terça-feira, 2 de abril de 2013


O CERCO – 39  Novela histórica
MILTON MACIEL
(últimos capítulos)

Resumo do cap. 38 – Os gépides, até então aliados dos hunos, encarregados de dar combate aos romanos, abandonam o campo de batalha, após um acordo tácito com eles, promovido pela sumo-sacerdotisa Kyna e sua aprendiz, a ostrogoda Hilduara. Com a retirada dos gépides, os romanos caem em massa  sobre a retaguarda dos hunos, que até então procuravam alcançar os alanos, aparentemente em fuga. Átila e seus homens são colhidos entre vários inimigos e suas forças se esfacelam, com milhares de perdas. Aos hunos só resta agora tentar bater em retirada para sua linha fortificada. Enquanto isso, os godos guerreiam entre si, ostrogodos contra visigodos.

OSTROGODOS EM COMBATE

Quando os hunos avançaram na sua grande carga contra os alanos, os ostrogodos partiram também, celeremente, buscando o combate com os visigodos do rei Teodorico I. Estes optaram por um avançO mais lento, preferindo esperar os adversários em sua própria área de preparação. Um pequeno destacamento foi deixado para trás, para agir como isca para os hunos, que avançavam já em caça aos alanos fugitivos.

Essa isca funcionou perfeitamente, porque Átila, subestimando o potencial de resistência dos alanos, resolveu mandar um contingente para agredir esses visigodos retardatários. Já sabemos que a manobre funcionou a contento para os aliados, pois esse contingente huno, atacado pelas costas pelos romanos, foi inteiramente dizimado.

Quando os ostrogodos se aproximaram da linha de encontro das duas facções, Torismundo, o filho mais velho de Teodorico, liderando um grupo de apenas 800 homens, procurou tomar a parte mais alta da única colina existente na planície. Seguiu-se um ferrenho combate, com muitas perdas de lado a lado, mas Torismundo foi vencedor. A seu lado, uma jovem de beleza e força incomuns cavalgava, em roupas de guerra: a sacerdotisa Vérica.

Os demais visigodos avançaram então em grande velocidade contra os ostrogodos. O choque de armas, escudos e homens foi uma coisa indescritível, tão ensurdecedor o barulho que objetos em choque e homens gritando produziram. Na longa batalha que se seguiu, até o fim do dia e a chegada da noite, grandes atos heróicos foram praticados de parte a parte.

O comandante em chefe dos ostrogodos era Walamir, um guerreiro de impressionante força física e tido como invencível por seus homens. Dois de seus irmãos também faziam parte de seu exército, Theodemir e Widimer. E o homem de confiança de Widimer era o ostrogodo Andag, que haveria de ter uma participação muito importante na batalha.

Inicialmente Walamir e seus homens se impuseram aos de Teodorico, fazendo-os recuar bastante. Mas os visigodos da retaguarda, que haviam ficado para atrair os hunos, vieram juntar-se aos que faziam a rápida manobra de recuo. Com o reforço, os visigodos tornaram a avançar e a opor uma resistência maior aos comandados de Walamir. E, nesse momento, a divisão de romanos que havia derrotado o contingente huno que atacara os visigodos, veio somar-se também aos visigodos de Teodorico.

A partir daí, Walamir foi sendo obrigado a recuar, mas fazendo esforços extremos para não dar mais território ao inimigo. Por mais de uma hora as forças se estabilizaram em equilíbrio, combatendo ferozmente e impondo-se terríveis baixas mutuamente. As divisões sob comando de Theodemir e Widimer começaram de novo a levar discreta vantagem, enquanto a de Walamir ia sendo aos poucos empurrada para trás.

Depois de duas horas de combate, quando já as forças hunas batiam em retirada desorganizadamente, em busca de sua linha de reforço à beira do rio, a batalha entre ostrogodos e visigodos continuava indefinida, sem vencedor.

