu acredita? E diz que a água é uma salmora só, salmora da braba, deve de tê caído más de uma carreta de sal na lagoa. Tu acredita nisso também?

- Eu não! Maior que a Lagoa dos Patos não hay neste mundo loco em lugar nenhum, nem nas estranja. Mas quanto às tal das fruta sabe como é que pode de sê? Bueno, nas lagoa e nos rio mais largo tem ilha, não é mesmo? Então no tal de mar deve de tá assim de ilha também. E aí os home planta as fruta nas ilha e daí é que vem o nome esquisito de fruta do mar. O Fritz fala frrrutos do Mar, mas ele troca as palavra macho por fêmea a toda hora, então se ele diz frrruto,  é porque o certo é fruta mesmo,

- Só que eles não serviro as fruta.

- Pois não serviro. Só deram de comê aquelas coisa pequena esquisita, de um monte de feitio e misturada com pexe. Fruta do mar que é bom, nenhuma, churrasco que é o melhor que existe numa mesa, nem prá remédio.

- E aí cumpadre?

- Bueno, aí que eu tava com uma fome brabíssima e danei a cumê daquelas coisa miúda esquisita mesmo. Só me embretei foi cum as lasca de pexe, coisa más ruim não hay, isso eu não comia!

- Não hay! Pexe pra mim só uma vez na vida, otra na morte. E assim mesmo se for um jundiá na brasa, um naquito no más, pra botá na boca junto com a costela.

- Bah, cumpadre, pra mim nem jundiá, nem traíra, nem nada que nada nas água. Mas, como ia le dizendo, a fome era tanta que eu só dexava de lado os pedaço de pexe. E fui comendo, comendo, comendo...

- E entonces?

- Bueno, entoces assucedeu-se o pior. Eu, que nunca tinha comido o bichinho da cosa marron e nem as outra cosa esquisita que tava junto, comecei a passá mal.

- Ué, mas como, cumpadre?

- Ah, mas nem le digo. Fui ficando meio mareado e o pior que não era das canha que tinha tomado, que não foi más do que umas dez, isso não é bebida pra mareá um home!

- Não é, só dez não é mesmo! Mas entonces...

- Entonces começô a me dá um engulho no bucho, a corrê que nem uns rio por dentro das tripa e isso o cumpadre já sabe o que é: deu uma rebordosa nos intestino e eu sentí que ia soltá tudo era ali mesmo, me conheço, Me dá isso sempre que como cosa esquisita, que não tô acostumado. É caí na pança e cosa de uma hora despos já me dá a rebordosa nas tripa. Aí eu senti o perigo e fui saindo de mansinho, só me despedi do Fritz, que não tinha jeito de querê me dexá saí. Foi um caro custo, fica que fica, a senhorr non comeu quace nada, até parrece que non costô do comida do minha Ingue Borges.

– Barbaridade, Onofre do céu! Que enrascada...

–  Das braba, cumpadre, das braba. O alemão segurando meu braço, eu tendo que explicá que tinha gostado de tudo, mentindo com a maior cara deslavada. E sentindo já a dor de barriga, era cosa de minutos e ia corrê o maior churrio. Bueno, no fim consegui saí, fui andando despacito primeiro, depos às carrera e por fim correndo que nem cusco assustado. E foi assim que vim pedi a ajuda do seu banhero, cumpadre!

– E, pra priorá, cumpadre, nada de fruta do mar...

– Pois é, cumpadre Gaudêncio, todo esse aperreio e nada das fruta do mar! Mala suerte!...
A INCRÍVEL AMIZADE
DE UM CÃO E UM GOLFINHO
(Vídeo)

Todos os dias, às 6 da amanhã, este cão labrador acorda e corre para o porto de sua pequena cidade irlandesa. Então entra no mar e vai nadar com seu amigo golfinho. TODOS OS DIAS!

E brincam juntos até que o primeiro barco pesqueiro sai e o golfinho vai atrás dele, para ganhar seu desjejum (sobras de peixes atiradas à a água.

Então o cão volta nadando tranquilamente para terra, geralmente sendo esperado por seu dono.
Veja no vídeo abaixo.


sábado, 30 de março de 2013

COELHINHO DA PÁSCOA EM BRASÍLIA

COELHINHO DA PÁSCOA EM BRASÍLIA   
Por: BRASÍLIA  NOVA

Coelhinho da páscoa, que trazes pra mim?
Feliciano, Calheiros, vergonha assim.
Feliciano, Calheiros, vergonha assim!

Coelhinho da páscoa, o que é que eles têm?
Têm rolo, tramóia e processo também.
Têm rolo, tramóia e processo também!

