segunda-feira, 29 de abril de 2013


RITINHA - 5  
MILTON  MACIEL  

Final da parte 4
Mas, com o passar dos meses, o corpo de Ritinha foi se alterando e despertou a atenção e o desejo lúbrico do padrasto. Então ele abusava de Manoela até que Ritinha começasse a gritar com ele. Aí voltava-se para ela, procurava agarrá-la à força e tentava arrancar a roupa dela. Manoela, sempre covarde, não fazia nada em defesa da irmã, ficava estática e chorava baixinho. Não abria a boca para nada, tal era o seu medo de ser agredida. Já Ritinha mordia e esperneava, dava chutes, berrava. Mas, com o tempo, isso parecia excitar o homem ainda mais, estimulava os seus impulsos sádicos mais primitivos.

PARTE V

   Até que um dia ele não se conteve. Agarrou e empurrou Manoela para a porta da rua, que estava entreaberta. De propósito afrouxou o arrocho e se dirigiu para Rita, que o insultava. Como ele esperava, desta vez Manoela teve forças para destravar e correr porta afora. Aí João Boto, com um salto, fechou a porta com a chave e saltou sobre Ritinha, agora de punhal na mão. A garota ficou apavorada quando o padrasto encostou a lâmina no seu peito e ameaçou cortar os bicos dos seus seios se ela não fizesse tudo o que ele ordenasse. A menina começou a chorar e deixou-se despir, tremendo de medo. Mas, quando viu que o homem havia largado o punhal para poder ter as duas mãos livres para mexer nela e nele, recomeçou a chutar e morder, gritando. João Boto endoideceu de vez e começou a bater na menina com toda a força, desferindo-lhe uma saraivada de socos e pontapés.

  Quando ela estava quase desacordada, travou-lhe os braços, abriu-lhe as pernas sem encontrar mais resistência e fez tudo o que quis com ela. Por fim deixou-a abandonada no chão, toda machucada da cabeça aos pés, sangrando em várias partes do corpo. A selvageria e a explosão de primitivismo serviram para arrancá-lo da bebedeira e ele saiu, de volta para o bar, em busca de mais álcool. Queria, também, contar para todo o mundo o que tinha acabado de fazer.

   Ao chegar à porta viu que a menina não estava desmaiada. Voltou à sala e começou a ameaçá-la de morte. E disse que, se ela o evitasse dali em diante, então ele a mataria com o punhal. De agora em diante ela também ia ser mulher dele, tanto quanto sua mãe. Ele a tinha inaugurado, então, por direito ela passava a ser dele e de mais ninguém. Se ela tivesse a audácia de se recusar, ele a mataria, cortando-lhe os bicos dos peitos primeiro. E ainda mais, nesse caso ia fazer a mesma coisa com Manoela, obrigando-a a ser sua mulher também.

   Quando o monstro saiu, Ritinha teve forças para se levantar e caminhar, em passos trôpegos, para a rua, pedindo socorro nas casas vizinhas. Todas as portas estavam fechadas e ninguém abriu nenhuma delas. Então a menina saiu ao Deus dará, caminhava sentindo dores horríveis, seu vestido manchado de sangue vivo, sangue vivo a lhe escorrer pelas pernas; e do rosto, e do pescoço, e dos lábios feridos. Caminhou lentamente até à rodovia asfaltada, que passava a dois quarteirões de distância de sua casa. Precisa fugir, fugir, ir para bem longe, tinha que escapar daquela besta fera que a agredira daquele jeito. Nunca seria mulher dele, nunca! Preferia morrer. Mas amava demais a vida para se deixar liquidar sem luta. Ao chegar à estrada ainda lhe veio à cabeça a idéia de se jogar na frente de um caminhão, acabar com tudo aquilo. Mas acabou decidindo que não, não poderia morrer sem antes ver o crime daquele homem castigado. Não sabia como, mas tinha certeza que isso aconteceria logo, tinha certeza e essa certeza a manteve viva, com vontade de lutar.

   Ritinha andou mais um pouco, agora pelo acostamento da rodovia. Caminhar ficava cada vez mais difícil, as dores eram cada vez mais cruéis, o sangue ainda pingava dela, a vista ia ficando turva, as pernas pareciam não ter mais peso. Mais alguns passos hesitantes e Ritinha, tentando apoiar-se em uma parede que não existia, desabou pesadamente no chão.

   Acordou horas depois, no posto de saúde da cidade. Ao seu lado uma menina bem nova a olhava com um sorriso lindo, mas tendo os olhos vermelhos de chorar. Identificou-se como Iracema.

– Mas me chamam de Gabi, é o meu nome de guerra. Sabe, eu sou quenga e estava num caminhão, voltando para o posto onde eu me viro, de carona com um cliente antigo. Foi quando eu vi você caindo, bem na nossa frente. A gente parou e recolheu você. Pelo seu estado, a gente viu que você tinha apanhado muito. O motorista ficou horrorizado, nunca tinha visto nada assim. Eu já entendo mais dessas coisas, já apanhei muito também e fui logo desconfiando que outra coisa é que tinha lhe acontecido. Levantei a sua roupa e tive certeza. Aí exigi que o homem entrasse na cidade e que a gente trouxesse você para um hospital. Acabamos neste posto de saúde. A doutora até que foi bem legal, largou tudo o que estava fazendo e só cuidou de você o resto da tarde. Houve uma hora que ela não agüentou e começou a chorar, olhando o seu estado, quando conseguiu terminar de tirar toda a sua roupa. Aí eu também não agüentei e me abracei nela, as duas chorando de ver o que tinham feito com você. Só uma mulher pode entender o que você deve ter sofrido nesta tarde. E acredite, menina, o pior ainda está por vir. Eu sei porque eu já passei por isso também, embora não tenham me judiado tanto como fizeram com você. O pior não é a dor nas pancadas, não é a dor lá embaixo, não é o horror dos ferimentos e das cicatrizes. O pior é a dor que a gente sente por dentro, a sensação de impotência, o desespero de se sentir suja por dentro. Ah, quando eu entendi o que tinha se passado com você, eu jurei para mim mesma que ia cuidar de você enquanto você precisasse.

   Ritinha olhava para a outra menina com os olhos cheios de lágrimas, já começara a sentir aquilo tudo que ela dizia. Mas o núcleo lutador dentro de si ainda mantinha acesa uma chama heróica. Fazendo um enorme esforço para entreabrir os lábios cortados, tentou sorrir para a jovem. O sorriso virou uma careta de dor, mas, ainda assim, ela se forçou a falar:

– Ritinha... Vo... você é...?

– Iracema. Eu já lhe falei, mas acho que você ainda estava muito grogue da anestesia que a doutora lhe deu. Mas todos me chamam de Gabi. Olhe, deixa eu lhe dizer, ou melhor, prevenir: eu sou quenga, entendeu? Puta. Não é bom para você ser vista com gente como eu. Por isso, assim que você ficar melhor, eu vou sumir daqui e da sua vida, fique tranqüila. Mas enquanto você não estiver bem, eu não pretendo arredar pé deste quarto aqui. A doutora não só deixou, mas até me pediu para passar esta noite aqui, cuidando de você. Mas depois, ela lhe dando alta, eu vou sumir, tá?

   Fazendo um enorme esforço, Ritinha balançou a cabeça para os lados, querendo dizer que não. Mais uma vez forçou-se a falar:

– Não... vá... por ... fav...  – e adormeceu de novo.
CONTINUA

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