O
CERCO – 41
Novela histórica
MILTON
MACIEL
Resumo do cap. 40 – A brigada de Alana, com o reforço
do apaixonado capitão burgúndio Merval,
invadiu o acampamento de segurança dos ostrogodos e hunos, entre a linha de
carroções e o rio Marne. Ali praticamente não encontraram resistência. 500
hunos guardavam alguns carroções, indicando que aqueles eram os que tinham a
parte mais importante do tesouro de Átila. Os hunos fugiram jogando-se no rio e
então os visigodos atrelaram os cavalos de tiro em 16 carroças e levaram essa
parte do tesouro para a fortaleza, liderados por Alana. 24 outros cavaleiros
visigodos ficaram no acampamento com o capitão Merval. Assim que a noite caiu
completamente, eles incendiaram cerca de sessenta carroças com mantimentos, destruindo
assim grande parte das reservas de alimentos dos hunos. Com a total escuridão
chegaram à linha dos carroções os ostrogodos, os hunos e todos os seus
perseguidores. E, assim que o fogo nas carroças acabou naturalmente, toda a
planície ficou na mais completa escuridão, Os inimigos estavam totalmente
misturados no escuro, ninguém tinha coragem de acender uma tocha. E os
sobreviventes dormiram assim, completamente exaustos, esperando o que
aconteceria quando o sol nascesse.
O DIA DO HORROR DOS HORRORES
Kyna havia
advertido os chefes aliados naquela tarde, antes que Átila começasse a terrível
batalha:
– Quando a noite
se fizer total, quando a escuridão dominar a planície completamente, a guerra
estará acabada. Não haverá um segundo dia para guerrear. Quando o sol nascer
outra vez, os homens verão “o horror dos horrores”. E então compreenderão que
não há mais por quê lutar.
De fato, quando
os primeiros raios do sol começaram a tingir de vermelho a alta atmosfera, os
olhos dos homens vivos principiaram a formar as primeiras imagens ainda pouco
definidas do campo ao seu redor. E elas já eram assustadoras. Mas, à medida que
a luz aumentava, aquela paisagem ainda indefinida foi ganhando contornos cada
vez mais dramáticos. Até que chegou o momento em que todos os sobreviventes
puderam ver a terrível verdade.
Sim, eles eram a
minoria: vivos, respirando, ilesos ou feridos. Porque a grande, a imensa
maioria dos seres humanos que eles podiam ver agora, cada vez com maior
precisão, eram mortos! Cadáveres e mais cadáveres empilhados uns sobre os
outros de forma dantesca, dessangrados, mutilados, sem membros, sem cabeças,
inimigos literalmente abraçados pelo último esgar da morte, distribuídos em
camadas e mais camadas a perder de vista, planície afora.
Todo o campo da
planície catalaúnica era um imenso cemitério, um horror nunca visto e a perder
de vista. Nas poucas centenas de metros que precediam a linha de carroças dos
hunos, o quadro era ainda mais terrível. A densidade de corpos inanimados era
máxima. Resultado do combate mais acirrado, quando os hunos tentavam
desesperadamente atingir suas carroças em chama. Um combate que acabara no
escuro, com hunos matando hunos e romanos matando romanos, sem chefes para
comandar um cessar-luta, uma desordem absoluta e total, uma desordem que a
morte aproveitava, para saciar mais e mais seu apetite por corpos jovens cheios
de vida.
Os homens
sobreviventes se ergueram mais e mais e seus olhos de esbugalharam mais e mais,
ante o horror dos horrores que lhes era dado contemplar, quadro como nunca
viram e certamente nunca mais veriam. Quase não havia um lugar no campo que
ainda conservasse sua cor verde original. Era como se um pintor infernal
tivesse passado a noite inteira pintando toda a planície com tinta-sangue,
jovem sangue huno, burgúndio, ostrogodo, visigodo, alano, franco, romano.
Calejados
guerreiros, velhos generais, experientes capitães, que haviam comandado aqueles
milhares sem fim de jovens inapelavelmente mortos agora, não agüentaram mais: quase todos choraram convulsivamente, com
desespero. Alguns se ergueram a dar socos contra o ar e gritar impropérios
contra os deuses. Outros fizeram a mesma coisa, mas bradavam contra seus reis e
seus líderes. Os hunos maldiziam Átila, os romanos chamavam Flávio Aécio de
assassino sanguinário, dois ostrogodos saíram tropeçando nas pilhas de
cadáveres, na esperança de achar Walamir
e seus irmãos e matá-los também.
Torismundo, de
dentro da carroça huna cheia de couros mal-cheirosos onde estava escondido,
temendo os hunos, passou a temer seus próprios homens, porque eles, imitando os
romanos, hunos e ostrogodos, começaram a vociferar furiosos contra o rei
Teodorico e seu filho Torismundo. Qualquer homem que o encontrasse, não importa
de que tribo ou povo, possivelmente tratasse de cortar-lhe a garganta.