Coelhinho da páscoa, isso não tem fim?
Senador, depufede, quase tudo é assim.
Senador, depufede, quase tudo é assim!

Coelhinho da páscoa, votou neles quem?
Aqueles que são como eles também.
Aqueles que são como eles também!

Coelhinho da páscoa, não livra ninguém?
Não, na turma deles, tudo é o mesmo trem.
Não, na turma deles, tudo é o mesmo trem!

Coelhinho da páscoa, o que é esse aftim?
É de um diabo gordo, que se diz querubim.
É de um diabo gordo, que se diz querubim!

Coelhinho da páscoa, de onde eles vêm?
Do inferno, São Paulo e Alagoas também.
Do inferno, São Paulo e Alagoas também.

EU AGUENTEI O QUE DEU! TRAUMÃO...


EU AGUENTEI O QUE DEU! TRAUMÃO...  
MILTON MACIEL

Verdade. Agüentei, suportei, segurei. Foi uma barra! Anos a fio. Décadas. Não sei se você agüentaria no meu lugar. É difícil. Muitos falam de dor de parto. Outro de dor de cálculo biliar. Também citam a dor-de-cotovelo. Ah, e tem também a dor-de-corno e a célebre dor de consciência.

Sei que são complicadas, não desdigo, respeito. Mas comparar qualquer delas com a minha dor... Ah, isso já é querer demais. Suportar o que eu suportei todo esse tempo! Não vou dizer que queria ver se você é capaz de agüentar algo assim, porque sou seu amigo e não desejo um sofrimento desses para ninguém nesta Terra, muito menos para você. Mas nem mesmo para os Calheiros e os Felicianos da vida, por aí você vê!

Caramba, é muita coisa! Qualquer um teria arriado antes. Que dirá você, que já é meio molengão. Acho que viveria se queixando, choramingando pelos cantos, talvez vociferando contra o Altíssimo, bradando sua revolta aos quatro cantos. Talvez cogitasse até pegar em armas.

E o pior, o mais angustiante, é que eu suporto isso desde criança. Se fosse uma dor recente, como aquela sua de ser despedido do emprego este ano, ainda vá. Mas que nada! Décadas, eu disse. D-é-c-a-d-a-s! Sabe lá o que é isso?

Ah, não sabe! Puxa, cara, década quer dizer dez anos. Em que escola você estudou, caramba? Ah, naquela! É, aí a coisa é ruim mesmo, dá pra entender essa sua ignorância acentuada. Mas não vem ao caso. A gente estava falando era do meu sofrimento. Eu disse agonia! De décadas.

Nunca falei isso pra ninguém! Nunca tive coragem. Hoje esses molengas, por qualquer coisinha, já se queixam de bullying. Queria ver esses fracos no meu lugar. Molequinho ali e já tendo que aguentar tudo isso. Que bullying, que nada, esse pessoal não sabe o que é dureza!

Mas afinal o que é??! Puxa, você mal começa a me ouvir falar da minha dor, da minha revolta e já me vem com toda essa impaciência, pô! Custa esperar? Mas é claro que eu vou contar. Não foi pra isso que a gente veio aqui?

Mas primeiro eu preciso ganhar coragem. É coisa grave, coisa feia. Uma coisa horrível que fizeram comigo, só porque eles eram grandes e eu era pequeno. Covardia! Na hora doía demais. Depois continuava doendo, era horrível de suportar. E eu sem coragem de contar em casa, a barra ficava ainda mais pesada.

Uma vez reuni toda a coragem e fui falar com um cara que tinha sido quase padre, um ex-seminarista. Achei que ele podia me compreender e me ajudar. Falei pra ele que o negócio doía na hora e continuava doendo depois. Mas sabe o que o cara me disse? Que ele gostava!  Que achava uma delícia. Meu Deus, mas tem gosto pra tudo neste mundo!

Eu achando aquilo horrível, sendo obrigado a agüentar porque os caras eram maiores e mais velhos, não podia me queixar, ninguém com quem desabafar. E o raio do cara me dizendo que gostava, que era muito bom! Arre!

Bom, agora tomei coragem de vez. Vou abrir o jogo. Mas tenha paciência comigo se eu começar a chorar, talvez eu não consiga me segurar. É dureza! Só queria ver você no meu lugar. Sim, porque ter a sua pessoa desrespeitada, violentada naquilo que tem de mais recôndito e vulnerável, ah, não é pra qualquer um, não.  Você não agüentava, tenho certeza. Aposto que hoje estaria muito pior do que eu, psicologicamente.

Mas vamos lá, já que comecei desta vez vou até o fim. Sabe, eu era um menininho puro, inocente, sem maldade ou malícia. O cara, o principal nesse meu problema todo, era um adulto, tinha mais de 30 anos. Covardia! E era professor. Meu professor. Professor de Ciências.

