MILTON MACIEL
FINAL DA PARTE 3
A menina estava em estado de choque. Tudo aquilo havia acontecido de uma maneira tão rápida que a deixara tonta. Então aquele rapaz que a estava defendendo era filho de Dito Timbó?! Ela ficara sabendo que este homem, famoso e respeitado matador, havia justiçado João Boto e que o desgraçado estava na cadeia, devidamente capado, servindo de repasto aos outros presos.
PARTE 4
Dito Timbó era o homem que Marta, sua mãe,
afirmara sempre ser o seu pai. Desde pequeninha Rita sonhava com ter um pai,
mas um pai que estivesse ali, presente, cuidando dela, da mãe e dos irmãos, não
permitindo que tivessem passado tanta necessidade e tanta fome, não permitindo
que a desgraça maior de sua curta vida de criança tivesse se abatido sobre ela,
na figura amaldiçoada de João Boto.
Inúmeras vezes Ritinha pedira à mãe que lhe
contasse sobre o pai. Marta pintava-o então como um herói, carregando nas
tintas, para criar na filha uma espécie de orgulho por aquele pai distante, uma
forma, talvez, de compensar pelo imaginário o peso de sua ausência.
Com Ritinha, isso não tinha funcionado. A
mágoa pelo abandono crescera maior que o orgulho pelo pretenso heroísmo do pai.
Marta tentava impedir esses sentimentos negativos na menina, assumindo toda a
culpa por ter ficado grávida, por ter querido ter a filha e, principalmente,
por nunca ter revelado a existência de Ritinha ao pai.
Mas
por quê?!! – Ritinha voltava inúmeras vezes ao assunto. Marta tentava
fazê-la entender que os homens são diferentes, não são sentimentais como as
mulheres. Procurava justificar Timbó, dizendo que, por ser um pistoleiro, nunca
quisera ter família, que não ligava para as filhas mulheres, só gostava dos
meninos machos, e ainda mais dos que haviam seguido sua mesma profissão de
matador. Coisa de homem, Ritinha tinha que entender!
Mas Ritinha não entendia. Não entendia e não
aceitava. Para ela, Dito Timbó não era um nome que evocasse nada de bom. Era um
bandido e, acima de tudo, era um homem frio e indiferente, que jamais ficara
sabendo de sua existência porque, se soubesse, não daria a mínima importância,
não ia nem mesmo querer olhar para ela, ainda que fosse uma única vez na vida.
Para Ritinha, a idéia de pai era associada com maldade e rejeição, com mágoa e
privações. Culpava-o pela vida de penúria que levavam com a mãe, culpava-o por
Marta ter sido obrigada a aceitar um homem tão perverso e violento como João
Boto, como única forma de garantir um pouco de comida e abrigo para si e para
os filhos.
Agora, quando ficara sabendo da ação
vingadora de Dito Timbó, a única alegria que sentiu foi pelo tipo de castigo
degradante dado ao padrasto, justiçado na mesma moeda que usara para desgraçar
a enteada. Mas, mesmo assim, não sentia gratidão ao pai por ter agido em
desagravo à filha.
Ela não tinha experiência, é certo, mas algo
lhe dizia que aquilo que aquele pai ausente fizera era mais uma coisa dele,
mais uma coisa para mostrar sua força, do que propriamente para favorecer ou
vingar a filha. Afinal, fora preciso acontecer toda essa desgraceira para
aquele homem aparecer. Por mais que soubesse que ele nunca viera antes por que
sua mãe nunca lhe falara sobre essa filha, enjeitada como todas as outras, não
podia pensar nele com nenhum sentimento bom.
Ao contrário, agora que sabia que ele estava
na cidade, ali perto, passara a viver momentos de puro pavor. Não queria ver
aquele homem nem pintado de ouro. Não o desculpava pelo abandono, causado por
sua insensibilidade extrema, capaz de enjeitar todas as filhas e só reconhecer
os filhos. Não o perdoaria jamais por essa monstruosidade, para ela ele era
isso mesmo: um monstro, um criminoso.
Mas o seu pavor era ainda maior, ia às raias
do pânico, quando pensava que ele poderia aparecer de repente. E então iria
flagrá-la na situação de uma puta qualquer. Puta! Dez anos de rejeição e agora,
quando o pai a visse, iria vê-la como uma reles quenga!
