MILTON MACIEL (capítulos finais)
Resumo do cap. 39 – Os ostrogodos atacaram
frontalmente os visigodas e o combate foi completamente equilibrado, até o
momento em que os homens liderados por Torismundo, o filho do rei Teodorico,
junto com os francos de Meroveu e Armosic, atacaram a retaguarda deles. Tendo
que deslocar homens da vanguarda para a retaguarda, aquela se enfraqueceu e
abriu caminho para o avanço da cavalaria visigoda. Nesse avanço, o rei
Teodorico, após cair desacordado ao solo, ao receber um golpe de lança no elmo,
foi pisoteado e morto pelas patas de seus próprios cavaleiros. Os francos
tiveram baixas pesadíssimas, perdendo rapidamente metade de seu contingente de
pouco mais de 500 homens de infantaria. No meio da luta, Armosic percebeu que
Vérica permanecera no topo da colina e, de lá, atingia, com suas flechas
gigantes, os ostrogodos que tentavam atingi-lo ou ao rei Meroveu. Num dado
momento, o general franco viu que Alana avançava com seus 200 cavaleiros visigodos
em direção ao acampamento fortificado dos hunos e seus aliados.
REBAIXANDO DE
VEZ O MORAL DO INIMIGO
O sol estava
perto do horizonte naquela tarde de quase verão, 19 de Junho, quando os dias já
eram muito longos. Enquanto se refletia no elmo e na armadura da jovem Vérica,
no topo da colina, ele iluminava o caminho para o avanço de outra sacerdotisa
celta, Alana. Sua fulva cabeleira, jogada para trás pelo vento gerado pelo
galope célere da égua Almarak, deixava mais exposto seu rosto de feições simplesmente
perfeitas. Quem pudesse, naquele instante, contemplar-lhe face serena e bela,
nunca poderia imaginar a que tremenda missão a guerreira-sacerdotisa se devotava
então.
Atrás dela vinha
a célebre “Brigada de Alana”, como passou a ser conhecido aquele contingente de
exímios cavaleiros que o rei Teodorico colocara a serviço da sacerdotisa. Uma
vez reintegrados à normalidade de suas posições na cavalaria visigoda, após
deixarem a fortaleza franca e se apresentarem para a batalha contra os hunos e
seus aliados, todos os homens foram unânimes em pedir para continuar sob o
comando da sacerdotisa celta.
O capitão que os
recebeu e que os chefiava antes, não só não concordou com o pedido como se
julgou ofendido com a vontade daqueles homens. Se tinham um heróico capitão que
sempre os comandara, por que haveriam de querer ficar sob o humilhante comando
de uma mulher?
O assunto
extrapolou os limites do grupo e chamou a atenção do superior hierárquico do
capitão. Que não era outro senão o musculoso e enorme Merval, o capitão
burgúndio a quem Alana aplicara uma lição memorável na sala de banquetes de
Teodorico, em Orléans. Muito pouca sorte do capitão visigodo que o comando de
todos os cavaleiros aliados, em campo para a grande batalha, tivesse sido
entregue àquele burgúndio. Merval havia se convertido no maior adorador de
Alana. Para sua surpresa completa, seu superior não só o obrigou a
incorporar-se ao destacamento da “brigada” da sacerdotisa, como foi ele mesmo
oferecer-se para participar do reide contra o acampamento inimigo. Dava assim o
bom exemplo a seu subordinado: iria ele também, o capitão Merval em pessoa,
colocar-se de bom grado sob a autoridade de uma mulher. E justificou ao
capitão:
– Essa não é
somente uma mulher, capitão, você vai ver isso em bem pouco tempo. É muito
mais, ela vale por mil mulheres e mil homens ao mesmo tempo. É uma
grã-sacerdotisa da Deusa celta, tem poderes inacreditáveis. Mas, além disso, é
de uma coragem e uma audácia a toda prova. Esses homens que estão com ela me
contaram os ataques-surpresa fulminantes que ela comandou contra os hunos,
perto da ponte do rio Marne. Ela levava 200 homens e atacava regimentos
inteiros de hunos, provocando o maior estrago e desaparecendo em questão de
segundos. Os hunos ficaram com tanto medo dela, que a denominaram de “cavaleiro
do inferno”. Até hoje eles pensam que era um homem quem comandava os cavaleiros
visigodos.
– E por que eles
pensariam assim?