Bem você já está imaginando, não é? Infelizmente isso não é uma coisa incomum, um adulto abusar de uma criança e lhe impor a sua vontade, por mais que a criança não queria, se revolte, resista, diga que não gosta, que é ruim, que magoa. Ele não queria saber! Vinha pra cima de mim e me impunha aquela posição por baixo. É. Eu achava aquela minha posição humilhante. Mas eu tinha que obedecer, tinha medo se não fizesse. As conseqüências seriam piores.

Não, eu não podia dizer não, reagir. Eu era só um garotinho de 11 anos, será que você não compreende? E não queria aquilo, não aceitava, não era como o ex-seminarista, o cara-de-pau, que me disse que gostava, que achava muito legal.

Bom, você acha que estou enrolando, demorando demais pra chegar no assunto direito. Mas ponha-se no meu lugar. É horrível confessar isso. Eu sei que você vai pensar que era culpa minha, que eu podia resistir, me queixar, fazer alguma coisa. Mas não dava. Não dava mesmo.

Bem, mas enfim, seja o que Deus quiser. Lá vai. Pela primeira vez eu vou abrir o meu coração, vou abrir o meu grande segredo. Vou contar como aquele adulto se aproveitava da sua posição para me forçar a fazer as suas vontades. Igualzinho ao ex-seminarista, ele também dizia que era bom, que depois que eu me acostumasse eu ia gostar como ele, que eu é que era um bobo de não gostar.

Ah, sim , o que é que ele fazia afinal. Bem, não tá fácil, mas eu vou tentar. Dureza! Ufa... Deixa eu respirar um pouco, dá um tempo. To suando, cara. Tá brabo. Bom, vamos lá. Vamos pra coisa da posição. O cara, por cima. Eu, lógico, tava por baixo. Tudo a favor dele, não é? Ele grande adulto, por cima. Eu pequeno, criança, por baixo. E aí ele vinha e me obrigava a abrir... Espera aí, em vou contar; Mas, puxa, é um baita trauma, tenha paciência.

Bom, vou contar logo qual é o meu grande trauma, o que eu nunca mais consegui esquecer, o que fez de mim um fracassado e um revoltado. O maior de todos os traumas. Traumão! Pesadíssimo! Tonelada!...  

Tá. Tá. Eu to enrolando mesmo. Dá um tempo, tá quase saindo, Bom. Vamos ver se agora vai. Vou contar o terror maior. O maior de todos. Morzão. Pesadão pacas! Tonelada!...

Tá, tá, paro de enrolar, aí vai! Então: o cara era meu professor de Ciências. Ele vinha pra cima de mim porque podia, ele era o adulto, tinha autoridade. E os outros adultos davam a maior força pra ele. Não ia adiantar eu me queixar, eu denunciar, não querer fazer.  Alem do que eu morria de medo dele, não é?

Pois bem, ele vinha pra cima de mim e me obrigava a abrir. Assim, na maior , abrir na frente dos outros mesmo. Aí, que remédio eu tinha que abrir e agüentar. Era horrível, eu detestava. Ah, abrir o que? Ora, o que poderia ser? Você não se toca? O cara era o professor de Ciências, eu não disse?

Bem ele me obrigava a abrir o maldito LIVRO DE CIÊNCIAS! Era um suplício, eu detestava. Toda vez eu tinha que abrir aquele inferno. E aí ele abusava de mim. Ah, ele abusava, sim! O covarde me mandava ler na frente de todo mundo. A aí, como se não bastasse, me tomava a lição da aula anterior. E ai de mim se não soubesse tudo. Sabe como é, uma questão de posição. Ele tava por cima, era o bonzão,  o professor. Eu tava por baixo, era só um  aluno meio tapado, que não conseguia decorar direito aquelas coisas horríveis. E aí eu sofria, cara. Como eu sofria! O coisa doía demais!

Como é que não ia doer, se põe no meu lugar! Ele exigindo que eu soubesse, eu sem saber, ele me fazendo passar vergonha na frente dos outros. Me traumatizando...

Como frescura? Você acha pouco? Porque não foi com você. Mas também não é esse o traumão, o grandão. O pesadão... Tonelada...

Tá. Tá, não precisa perder a paciência assim! Qual é o meu traumão então? Bem foi assim: Foi num dia daqueles em que ele estava abusando de mim na frente de toda a classe, me fazendo decorar a lição de Ciências. Então ele me veio com a pior, a mais horrível coisa de todas. Nunca vou poder esquecer, mas nem que eu viva mil anos. Sabe o que ele exigiu que eu respondesse? Pois é, agora você vai ficar horrorizado também. E vai me dar razão. Desculpe, mas eu não consigo pensar nisso sem ter lágrimas nos olhos.

