MILTON
MACIEL (antepenúltimo capítulo)
Resumo do cap. 41 – O Horror dos Horrores - O
alvorecer do dia 20 de Junho de 451 A.D. expôs aos sobreviventes em Châlons
toda a enlouquecedora visão do resultado de uma das maiores carnificinas da
história, nessa que foi a batalha real das Planícies Catalaúnicas. O número de
mortos foi avaliado em algo entre 15 mil e 25 mil homens. Horrorizados, os
sobreviventes decidiram que não iriam mais lutar. Um grande número deles
simplesmente abandonou Catalauni para sempre, sem prestar contas a seus
superiores hierárquicos, que, aliás, nem conseguiriam localizar se o quisessem.
O príncipe Torismundo, dos visigodos, sendo acolhido amistosamente por um jovem
huno e constatando toda a imensa dimensão da tragédia que todos viviam, prometeu
a si mesmo tornar-se um pacifista.
UM NOVO REI PARA OS VISIGODOS
Na tarde
anterior, assim que o sol se pôs e deixou de se refletir nos metais da armadura
de Vérica, ela desceu da colina e impediu que Meroveu e os francos se juntassem
na perseguição aos ostrogodos, que já fugiam em direção à retaguarda extrema
junto ao rio. Quando o rei e Armosic quiseram se opor, a sacerdotisa apenas
disse:
– É uma determinação
da Deusa – o que levou Meroveu a deixar de resistir. A moça ainda completou:
– Se vocês
quiserem sobreviver e preservar as vidas dos homens que lhes sobraram, voltem
agora, imediatamente, para a fortaleza. Kyna e Hilduara já estão lá e Alana
logo chegará, assim que completar sua missão. Em hipótese alguma se deixem
colher pela noite neste campo de batalha: será o fim para todos! Os ostrogodos
e os hunos já estão derrotados. Os gépides foram embora e se salvaram deste
horror. A Deusa nos mostrou que a guerra acabará hoje, com o início da sombra
total da noite. Amanhã não haverá mais batalha. Só dor e sofrimento
insuportáveis.
– E nós devemos
deixar o campo, então? Não seremos considerados covardes?
– Rei Meroveu,
ninguém perceberá nada nas próximas horas. A desordem será total e absoluta. E,
de mais a mais, vocês não são mais necessários. Os inimigos estão batidos.
Então vão-se embora! Salvem seus homens enquanto é possível. E você, Armosic,
salve sua vida para Hilduara, que o espera ansiosa e nervosíssima. Ela ainda é
uma aprendiz e não tem muita firmeza nem convicção sobre o que vai acontecer.
Só quando ela puder passar seus braços no seu pescoço ela poderá voltar a
viver.
Isso foi mais do
que suficiente para convencer o general, que partiu incontinenti para juntar
seus homens. Estes, obviamente, ficaram aliviados ao saber que iriam deixar a
batalha. Já chegava a dor que carregavam de terem perdido tantos companheiros.
Olhando Meroveu
nos olhos, Vérica falou:
– Seu povo,
Meroveu, precisa de você. Você é o grande espírito por trás da futura unificação
de todos os francos. Um dia, com calma, nós vamos lhe explicar tudo isso. Mas
agora, em nome de todos os francos, não só dos Salianos, corra logo para a
cidadela. Monte e parta imediatamente.
E o rei, agora
totalmente convencido pela argumentação daquela a quem tanto amava, montou em
seu cavalo e galopou para alcançar a coluna que já marchava a pé, seguindo
Armosic em direção à sua amada cidadela. Para eles, a guerra havia acabado um
pouco mais cedo. Mas o rei dos francos marchava intranqüilo, com o coração em
tumulto.
Vérica
simplesmente se recusara a ir com ele. Disse que iria ficar ali mesmo, naquela
grande clareira aberta pela partida dos homens que haviam corrido rumo ao
norte, os ostrogodos fugindo e os visigodos seguindo-os. A jovem sacerdotisa
dissera uma última frase, quando Meroveu já começava a se afastar, uma frase
cujo sentido Meroveu não compreendeu:
– Eu tenho que
encontrar um rei e preparar um príncipe. A Avó determinou que eu o faça antes
de voltar para a cidadela. Então eu não passarei esta noite com vocês lá. Eu
ficarei aqui, exatamente aqui onde estou, no meio de todos estes pobres mortos,
até o nascer do dia. Então cumprirei a missão que a Deusa me determina e irei
ter com vocês na fortaleza.