– Bem, em
primeiro lugar porque os ataques foram noturnos. E porque, seus comandados me
contaram, na hora em que ela se aproxima para o ataque, ela esconde o rosto sob
a viseira do elmo e os cabelos embaixo de um largo manto preto, que prende ao
pescoço e lhe cai esvoaçante sobre os ombros e o peito. E ela não é uma mulher
de estatura normal, é bem alta e tem um corpo cheio, carnudo...
Merval parou um
pouco e soltou um suspiro. Estava relembrando Alana de saída da sala de
banquete, após humilhá-lo, perdoá-lo e curá-lo da ferida no pescoço. E após
convencer os cabeças-duras dos reis aliados que já tinham dado tempo demais
para que Átila deixasse Orléans. Então ela tirou de sobre si o manto sacerdotal
e o corpo de mulher que surgiu, apertado nas calças de montaria dos celtas, era
simplesmente enlouquecedor. Merval nunca havia contemplado algo tão perfeito em
toda sua longa vida. Ah, sem dúvida, o capitão burgúndio Merval continuava um
homem apaixonado!
O resultado da
conversa foi que, quando Alana partiu para a extrema retaguarda dos hunos e
ostrogodos, o capitão Merval e o capitão visigodo a seguiam de perto. Não
podiam chegar mais perto, porque cavalo algum conseguia emparelhar com a marcha
da égua Almarak. Esse animal também parecia ter poderes estranhos. Os homens da
brigada juraram para Merval que a água parecia conversar com os cavalos deles.
E ali mesmo, durante o galope de agora, cada vez que um outro cavaleiro
consegui a encostar em Almarak, ela simplesmente aumentava o ritmo da sua
marcha um pouquinho, o suficiente para deixar o outro cavalo para trás alguns
metros. Parecia que a água se divertia com isso, que tinha uma reserva infinita
de velocidade a sua disposição, que esperava um outro cavalo chegar junto a ela
e o deixava para trás imediatamente.
A brigada de
Alana contornou a colina de onde Vérica a saudou e arremeteu, paralelamente e
bem próxima à Via Agripa, a grande estrada, até chegar ao extremo leste da
linha de carroções, que fortificava o último reduto de defesa do inimigo.
Aquela entrada, entre as carroças e o rio, correspondia a área dos guerreiros
ostrogodos. Mas estes estavam, naquele momento, fazendo o possível e o
impossível para resistir ao avanço dos visigodos, lá adiante, no campo de
batalha. Menos de cinqüenta homens em armas haviam ficado para defender as
carroças e seus materiais. Não foram páreo para o ‘cavaleiro do inferno’ e seus
agora 202 homens. Os primeiros tombaram logo e os demais trataram de fugir como
puderam, alguns saltando entre a carroças e correndo para o campo de batalha,
onde a luta ainda estava distante das carroças. Outros simplesmente preferiram
se atirar no rio.
A brigada
continuou o seu avanço e chegou ao setor central, onde uma guarnição de 500 homens
de infantaria huna havia ficado para guarnecer as carroças principais, onde
estava concentrado o grosso do botim que Átila havia acumulado – saqueando,
pilhando e cobrando resgate de dezenas de cidades e propriedades dos gauleses.
Ali havia muito ouro, moedas, jóias, objetos pequenos valiosos, relíquias de
igrejas. Carroças e carroças estavam atulhadas desses despojos de guerra de
altíssimo valor. Atrás deles é que acabara de chegar a brigada de Alana.
Os hunos em
armas trataram de resistir como puderam ao ataque totalmente inesperado. A
regra para eles era muito simples: se algo faltasse do tesouro de Átila,
respondiam todos com a própria
vida. Por isso mesmo, essa era a pior de
todas as posições que um huno poderia ter em campo. Todos tinham que vigiar a
todos, o tempo todo. Sumisse uma única moedinha de ouro, todas elas muito bem
registradas e identificadas, e lá iriam todos eles para a frente do pelotão de
execução, os temíveis arqueiros vermelhos de Átila.
Por isso, quando
se viram atacados de surpresa por um grupo de cavaleiros visigodos, os
guardiães do tesouro trataram de lutar
com o empenho e a força que só o desespero pode dar: ou venciam, ou morriam. Ou
morriam nas mãos dos visigodos ou, se sobrevivessem, morriam nas mãos de seus
próprios companheiros de armas, seriam sumariamente executados, caso houvesse
qualquer perda, qualquer dano, por menor que fosse, ao tesouro dos hunos.