Então ele exigiu, na frente de todo mundo, o abusador sádico, que eu respondesse a esta questão:

"DESCREVA O APARELHO EXCRETOR DOS CELENTERADOS"

É ou não é uma coisa horripilante, um abuso de posição, de autoridade, de tudo? Aquele enorme homem de mais de trinta anos, se aproveitando de sua aposição por cima, me exigindo que eu descrevesse o aparelho excretor dos celenterados. Traumão, Pô! Do pior, tonelada!... Você, por exemplo, não agüentava. Tenho certeza, você arriava na hora. Mas eu agüentei. Firme ali, por mais que estivesse doendo. E fui tentar responder. Aí me lembrei do meu cachorro e lasquei o que me veio na cabeça:

Que o celenterado come pra caramba, chega a passar mal de tão abusado que o mané é na hora da mesa.  Aí ele passa mal depois, é claro. Bom eu não sabia o que era um celenterado. Que nem você: aposto que você não sabe até hoje, você é meio ignorantão mesmo!

Bom, mas eu tava suando em bicas, meu camarada. Todo mundo ali rindo da minha cara, o abusador me ameaçando com sala de direção, mais um zero, mandar chamar os pais, sabe como é. Guerra de nervos, guerra suja. Ah, como eu sofria. Traumão, pô! Tonelada... Pesadão demais...

Bom, eu tava dizendo que imaginei o que o gordão do meu cachorro fazia. Ele comia tudo o que achava pela frente, filava tudo o que o pessoal tinha na mesa, aí detonava a ração dele e saía pra virar latas de lixo e o resto das quentinhas dos caras da construção do lado. Eu não sei bem por que, mas pensei que, com aquele nome todo, o tal celenterado devia ser assim um bichão que nem um cachorro, ou até maior.

E aí lasquei: o tal do celenterado come pra caramba, passa mal, vomita, tem cólica. Aí dá uma bruta dor de barriga nele e ele se borra todo. Maior diarréia, churrio duro de segurar, dá vexame. Pelo menos o Toby, o meu cachorro gordão, faz isso. Já cansou de lavar a portaria do prédio com as porcarias dele, que saem pela boca ou saem pelo rabo. Bem, o celenterado não tinha por que ser muito diferente. E isso é o mesmo que acontece com as pessoas, também. O meu pai, por exemplo, que era gordão também, era meio que nem o Toby. A única diferença era que ele peidava muito e o Toby, não.

Mas o cara só me olhando com ar de reprovação. Pensei: tô lascado, esse filho-da-puta vai me dar zero de novo. E ele só na maciota, me olhando com desdém, com cara de enfado. Aí, quando eu terminei, o abusador só disse uma coisa;

Os celenterados não tem aparelho excretor!

A molecada começou a rir, a zoar com  a minha cara. E eu boiando: o que será que o desgraçado do abusador queria dizer com isso? Mas aí o João Paulo, aquele puxa-saco baba-ovo, nerd cedeefe do cacete, pra agradar o maldito do abusador, disse, apontando pra mim e rindo na minha cara:

– Há, Há! Se ferrou, seu burraldo. O celenterado não tem aparelho excretor: Ele só tem boca, mas não tem ânus.

Aí eu perdi as estribeiras e gritei com ele:

– Seu viadinho do cacete! Onde já se viu bicho que só tem boca mas não tem cu! Burraldo é você!

Mas aí, é claro que o maldito saiu em defesa do queridinho dele. Me levaram pra sala da diretora, que me passou um sabão em regra, disse que eu ia ser castigado por ter falado palavrão em sala de aula. Eu neguei que tivesse falado palavrão. Ela insistiu: Falou sim!
Eu rebati: Falei não!  Ela continupou: Falou sim: aquela coisa que você disse que o bicho tem, mas esse não tem, é palavrão. Aí eu fiquei furioso:

– Mas como? Cu não é palavrão, é o nome mais curtinho que existe, é palavrinha!

Bom, aí não teve jeito da velha aceitar minha lógica, a burralda querendo por que  querendo que aquela palavrinha fosse palavrão. E veio com essa que aquilo era “nome feio”. Eu reagi de novo, detesto mentira e injustiça:

– Desde quando isso é nome feio? Nome feio é o seu: Hermenengarda Felisbina!  E tem mais, se cu é feio, a cara da senhora é dez vezes mais feia que um. Ele, pelo menos, não é gordão.  

Ah, eu estava com a macaca!