Quenga! Quenga! Quenga não entra! Quenga não
presta! Sua ordinária! Abre essas pernas,
desgraçada! Se não botar dentro, não pago é nada! Vai pra puta que te pariu,
sua merdinha! Tá pensando o que? Que eu me contento com punheta, é? Cai fora,
desce do caminhão, desgraçada!
Quenga! Quenga! Puta! E essa era ela. Ela
era uma puta agora. Um mês atrás era só uma menina como todas as outras da sua
idade. Era Ritinha, a menina mais querida da escola, a mais boazinha, a mais
bonitinha. Era também – e isso a enchia de satisfação – a mais inteligente. As
professoras gostavam dela por demais. Boa de gênio, alegre, comunicativa, uma
criança encantadora. Primeiro lugar da classe, em todos os anos, adorava
estudar, adorava ler, adorava ensinar.
Seu bom humor inteligente, sua alegria simples,
sua confiança evidente na vida e no futuro, não deixavam transparecer a grande
dificuldade que era sua vida em
casa. Ali fazia de um tudo, ajudando a mãe ao assumir quase
todo o serviço de casa. A mãe precisava trabalhar na única fábrica do lugar, um
antigo curtume de cheiro nauseabundo. Ritinha fazia o seu serviço e fazia o de
Manoela, a irmã que tinha um ano a mais do que ela. Ritinha, quando chegou a
hora de sua desgraça, contava ansiosa os dias que faltavam para o seu
aniversário de onze anos, que aconteceria dali a dois meses. A mãe tinha jurado
que, desta vez, ela teria enfim um bolo de aniversário e uma quase festinha, só
com a família, é claro.
João Boto, o homem que sua mãe tinha
conseguido há pouco mais de um ano, havia concordado em dar uns escassos
trocados para ajudar com a festinha. Ritinha morria de medo dele. Era
agressivo, batia nos filhos de Marta quase todos os dias, era evidente que não
gostava dos dois meninos, gêmeos de oito anos de idade. Com Manoela e com ela,
João Boto era menos severo, às vezes falava com elas até que com modos. Já a
vida de Marta com ele era um verdadeiro inferno. Era mais do que comum que ele
chegasse bêbado em casa e, nessas ocasiões, ou a mulher ou os dois meninos iam
apanhar na certa. Como mãe e filhos fugiam de casa assim que o percebiam
embriagado, sobrava para as meninas maiores.
Nessas ocasiões o homem ficava diferente,
falava com elas com voz pastosa, se insinuava, tentava passar a mão em Manoela,
que já tinha corpo de mocinha. Ritinha, ainda que morrendo de medo, corria em
defesa da irmã, que ficava travada, morta de pavor, com medo de apanhar,
deixando-se tocar. O homem, bêbado, erguia-lhe o vestidinho, apalpava sua
calcinha entre as coxas, falava coisas indecentes.
Ritinha começava a gritar, corria para a
frente da casa, chamava por socorro, alertava os vizinhos. Mas estes, é claro,
se trancavam em casa e se faziam de mortos, morriam de medo de João Boto, que
tinha crimes de morte nas costas. O homem então perdia a paciência, corria para
cima de Ritinha, para lhe dar uns bons tapas. Mas a menina corria como um
azougue, nunca ela pôde alcançá-la. Essa era a dica para Manoela encontrar coragem,
destravar, correr e buscar abrigo em algum quintal bem distante. Dessa maneira,
vinham conseguindo evitar que o homem fizesse mais do que aquilo. Ajudava o
fato que a bebedeira sempre era muito grande – ele acabava desistindo e
tombando em alguma cama ou sofá, roncando emborcado, de roupa e tudo, até o
meio-dia seguinte.
Mas, com o passar dos meses, o corpo de
Ritinha foi se alterando e despertou a atenção e o desejo lúbrico do padrasto.
Então ele abusava de Manoela até que Ritinha começasse a gritar com ele. Aí
voltava-se para ela, procurava agarrá-la à força e tentava arrancar a roupa
dela. Manoela, sempre covarde, não fazia nada em defesa da irmã, ficava
estática e chorava baixinho. Não abria a boca para nada, tal era o seu medo de
ser agredida. Já Ritinha mordia e esperneava, dava chutes, berrava. Mas, com o
tempo, isso parecia excitar o homem ainda mais, estimulava os seus impulsos
sádicos mais primitivos.
CONTINUA
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