Mas homens de
infantaria, homens a pé, não eram páreo para uma brigada de homens montados em
cavalos enormes e velozes. Os cavalos os derrubavam e pisoteavam, caso
tentassem se interpor no caminho do avanço. Lutavam esses infantes com espadas
apenas, escudos e lanças estavam nos depósitos. Seus superiores hierárquicos
jamais previram aquele tipo de ataque e, por conseguinte, não os deixaram
prontos para ele.
E também, se
tivessem deixado, de nada iria adiantar. Ainda que tivessem escudos e lanças, estariam
irremediavelmente a pé. E não tinham arcos, não eram arqueiros. Então , após
terem logrado matar só dois visigodos e ferir uma meia dúzia deles, os hunos
que ainda não tinham sido massacrados seguiram o exemplo dos defensores armados
ostrogodos: trataram de fugir para salvar a pele.
Só que, para
estes hunos, não adiantava saltarem entre as carroças e correrem para o campo.
Ali encontrariam os hunos de regresso em algum momento, vitoriosos ou não. E
seriam inapelavelmente flechados. O exemplo que eles seguiram foi dos soldados
ostrogodos e da maioria dos civis que serviam nas bases de apoio e nas
carroças: correram e se arrojaram dentro do rio. Quem soubesse nadar e tivesse
muita resistência, poderia até atravessar. Outros certamente encontrariam a
morte nas águas traiçoeiras. Mas, de qualquer forma, morte por morte, melhor
tentar essa, onde sempre se podia esperar por um pouco de chance e de sorte.
Isso com um
agravante ainda. Vários daqueles homens deixados ali pelos hunos, tinham
testemunhado os reides noturnos do ‘cavaleiro do inferno’, naquela noite de
pesadelo e assombração. Quando viram de novo aquele demônio à sua frente, todo
de preto, brandindo uma espada na mão e uma grade maça na outra, montado sobre
um enorme cavalo que não tinha rédeas, não tiveram dúvida alguma: aquele
espectro monstruoso retornara dos infernos para dessangrar todos os hunos que
atingisse. E então foi mesmo pernas pra que te quero, dezenas de homens, aos
berros agora, largaram suas armas e correram para as barrancas do rio, de onde
saltavam espetacularmente sobre o desconhecido. Antes morrer afogado, do que
ter sua alma arrebanhada por um demônio das trevas.
Assim que todos
os hunos e ostrogodos correram da retaguarda das carroças, os visigodos, após
socorrerem os seus companheiros feridos, começaram o minucioso exame dos
carroções que tinham ficado aos cuidados dessa guarda agora desbaratada. Por
serem os únicos a merecerem tal cuidado, era evidente que ali estavam os
maiores tesouros.
Enquanto isso
tudo se passava em sua retaguarda extrema, os hunos a caro custo vinham
retrocedendo, tão rápido quanto podiam. Ou seja, tão rápido quanto lhes
deixavam os romanos, burgúndios, alanos e francos ripuarianos que os acossavam
por todos os lados. O recuo de Átila era lento e seus homens caiam como moscas
ante o contingente grandemente superior de guerreiros inimigos. Os ostrogodos
também vinham recuando, ficando cada vez mais evidente sua próxima derrota para
os visigodos e os francos de Meroveu.
O sol terminou
de se por e, sob a luz ainda forte do crepúsculo, os homens da brigada de Alana
começaram a atrelar os cavalos de tiro aos carroções pesados, entulhados de
botins. A noite já era praticamente completa quando a brigada de Alana partiu
rebocando e escoltando dezesseis carroções lotados de valores. Muita coisa, mas
muita coisa mesmo havia ficado para Átila ainda. Ele não teria empobrecido demais
por força dessa pilhagem da brigada. Mas, havia uma outra providência que Alana
fora tomar junto à desguarnecida retaguarda dos hunos. E essa providência só
poderia ser tomada quando a noite caísse totalmente, como naquele exato
momento.
Dezenas e
dezenas de carroções não precisavam de guardas armados para defendê-los. Porque
só havia comida neles. Também com grãos, queijos, vinhos, embutidos, couros, os
hunos haviam feito um imenso estoque. Milhares de homens poderiam comer mais de
um mês com aquele botim, principalmente agora, quando certamente o número de
guerreiros hunos a alimentar teria diminuído muito.