Bom, foi aí que o traumão começou: Fui expulso da escola, minha velha me encheu de chinelada, o velho me botou pra trabalhar com o carroceiro da rua e eu não voltei mais pra escola. E, pra maior dos pecados, todos os dias ele me obrigava a recitar a lição do tal aparelho excretor dos celenterados. Que são uns bichos tão desgraçados que têm boca, mas não têm cu!

Era um tal de dipoblásticos acelmados: pólipos, hidras, caravelas, medusas e corais. Um saco! Peguei trauma. Traumão. Eu odeio celenterados! Eu odeio Ciências, eu odeio o professor de Ciências!

Introjetei, cara. Nem meu analista conseguiu extrair de mim essa história do aparelho excretor dos celenterados. Você é o primeiro. Puxa, parabéns, você devia ser analista, isso sim.

Mas agora pensa bem aqui comigo: porque é que uma criança de onze anos tinha que saber aparelho excretor de celenterado? Com tanta coisa mais importante para nos ensinarem na vida – como sentar direito, com respirar direito, o que não comer e como comer, como se relacionar com as pessoas, como aprender a respeitar as meninas, sabem as coisas básicas da vida. Isso os idiotas não ensinam nunca, as pessoas têm que aprender na marra, na rua, na prática da vida.

Mas aí eles socam as crianças nas escolas, para os pais poderem trabalhar e farrear quando dá e ficam empurrando essas patacoadas que você nunca vai usar na vida, pra terem com que ocupar o teu tempo na marra. O engomadinho de Ciências, o abusador, era um desses. O carecão de Matemática enfiava aquele porre de raiz cúbica e polinômio do segundo grau e achava que  a gente tinha que curtir. Ou levar zero. Como se todo mundo fosse que nem aquele ex-seminarista maluco, que gostava de Ciências!

Pois é, essa é a grande vergonha da minha vida, cara. Nunca tive coragem de contar o quanto eu sou traumatizado por ter tido que aprender sobre o inexistente aparelho excretor dos celenterados. Traumão! Pô, tonelada!...

Bem, agora você já sabe também. Acha que isso vai  mudar toda a sua vida para melhor? Vai ver,  sua vida nunca mais será a mesma, depois de você saber que celenterado não faz cocô!


sexta-feira, 29 de março de 2013

O CERCO - 37 Novela histórica

0 CERCO - 37  Novela histórica
MILTON  MACIEL

Resumo do cap. 36 – A sumo-sacerdotisa dos celtas recomenda que os alanos sejam usados para atrair Átila, apresentando-se como um pequeno bloco entre romanos e visigodos. Mas todos os arqueiros alanos são deslocados para o extremo sul do campo de batalha, ocultando-s entre os arbustos. Quando Átila ataca os alanos, tentando desforrar-se do rei Sangiban, eles o surpreendem fugindo em direção à floresta. Os hunos os seguem e ainda desviam um destacamento para atacar um grupo de visigodos retardatários. Com isso os hunos se fragmentam e, então, são atacados na retaguarda pelos romanos. Os alanos reagem e logo a seguir, chegam os burgúndios e os francos ripuarianos. O pequeno grupo de visigodos também ataca a lateral dos hunos. Com isso a batalha se decide contra eles. Átila precisa bater em retirada, porém todos os flancos estão bloqueados por inimigos em combate, As perdas dos hunos são incomparavelmente maiores que as dos aliados. E eles passam a depender criticamente do desempenho dos seus parceiros, os ostrogodos e os gépides.

COM AMIGOS ASSIM, QUEM PRECISA DE INIMIGOS?

A pergunta que Átila e os líderes hunos se fazem insistentemente, enquanto vão sendo encurralados e dizimados por alanos, francos, burgúndios, visigodos e romanos é a mesma: O que aconteceu com os gépides?

Seriam estes os encarregados de dar combate aos legionários de Flávio Aécio. E, ao que tudo indicava previamente, este seria um duro e longo combate, com imenso número de baixas de parte a parte. Como foi possível, então, que os romanos tivessem aparecido assim de repente, tão no início da batalha ainda, e tivessem caído maciçamente sobre a retaguarda dos hunos, que perseguiam os alanos?

Dali onde estavam, era impossível para Átila e seus homens terem uma clara visão do setor onde deveriam estar o gépides em luta com romanos. Tinham mais é que cuidar de sua própria pele, uma vez que estavam comprimidos pelos inimigos por todos os lados e precisavam desesperadamente de um caminho de fuga.

O que teria acontecido com Ardaric e seus gépides?