Meroveu marchava
com o coração pesado, por mais que Vérica lhe dissesse que ficaria bem, ele
temia demais pela vida dela. Voltando-se para olhá-la ainda uma última vez, ele
a viu livrar-se de suas armas, do elmo e da armadura, expondo-se assim com sua
veste sacerdotal novamente. Então sentou-se calmamente no meio dos mortos e começou a orar e meditar.
O rei dos
francos não podia acreditar! Como aquela mulher tão jovem, com idade para ser
considerada uma menina ainda, podia ser tão corajosa?! Num campo por onde
vagavam homens enlouquecidos com longas espadas, num campo cheio de mortos, ela
não demonstrava o menor sinal de medo. Ali, totalmente tranqüila no meio de
centenas de cadáveres mutilados, a jovem sacerdotisa da Deusa parecia a
serenidade absoluta em pessoa. Não, definitivamente Meroveu não podia entender
essa mulher. Só entendia que a amava com desespero e paixão. E que não era
correspondido da mesma forma.
O rei e o príncipe visigodos
Assim que o dia
clareou, Vérica, tendo passado a noite toda sem dormir, empreendeu a sua
difícil marcha entre os milhares de corpos amontoados pelo campo. Dentro de sua
mente a certeza era absoluta, sabia muito bem para que ponto daquela imensa
planície precisava se dirigir. E o fez, sem reclamar de nada, da enorme
dificuldade de andar por aquela verdadeira morgue ao ar livre. Depois de quinze
minutos de difícil deslocamento, sentiu que havia chegado ao ponto certo.
Ali, soterrado
por muitos cadáveres ostrogodos e visigodos, deveria estar o corpo de
Teodorico. Era dever dela encontrá-lo e imediatamente, atrair Torismundo para o
mesmo local.
Usando sua força
descomunal nos braços e pernas, Vérica começou a remover os corpos um a um,
sujando-se toda de sangue, até que avistou um corpo todo esfacelado que tinha o
inconfundível elmo com a pequena coroa de ouro incrustada. O rosto, protegido
pelo duro elmo, era a única coisa inteira naquele corpo, que fora pisoteado por
cavalos, evidentemente. E a sacerdotisa conseguiu reconhecer facilmente o
semblante do rei dos visigodos.
Imediatamente
Vérica passou à segunda etapa de sua missão: começou a focalizar sua mente no
jovem príncipe Torismundo. Ela sentia duas coisas facilmente: ele estava vivo e
logo estaria vagando pelo campo de
batalha. Precisava então atraí-lo para o lugar onde estava o corpo de seu pai.
A jovem sacerdotisa, em pé, fechou os olhos e entrou imediatamente em estado de
meditação profunda. Entrou em imediato contato com a Deusa e entendeu-lhe as
determinações. Sim, o príncipe dos visigodos já se iria por a caminho e erraria
pelo campo até chegar onde ela estava. E a sacerdotisa o deveria instruir,
então, a voltar rapidamente para seu reino.
Vérica teve que
esperar por quase uma hora, até ver e reconhecer aquele homem que andava com
passos trôpegos entre a multidão de cadáveres, sem ter direção definida para onde
ir. Naquela hora, muitos outros homens vagavam por ali também, todos
aparentemente sem rumo, alguns falando sozinhos longas ladainhas, completamente
dementados ante o horror do que seus olhos tinham visto e já não registravam
mais, porque a razão se havia retirado daquelas mentes, quiçá para sempre.
Mas Torismundo
não era um deles. Estacou de repente ao reconhecer a sacerdotisa celta que
tanto tinha impressionado a todos na tarde anterior, ao saltar de forma
espetacular de cima do seu cavalo. Mudou a direção de seus passos para se
aproximar do lugar onde ela estava. A sacerdotisa esperou que ele chegasse bem
perto e lhe falou:
– Alegra-me ver
que conseguiu sobreviver, rei Torismundo.
– Não,
sacerdotisa, está equivocada. Eu sou o príncipe. O rei é meu pai, Teodorico I.
– Não estou
equivocada, rei Torismundo. Infelizmente, não estou.
– Então... Isso
quer dizer... que meu pai não vive mais?
– O rei
Teodorico pereceu em combate na tarde de ontem. Tombou e seu corpo foi
pisoteado por cavalos. Cavalos de sua própria cavalaria, rei Torismundo.