Noite chegada,
escuridão, o alarido da batalha cada vez mais próximo, hunos e ostrogodos
tentando chegar o mais rápido possível à linha defensiva dos carroções. Os
visigodos já tinham partido há quase uma hora com os dezesseis carroções de
tesouros hunos – na verdade, tudo aquilo bens dos gauleses, nas suas mais
diversas denominações gentílicas. Os cavaleiros seguiram Alana, que já se havia
livrado do ‘disfarce’ de cavaleiro do inferno, numa marcha segura e lenta, em
direção à fortaleza. Ali guardariam muito bem protegido, o agora ‘tesouro dos
gauleses’. Aos reis competiria decidir a divisão do ‘botim do botim’ entre seus
povos. Mas Alana sabia perfeitamente que eles não teriam a menor voz ativa
nessa decisão. Seria de Kyna e somente de Kyna a palavra final. Porque ela
falava em nome da grande Deusa. E porque fora de Kyna a idéia e a determinação
de que Alana levasse sua brigada e ajudasse os hunos a “poderem ir embora mais
depressa, com menos peso para carregar”.
O pequeno grupo
que ficou entre as carroças de víveres aguardando a total escuridão, era chefiado
por Merval, o burgúndio. Então, a um sinal dele, os 24 homens sob seu comando
começaram a acender as pontas de suas tochas. Antes disso, eles haviam passado
mais de uma hora, no lusco-fusco do pós-ocaso, a encharcar o interior das
carroças com o bom óleo para tochas que os hunos tinham abundantemente estocado
em várias delas. O sinal de Merval serviu como comando para que os homens
visigodos começassem a matar a saudade que o fogo de suas tochas tinha do óleo
nas carroças de mantimentos.
Em questão de
poucos minutos, o acampamento da retaguarda se iluminou com mais de seis
dezenas de tochas gigantescas, cada uma delas uma carroça cheia de alimentos facilmente
combustíveis. A 200 metros dali, engolfado por inimigos por todos os lados,
Átila e os hunos viram o gigantesco incêndio a grassar em sua linha fortificada
de defesa. Compreenderam imediatamente que um grande ataque havia acontecido
ali. Em desespero, deitaram a correr simplesmente em direção às carroças, abandoando
a luta com os inimigos. Era imperioso chegarem aos carroções, era mistér apagar
o incêndio, era vital salvar o tesouro.
Mas os inimigos
não lhes deram trégua e seguiram celeremente em seu encalço. Uma estranha
marcha veloz para as carroças, repleta de luta de parte a parte, foi se desenrolando,
enquanto a noite escurecia de vez e os homens chegavam todos juntos, embolados,
à beira da linha de carroções.
Mas a própria
escuridão de uma noite sem lua se encarregou de por fim àquela dia de batalha.
Era impossível ver quem era amigo e quem era inimigo e muitos romanos mataram
romanos e visigodos; e vice-versa. Torismundo acabou perdido no meio dos hunos
que voltaram e teve que passar a noite escondido dentro de uma carroça de
couros. O próprio Flávio Aécio, no meio da escuridão, perdeu-se dos romanos e
foi buscar refúgio entre os francos ripuarianos até o nascer do novo dia.
A confusão foi
absoluta e total, imperou durante toda a noite escura e todos, sonados e
cansadíssimos, tentaram esperar acordados o nascer do novo dia. Ninguém podia
estar tranquilo, o homem a seu lado podia ser um inimigo, eram dezenas de
milhares de homens sobreviventes, todos miseravelmente misturados. E cansados
ou feridos demais para pensarem em continuar as hostilidades no escuro. Ninguém
teve coragem de acender uma tocha. Isso seria mostrar sua cara ao inimigo, que podia
estar a um metro dali. Dentro das linhas defensivas dos carroções
remanescentes, imperava a mesma insegurança.
Somente na parte
em que as carroças de mantimentos ardiam, os diferentes grupos de soldados
podiam reconhecer quem era quem. Mas isso não fazia diferença alguma. Ali quase
todos eram hunos ou ostrogodos. E agora eles não lutariam contra mais ninguém,
depois daquela tarde amaldiçoada. E, mesmo que o quisessem fazer, não
encontrariam na escuridão próxima, nenhum inimigo disposto a lutar.
O fogo
extinguiu-se nas carroças de mantimentos. Caiu a escuridão total sobre os
campos das planícies catalaúnicas. Onde estavam, os homens remanescentes se
jogaram ao chão, trataram de afastar os cadáveres que o forravam, ou os
aproveitaram como travesseiros, e trataram de dormir.
Kyna havia
avisado a todos no início da tarde: quando a noite se fizesse total, quando a
escuridão dominasse a planície totalmente, a guerra estaria acabada. Não
haveria um segundo dia para guerrear. Quando o sol nascesse outra vez, os
homens veriam “o horror dos horrores”. E então compreenderiam que não havia
mais por que lutar.
CONTINUA
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