A resposta a essa angustiante pergunta huna começou a ser dada bem antes dessa hora ferrenha de batalha. Na verdade, quando os hunos e os ostrogodos começaram a ocupar seus lugares nas linhas, antes da ordem de atacar, Átila havia estranhado a demora de Ardaric em ocupar seu lugar à frente de seus homens. O rei dos hunos chegou a ter que esperar um pouco para dar a ordem inicial de ataque por causa disso. Finalmente Ardaric havia aparecido e os hunos e ostrogodos dispararam celeremente em direção aos inimigos alanos e visigodos, respectivamente.

Contudo, voltando-se por um rápido momento quando chegava junto aos alanos, Átila ainda pôde vislumbrar que os gépides avançavam muito lentamente em direção aos romanos. E que estes faziam exatamente a mesma coisa, marchando com sua infantaria literalmente em passo de tartaruga. Que tática seria essa daqueles malucos? O que teria levado Ardaric a avançar tão devagar no campo de batalha? E os romanos a responderem na mesma moeda? Um homem huno era o responsável!

No momento em que Átila desfilava trotando em frente a seus homens formados para o ataque, um huno havia chegado à tenda de Ardaric. Era um homem alto e magro, vestido com um longo traje preto, típico dos civis hunos que ajudavam na logística dos acampamentos de guerra.

Esse civil havia surgido de algum lugar entre os ostrogodos, sem chamar atenção, andando calmamente na retaguarda protegida pelos carroções. Passando depois pela área de retaguarda dos hunos, praticamente vazia, pois quase todos já estavam formados nas linhas de ataque, à frente dos carroções, o homem acabou chegando à retaguarda civil dos gépides, bem antes de Ardaric estar pronto. Surpreendeu-o em sua tenda, começando a colocar sua armadura, com a ajuda de dois soldados.

Quando o homem entrou, Ardaric não manifestou qualquer estranheza ou preocupação com ele. O huno alto moveu-se devagar até ficar às costas dos ajudantes de Ardaric, que estavam voltados para ele nesse momento, tratando de colocar-lhe as longas proteções metálicas dos antebraços. Esperou que o rei dos gépides levantasse os olhos e o visse.
E, nesse exato instante, baixou o manto que  cobria sua cabeça. Esperou a reação de Ardaric e voltou a cobrir-se rapidamente. E fez um sinal inequívoco para o rei, dando a entender que ele devia dispensar os ajudantes.

Ardaric ficou lívido e pálido, como se tivesse visto um fantasma. Mas imediatamente se recompôs e, com um grito, como se tivesse ficado enfurecido, ordenou que seus ajudantes desaparecessem dali, o que os dois se apressaram a fazer. Ao mesmo tempo que saíam, ouviram a ordem seca de seu rei:

– Postem-se os dois do lado de fora desta tenda e não deixem ninguém – ninguém mesmo, entenderam? – entrar aqui! Seus pescoços inteiros significarão que vocês cumpriram minha ordem.

Os ajudantes saíram assustados, apanharam duas lanças que estavam ali perto e postaram-se de guarda no exterior da tenda do rei.

Este, tão pronto viu que os homens não mais o podiam ver e ouvir, soltou um suspiro e falou:

– Minha querida! Mal posso acreditar. Todos diziam que você estava morta, executada pelos francos. Ah, Hilduara, que coisa maravilhosa vê-la com vida aqui. O que lhe aconteceu? Conte-me, por favor.

Hilduara livrou-se então do manto escuro e deixou seu rosto aparecer por inteiro, com todo o esplendor de sua beleza e todo o brilho dos longos cachos negros de cabelos perfumados.

Ardaric não resistiu a tanta beleza e, avançado para ela, enlaçou-a pela cintura, procurando com os seus os belos lábios da bela ostrogoda. Ela deixou-se beijar e esperou pacientemente que o chefe dos gépides extravasasse sua emoção. E, assim que recuperou o fôlego e a liberdade da cintura, deu dois passos para atrás e disse:

– Caro Ardaric, como pode ver, eu estou viva e bem viva. De fato, eu fui descoberta pelos francos, mas eles pouparam-me a vida, executando somente as duas assassinas que trabalhavam comigo ali na fortaleza. É exatamente dali que estou chegando agora.

Ardaric demonstrou o pânico de que foi tomado:

– Deuses do céu e da terra! Você me diz que estava na cidadela da Peste Negra?!

– Não existe peste alguma, Ardaric. Nem nunca existiu! Foi tudo um grande truque, uma forma magistral de enganar os hunos. E eles acreditaram tanto nessa falsa peste que acabaram se matando aos milhares, em batalha entre si mesmos, como você já deve saber.

– Sim, sim, todos sabem disso agora. Mas como não há e nuca houve peste? Se os homens tinham todos os sintomas dessa doença maldita!