Foi somente nesse momento que o rei dos visigodos, Teodorico, lançou mão de sua reserva estratégica: os homens que estavam com Torismundo, seu filho, no topo da colina. Essa tropa desceu em direção ao norte e, fazendo uma rápida curva, investiu contra a retaguarda dos ostrogodos, pegando-os de surpresa. Como não havia como saber quantos eram os novos visigodos que chegavam para o combate, os líderes ostrogodos decidiram-se por reforçar grandemente sua retaguarda, retirando contingentes valiosos da fronteira sul do combate, onde se desenrolava o grosso da batalha.

E, nessa hora, surgiram também em campo, contornando a colina, os francos salianos de Meroveu, comandados por ele e conduzidos sob a experiente liderança de seu general Armosic. Eram, ao todo, pouco mais de 500 homens de infantaria, toda a força de que o rei Meroveu sempre dispusera em Châlons.

Com a chegada dos francos e o concomitante ataque à retaguarda dos ostrogodos, os chefes destes se viram obrigados a transferir ainda mais homens para o setor norte que estava sendo atacado. Isso, evidentemente, debilitou ainda mais a linha de frente e os visigodos de Teodorico puderam outra vez avançar com grande poder de destruição. Teodorico em pessoa comandava seus homens e os levou  a cair como um flagelo sobre as linha de frente agora mais debilitadas de Walamir.

Observando o que se passava, Widimer veio em socorro de seu irmão mais velho, salvando a vida dele quando um lanceiro visigodo já tinha conseguido arrojá-lo ao chão e se preparava para trespassá-lo com sua lança. À distância, Widimer conseguiu acertar o lanceiro inimigo com uma flecha fatal.

Nesse instante, com a aceleração do avanço dos visigodos, a cavalaria entrou em ação, pois estivera até então à espera da hora certa de atacar. Avançaram os cavaleiros a grande velocidade, abrindo-se uma clareira entre seus colegas de infantaria, para que os cavaleiros avançassem e colhessem a infantaria ostrogoda de surpresa.

O rei Teodorico, sobre seu cavalo, comandava seus homens de infantaria até então. Ele voltou-se para ver o avanço daquela que era a melhor fração do exército visigodo, sua famosa cavalaria. Ergueu-se o mais que conseguiu sobre a sela e fez um sinal para os cavaleiros, chamando-os para que avançassem na direção em que ele, o rei, se encontrava. Foi seu último gesto. Muito perto dele, o ostrogodo Andag, que protegia seu chefe Widimer, teve sua atenção chamada para aquele homem que usava uma armadura extremamente vistosa e concluiu que era um visigodo importante, da nobreza. Esgueirou-se entre homens que se matavam mutuamente e, ao chegar a uma distância que lhe garantia um arremesso seguro, atirou na direção do cavaleiro a sua lança de campanha.

A lança atingiu o rei Teodorico I dos visigodos exatamente na cabeça, sendo a ponta aparada pelo elmo metálico. Mas a força do arremesso era muito grande, o rei desequilibrou-se na sela e tombou ao solo, caindo desacordado sobre um monte de cadáveres de visigodos, previamente abatidos, quando do primeiro avanço dos ostrogodos.

Menos de dois minutos depois, atendendo ao aceno do rei, um grande contingente de cavaleiros visigodos atingiu exatamente aquele ponto, onde os cavalos, para avançar a galope, só o podiam fazer pisoteando os cadáveres no chão. Um dos corpos tombados, no entanto, era o de um homem vivo, apenas desmaiado pela força do golpe de lança que recebera no elmo.

Era o rei Teodorico. Seus próprios cavaleiros mataram-no, pisoteando-o com seus cavalos dezenas de vezes. E só o elmo, firmemente preso a sua cabeça, preservou seu rosto do esmagamento a que o resto do corpo foi submetido. E só isso permitiu que seu cadáver pudesse ser reconhecido horas depois. Mas isso só foi possível no dia seguinte. Nesta tarde da grande batalha, começada por decisão de Átila às três horas somente, o sol já começava a descambar para o poente e a desordem era simplesmente total.

Quando os francos chegaram à retaguarda dos ostrogodos, foram os homens liderados por Theodemir que vieram recebê-los para o combate corpo a corpo. Na primeira hora tombaram sem vida mais da metade daqueles homens de Meroveu que haviam escapado tão facilmente do mal-sucedido cerco à fortaleza. Um número equivalente de ostrogodos também perdeu a vida.