– E como ficou
sabendo disso, sacerdotisa? É de fonte segura? Não poderá haver um equívoco,
afinal as coisas estão na maior confusão e é possível que...
– Veja você
mesmo, rei Torismundo. A Deusa mandou-me para cá, para localizar o corpo de seu
pai, no meio de milhares de outros corpos tombados nestes campos. E para
receber você e ajudá-lo neste transe. Olhe atrás de você exatamente, há um
lugar onde eu afastei os outros corpos igualmente pisoteados por cavalos e
deixei só um no meio da clareira que abri entre os corpos. O rosto está ileso
dentro do elmo.
Torismundo
voltou-se e viu facilmente ao que a sacerdotisa se referia. Sim, sem sombra de
qualquer dúvida, aquele rosto que encimava um corpo destroçado havia sido o de
seu pai, o rei dos visigodos. O jovem príncipe se aproximou, abaixou-se, ficou
um longo tempo a olhar para aquela face de barbas esbranquiçadas que, durante a
maior parte de sua vida, apenas lhe infundira medo e revolta. Não sabia
exatamente como deveria agir, não sabia nem como reagiria espontaneamente ante
aquele horrível quadro e a realidade inegável da morte de seu pai.
Surpreendia-se ao perceber que simplesmente não tinha qualquer reação!
Torismundo
estava como que anestesiado, como se tivesse tomado uma beberagem com
soporífero. Não conseguia sentir nada! A sacerdotisa certamente deveria estar
esperando por sua reação de desespero, de gritos e lágrimas, de dor pela perda
do pai. Mas Torismundo não conseguia sentir nenhuma emoção, nenhuma lágrima
subia-lhe aos olhos. O que a sacerdotisa iria pensar dele?
– Rei
Torismundo, o que eu vou pensar de você não tem a menor importância, não vai
mudar nada. Mas já que você teve essa
preocupação, deixe que eu lhe diga. O que eu penso agora é que um filho não é
obrigado a amar um pai, só por que ele é seu pai. Só pode ser amado o pai que
sabe fazer-se amar. Não foi esse o caso, eu consigo senti-lo perfeitamente em
seus pensamentos de agora. Portanto, não se atormente, não tente expressar uma
emoção que não pode sentir.
– Pelos deuses,
sacerdotisa! Você LEU MEU PENSAMENTO! Como pode fazer isso?
– Não é pelos
deuses, rei Torismundo. É pela Deusa. Ela pode ler todos os pensamentos de
qualquer humano. E nós, suas sacerdotisas, recebemos dela essa informação,
quando estamos suficientemente bem treinadas. Não é um dom nosso, diretamente,
senão que nosso dom maior é sermos capazes de entrar e permanecer em contato
com a mente da Deusa. Por isso é que sabemos de coisas sobre pessoas que estão
em lugares a centenas de quilômetros e podemos acessar informações tanto sobre
o passado como sobre o futuro das pessoas e das nações.
– Vocês nos
disseram que nós íamos derrotar Átila e também disseram que a guerra acabaria
ontem mesmo, e tudo aconteceu dessa
forma efetivamente. E sua avó nos falou do “horror dos horrores” e eu agora sei
muito bem o que ela quis dizer.
– Sim, agora
mesmo acabei de ver levas de homens, vagando por estes campos, completamente
fora de seu juízo. É tudo muito horripilante mesmo. Mas nós, as sacerdotisas da
Deusa, temos uma grande vantagem quanto a isso. Nós nos blindamos contra todo e
qualquer tipo de sofrimento que possa nos atrapalhar e interferir com nossa
missão. Enquanto temos que trabalhar para servir a Deusa e ajudar as pessoas, os
animais a natureza ou os países, nós podemos ficar totalmente imunes,
insensíveis aos efeitos da dor emocional. O mesmo acontece para a dor física,
se adoecemos ou somos feridas.
–
Extraordinário! Como lastimo não ter conhecido vocês antes. Um governante que
se entregue aos sábios conselhos e à liderança de vocês, certamente será o que
melhor pode conduzir o seu povo, evitando-lhe muitos sofrimentos
desnecessários. Pois eu quero aproveitar
esta oportunidade, estando em contato com uma de vocês neste momento. Por
favor, sacerdotisa, diga-me o que devo fazer daqui para a frente? Você me
chamou de rei e isso dá a entender que eu serei de fato coroado. Porque meus
irmãos...