– Tinham, mas os sintomas desapareciam no mesmo dia, Ardaric! A verdadeira peste não faz isso, só piora, desfigura e debilita até matar. Todas as pessoas dentro daquela cidadela, posso lhe garantir, estiveram o tempo todo muito bem de saúde. Mas representaram papéis que levaram os hunos a creditar que estavam doentes de verdade.

Ardaric precisou sentar num banco para poder pensar e assimilar aquelas informações. Se não fossem verídicas, e Hilduara tivesse de fato vindo da fortaleza dos francos, então a esta altura ele era um homem a caminho da cova. Acabara de beijar ardentemente a boca de uma mulher contaminada. Por outro lado, se o que Hilduara afirmava, por mais inacreditável que parecesse, representasse a verdade absoluta, então ele estava a salvo e aquela criatura suave, bela e... diferente, estaria ali para servi-lo como em outras vezes. Preferiu, portanto, acreditar nela e lhe perguntou:

– E onde está aquele patife do seu dono, aquele velhaco e desprezível Ascilatus? Quero negociar já com ele, antes que algum outro chefe a veja e a queira para servi-lo antes.

Hilduara sorriu tristemente, ao ouvir essas palavras tão terríveis. Mas em seguida sentiu seu coração aliviar-se. Os tempos eram outros, sua servidão acabara, nunca mais os homens a teriam como tiveram antes. A Deusa e Kyna a tinham agora sob sua proteção. E exatamente a serviço delas é que estava ali, naquela tenda. agora.

– Morto e bem morto, Ardaric. Castrado e executado.

– Mas quem fez isso com aquele porco miserável?

– Um general huno brandiu a espada num lugar muito longe daqui, mas quem o executou foi a grande Deusa dos celtas, através de sua sacerdotisa, ali mesmo dentro da fortaleza dos francos.

– Como?! O homem agrediu o romano trapaceiro longe daqui, por ação de uma sacerdotisa que estava aqui, a quilômetros de distância e por determinação de uma deusa? Convenhamos, minha querida, isso é bem difícil de se acreditar. Quem é essa sacerdotisa, dotada assim de tal nível de poder?

– A grande Kyna!

Ardaric arregalou os olhos surpreso e falou:

– A grande sumo-sacerdotisa dos celtas estava ali com vocês?! A grande Kyna, você me diz! Nesse caso, minha amiga, eu já começo a acreditar que você disse a verdade. Conheço essa mulher há muitos anos e sei o poder incrível que ela tem. Agora entendo como é que vocês enganaram os hunos com a peste falsa. Só pode ser coisa dela.

– Dela e de sua filha Alana, a grã-sacerdotisa da Deusa.

– Pelos deuses! Você me afirma que os francos têm ali dentro essas duas sacerdotisas ao mesmo tempo?

– Não, Ardaric.

– Não? Elas já foram embora então?

– Não. Os francos têm ali TRÊS sacerdotisas celtas! Kyna, sua filha Alana e a filha desta, Vérica.

– Céus! E quem, é essa Vérica, de quem nunca ouvi falar? Custa-me crer que uma mulher tão jovem como Kyna possa ter uma neta.

– Vérica é a mulher mais corajosa e a maior guerreira que eu já vi em toda a minha vida. E também a mais fantástica arqueira que já vi em ação. É neta de Kyna, sim e tem só dezesseis anos.

– Bem, bem , bem... Isso que você está me dizendo é de suma gravidade, minha amiga. Se a grande Deusa dos celtas está a favor dos francos e os francos são aliados dos romanos e visigodos, então nós estamos aqui em maus lençóis. Eu nunca soube de um único caso em que as sacerdotisas da Deusa celta tivessem se posicionado a favor de um exército e esse exército tenha sido o perdedor numa batalha. Isso é um péssimo augúrio para meus soldados e para mim.

– Sim, rei Ardaric. E é exatamente por isso que eu vim aqui. As sacerdotisas consultaram a Deusa através do tripé da água sagrada e não resta nenhuma dúvida: os hunos e seus aliados serão derrotados e dizimados hoje nesta batalha. Aliás, nós vimos que vocês, os gépides, foram os primeiros a serem prejudicados, numa batalha inesperada contra os francos ripuarianos.

– Sim, é verdade, perdi quase 20% do meu exército nesse combate. Por sorte consegui trazer meus homens para esta retaguarda e o francos tinham alguma ordem para não nos seguirem. Até agora não entendo como eles nos emboscaram a partir da floresta, em plena Via Agripa.

– Foram os hunos que mandaram falsos batedores francos darem a posição de vocês. Vimos isso também.

– Malditos! Fomos traídos por nossos “amigos” então? Mas com que propósito?