O general Armosic, vendo que a situação era desesperadora e que, em mais algum tempo, todos os seus homens estariam mortos, conseguindo identificar o líder dos ostrogodos, tratou de lhe dar combate pessoalmente. Foi lutando com sua espada e seu escudo e procurando aproximar-se de Theodomir. Quando o conseguiu, viu o homem tombar, com o ombro trespassado por uma flecha. Esse estava fora de combate, menos mal! Um líder que tomba deixa seus comandados em grande confusão.

 Mas então Armosic reconheceu aquela flecha. Era enorme, era gigante, era o mesmo tipo de flecha que já o fizera tremer de medo. Era uma flecha de Vérica!

Armosic, tomando todos os cuidados de quem está no meio de uma batalha de infantaria, conseguiu olhar para todos os lados. Não conseguiu avistar a sacerdotisa. Onde estaria ela, se era certo que ela não viera com Meroveu e ele e que havia ficado com os homens de Torismundo. E estes estavam agora todos envolvidos no mesmo combate de infantaria com os ostrogodos, ali mesmo.  Então lembrou-se de olhar para o topo da colina.

E lá estava ela, com sua armadura, sua ruiva cabeleira sobrando por todos os lados ao elmo prateado, seu arco-gigante já retesado em suas mãos, prontos para o próximo disparo. E então o general se lembrou de uma frase que lhe parecera enigmática ou apenas simbólica, que Hilduara lhe havia falado naquela manhã, antes da batalha:

– Vá tranquilo, meu amor. Na hora do perigo maior, para você e para o rei Meroveu, um anjo estará cuidando de vocês lá do alto, um anjo com o brilho do sol. 

E agora, enquanto procurava por uma posição de menor risco para poder voltar a observar a sacerdotisa jovem, subitamente a atenção de Armosic foi chamada por uma cintilação que piscou do alto da colina: Era a luz do sol poente refletindo-se no capacete e na armadura de Vérica. Sim, era ela! Ela era o anjo que estava cuidando deles lá do alto. Não do céu, como ele imaginara, mas do alto da colina. Todos tinham descido, mas ela tinha ficado lá, com seu arco e suas flechas gigantes, capazes de atingir alvos a distâncias inacreditáveis.

O general conseguiu penetrar no meio de um grupo de soldados seus, ficando assim numa condição mais segura para observar Vérica. À sua frente, o rei Meroveu combatia, ainda montado. Viu quando um ostrogodo aproximou-se pelas costas do rei montado e aprontou-se para arremessar sua lança. Não chegou a fazer mais nada. No momento seguinte, uma flecha gigantesca entrou e saiu do seu corpo, ignorando sua armadura e indo cravar-se no peito de outro ostrogodo. Os dois tombaram sem vida.

Lá do alto, o anjo da Deusa continuava a vigiar. Tranqüila, os olhos vivazes a seguir o rei dos francos para o bem dos francos e a seguir o general dos francos para o bem de sua amiga Hilduara. Tranquilo, Armosic esqueceu o combate e ficou a olhar para aquela figura impressionante. Aquela seria a sua futura rainha, aquela menina que nem mesmo era franca, seria a responsável pela união de todos os francos e a criação de uma grande nação moderna. Seria impossível acreditar em tal coisa, não viesse a notícia através da grande Kyna. E não estivesse ele vendo agora, com seus próprios olhos, como aquela quase criança brilhava intensamente ao sol ponte. Um anjo com o brilho do sol!

Num dado instante, Vérica voltou-se para o lado esquerdo e acenou para alguém, várias vezes, entusiasticamente. O general pediu ajuda para alguns de seus homens e subiu nos ombros deles. E conseguiu avistar um tropel de cavaleiros visigodos que avançava a toda velocidade em direção ao acampamento huno. À frente deles, inconfundível, aquela a quem outros hunos haviam chamado de “o cavaleiro do inferno.” Alana e seus 200 cavaleiros visigodos avançavam!

CONTINUA


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