– Seus irmãos já
estão em plena conspiração para impedi-lo de assumir o trono, caso o pai de
vocês morra nesta guerra.
– Ah,
miseráveis! E certamente pretendem me matar, é óbvio, para lograrem seu
intento.
– Obviamente. Mas eu posso vê-lo triunfante
sobre seus inimigos na corte. Mas, para isso, uma coisa é fundamental: A
notícia da morte do rei não pode chegar a Toulouse antes de você. Portanto,
você tem que partir imediatamente para lá e andar muito rápido nas estradas,
antes que algum outro visigodo sobrevivente desta batalha também chegue à
cidade e dê a notícia para seus irmãos. Nesse caso, você já pode imaginar o que
estará esperando por você, quando chegar.
– A morte!
– Bem, deixe-me
dizer-lhe o que fazer, então. Continue avançando para o sul, até chegar àquele
ponto que foi o acampamento dos visigodos antes da batalha começar. Todos os
seus homens em condições de andar e de raciocinar, estão se encaminhando para
lá. E ainda são uns poucos milhares. Pois bem, reúna-os, fale com eles, dê-lhes
as notícia da morte do rei e da conspiração de seus irmãos. Pode dizer que quem
lhe deu essas informações foi uma sacerdotisa celta. Então pegue um bom grupo
de soldados e mande-os aqui, para resgatarem e levarem o corpo do rei
Teodorico. Eu ficarei aqui esperando, para que os visigodos saibam para onde
vir. E, tão logo cheguem ao acampamento de volta, deitem o corpo do rei na
fogueira, que já deve ter sido previamente preparada pelos homens que vão ficar
no acampamento.
–E depois?
Partimos imediatamente para Toulouse?
– Imediatamente,
sim. Para sua segurança e sobrevivência. Entenda: você chegará com a notícia da
morte do rei e com o seu direto natural de sucessão. Seus irmãos serão colhidos
de surpresa e não terão tempo de acionar os outros conspiradores. E, mesmo que
consigam fazê-lo, será inútil, porque você estará com todo o exército remanescente
ao seu lado e vai se impor com a maior facilidade.
– E os romanos?
Flávio Aécio?...
– Ele ficará
contente demais com sua partida imediata.
– Mas porque
razão?
– Veja, com a
derrota de Átila ontem, Aécio passou a temer os visigodos mais do que os hunos,
porque só vocês têm agora um contingente de homens em armas, entre os que
sobreviveram aqui e os muitos que ficaram em seu território, capaz de dar
trabalho a uma legião romana. E ele sabe que as alianças de hoje não significam
qualquer garantia amanhã.
– Pois por mim
ele pode ficar tranquilo. Eu sou muito diferente de meu pai e, depois das
coisas que vi e vivi hoje de manhã nesta planície, estou determinado a não
levar meu povo a guerra em hipótese alguma.
– Muito bem, rei
dos visigodos, apresse-se agora, vá buscar seus homens, faça as homenagens de
praxe a seu pai, leve o corpo dele à fogueira dos heróis e parta imediatamente
para sua capital.
– Senhora, creio
que devo chamá-la assim apesar de ser tão jovem, porque demonstrou ser tão
sábia e tão corajosa e porque me mostrou o caminho certo que devo seguir. Terá
minha eterna gratidão. Será que ainda poderei, um dia, rever alguma de vocês,
grandes sacerdotisas da deusa celta?
– Você vai rever
Alana, minha mãe, em breve, senhor rei dos visigodos. Também eu vou tratá-lo
assim, de agora em diante. São tratamentos de praxe para nossos cargos, não?
– Sim, senhora
sacerdotisa. Adeus então, que os deuses todos a protejam também. Mandarei meus
homens buscarem os restos de meu pobre pai e ficarei preparando, eu mesmo, com
minha próprias mãos, sua pira funerária. Adeus!
– Adeus, rei Torismundo.
E saiba fazer a paz mais do que a guerra em seu reinado.
Mas Vérica podia
ver que, embora fosse escapar da traição e da morte assim que chegasse a
Toulouse, elas continuariam em seu caminho e fariam o seu reinado curto. Se não
estivesse sob efeito da prática de insensibilização emocional, certamente
Vérica teria sofrido agora por Torismundo.
CONTINUA
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