– Átila queria saber se havia um contingente maior de francos escondidos e só desse jeito poderia descobrir. Você foram usados desonestamente como iscas.

– Ah, traidor! E eu que empenhei minha palavra, jurando defendê-lo sempre, com minha própria vida se necessário! Mas diga-me, Hilduara, se vocês puderam ver o resultado da batalha, o que vai acontecer com meu povo e comigo? Seremos mortos em massa, então?

– Não, Ardaric. Essa é a boa noticia que eu vim lhe trazer. Hoje não haverá morte para os gépides, só para os hunos e ostrogodos.

– Mas como pode isso ser possível? Como pode não haver morte para nós, se a nós cabe enfrentar, por imposição de Átila, é claro, justamente o inimigo mais forte de todos, os romanos de Flávio Aécio?

– Porque os gépides não enfrentarão os romanos, nem os romanos enfrentarão os gépides.

– Pelos deuses, Hilduara! Isso seria maravilhoso. Mas como podem os romanos não avançarem sobre nós?

– Porque, neste exato momento em que estou aqui lhe dando esta notícia maravilhosa, a sacerdotisa Kyna está naquela grande tenda lá longe, dizendo a mesma coisa para Flávio Aécio. E ele, tanto quanto você, conhece de sobra quem é a grande Kyna. Pode ter certeza que, se você e seu gépides não atacarem os romanos, os romanos não os atacarão também. E, desse forma, você irá salvar todos os seus homens. Não pense na reação dos hunos, que traíram você, mas pense na reação do seu povo, quando você entregar a suas mães, esposas e prometidas todos estes jovens e estes pais de família cuja vida você terá poupado.

– Mas passarei para a história como um traidor!

– Um traidor de quem traiu você primeiro, rei dos gépides? Átila e seu hunos foram os responsáveis pelos gépides mortos no combate com os ripuarianos. A esses somente você não poderá levar de volta para sua pátria. Mas a todos os outros você pode salvar. Tome a decisão certa. E tome-a agora, pois Átila já deve estar impaciente, esperando-o à frente das linhas dos gépides.

– Bem, que os deuses tenham piedade de mim! Ainda que a história possa me chamar de traidor um dia, eu o farei para salvar estes milhares de jovens cuja vida tenho agora em minhas mãos.

– A história não lhe fará essa injustiça, Ardaric. Até porque, vimos isso também na água sagrada, em cerca de três anos vocês serão aliados daqueles que hoje são seus inimigos. E os únicos inimigos que todos vocês terão, serão exatamente os hunos. E vocês, todos juntos, haverão de dar fim, para sempre a esses invasores inclementes.

– E liquidaremos Átila nesse dia?

– Não será preciso, Ardaric, ele já terá morrido antes.

Os olhos de Ardaric se iluminaram:

– Nesta batalha de hoje, então? É hoje que ele morrerá?

– Não. Mas não falta muito tempo. Vimos que o rei dos hunos está em seus anos derradeiros.

– Você fala: vimos. Você também iu essa coisas que as sacerdotisas celtas  podem ver?

– Sim, Ardaric. Eu agora sou aprendiz de sacerdotisa, sirvo à grande Deusa celta e pratico com Kyna, Alana e Vérica.

– E é uma mulher livre, então! E uma quase sacerdotisa. Creio que não adiantaria nada se eu lhe pedisse para se deitar comigo depois da batalha, não?

– Não, não adiantaria nada pedir isso. Mas agora vá e faça exatamente como lhe falei. Avance em direção aos romanos, mas faça-o de forma extremamente lenta. Eles farão exatamente a mesma coisa. E então, quando vocês estiverem mais perto, desvie o seu exército para o centro do campo de batalha, por onde os hunos já terão passado celeremente no encalço dos alanos. Os romanos girarão seus homens em sentido contrário. E, nesse momento, todos certos de que não haverá guerra entre gépides e romanos, eles atacarão e retaguarda de Átila.

– E eu?

– Você deixará o campo de batalha com todos os seus homens. Nem hunos, nem ostrogodos poderão fazer nada contra vocês, estarão lutando suas próprias batalhas mortais. Você poderá tomar pela Via Agripa em direção ao Sul. Todos os aliados saberão então que os gépides não são mais seus inimigos. Vocês marcharão em paz até suas terras.

– Que os deuses a bendigam e protejam, Hilduara... Sacerdotisa Hilduara! Você terá minha eterna gratidão e a de todo o meu povo, por esse seu gesto de hoje. E, pode ter certeza, a partir de hoje, passará a contar com todo o meu respeito também.

E, beijando agora a mão estendida da sua libertadora, Ardaric deixou a tenda e foi conversar com seus comandantes.