Levas de
sobreviventes caminhavam entre os mortos, procurando amigos, parentes ou
conhecidos. Quando os encontravam mortos, o que era praticamente certo,
prorrompiam em gritos ou em choro. Outros homens, mesmo alguns que estavam
feridos e andavam com dificuldade, batiam o campo atrás de sinais de vida,
atrás de homens feridos que pudessem ser socorridos e salvos.
Igualmente
enorme era o número de cavalos abatidos. Flechados, cortados, mutilados,
pescoços rompidos por quedas, esvaídos em sangue. De quando em quando era
possível ver uma pata ou uma cabeça de animal tentando desesperadamente se
mover ou erguer, na agonia final dos moribundos. Alguns soldados, chorando,
terminavam de abater esses animais, para lhes abreviar o sofrimento.
Para muitas
centenas de sobreviventes, aquelas visões infernais romperam o limite de sua
sanidade mental. Muito poucos se recuperaram. Daquele campo, além dos mortos e
dos feridos, saíram também centenas de loucos irrecuperáveis.
Todos os que
ainda respiravam ali passaram a sentir não apenas o cheiro tenebroso da morte,
mas também o seu peso insuportável. Ante o horror dos horrores, as dezenas de
milhares de homens mortos na flor da idade, os olhos esbugalhados dos que
agonizaram suplicando por socorro, todos os sobreviventes desmoronaram
psicologicamente. A última coisa que qualquer um deles poderia aceitar agora,
seria uma ordem para pegar em armas e lutar contra outro desgraçado como ele
mesmo.
A sacerdotisa
Kyna tinha razão. Como sempre! Para nenhum homem ali havia mais por que lutar,
por quem lutar. Ostrogodos e visigodos, lado a lado, conversavam e tentavam se
dizer alguma coisa que fizesse sentido. Alanos ajudavam hunos a erguer seus
mortos e retirá-los das pilhas de cadáveres. Hunos rasgavam panos de suas
poucas vestes para ajudar a pensar um ferimento de um romano. De repente, ante
a desgraça maior da morte, que a todos irmanava e a zero reduzia, não havia
mais inimigos em campo. Eram todos os mesmos desgraçados, os mesmos perdedores,
todos eles derrotados.
Na batalha mais
cruel da história gaulesa não houve vencedores. Os aparentes triunfadores,
olhando para sua própria desgraça – e também para a desgraça dos inimigos
mortos ou vivos – não tinham nada a comemorar. A batalha vencera a todos. Todos
tinham que se perguntar agora por que haviam matado tantos homens que nem
conheciam, os quais tentavam igualmente matá-los; em nome de que causa o haviam
feito?
Para satisfazer
os desejos de conquista e de pilhagem de um chefe louco, o rei dos hunos? Para
defender a segurança e a fortuna nababesca do imperador romano do ocidente, que
se banqueteava e embebedava enquanto seus jovens defensores morriam como moscas
a centenas e centenas de quilômetros da bem guardada Ravenna?
Não, aqueles
homens não lutariam mais Nem agora, nem nunca mais, no futuro. Se os reis
loucos os ameaçassem com a morte por deserção, pelas mãos de soldados que nunca
estiveram em Catalauni, não teriam mais medo: já estavam mortos por dentro. E
já levavam consigo, para sempre, inesquecível até o último dia de suas
desgraçadas existências, o quadro ensandecedor do HORROR DOS HORRORES.
Lentamente
muitos homens começaram a caminhar, entre os corpos de outros homens e de
cavalos, tomando o rumo da grade estrada. Iam embora, inimigos de horas atrás
andando agora lado a lado, caminhando rumo ao sul, abandoando de vez as
planícies da morte e da devastação, abandonando seus malditos chefes e seus
malditos exércitos. Ali na Via Agripa, arrastando-se lentamente para um futuro
mais dos que incerto, não eram mais
hunos, ou burgúndios ou ostrogodos, ou alanos.
Eram somente homens desesperados, seres traumatizados para sempre, criaturas
para sempre descrentes nos homens, na vida, nos deuses.
O próprio
Torismundo resolveu sair de seu esconderijo. Passou ao largo de mais de cem
hunos que não lhe deram a mínima atenção, com exceção de um que lhe ofereceu
água que ainda sobrava em seu cantil. O príncipe dos visigodos bebeu
sofregamente, estava desesperado de sede. Então olhou bem para os olhos do huno
que o socorria e viu que ele tinha lágrimas, muitas lágrimas nos olhos.
E Torismundo
deixou-se também explodir em choro. Ainda não tinha plena consciência da
desgraça ao seu redor, apenas tivera seus primeiros minutos de contemplação do
horror dos horrores, mas ainda estava, até então, com muito medo dos hunos. E
agora aquele huno, um menino imberbe ainda, via um inimigo amedrontado e lhe
oferecia água do seu cantil! E era isso que fazia Torismundo, príncipe dos
visigodos, chorar. Quantos daqueles hunos ele teria matado? Quantos ostrogodos?
Quantos não seriam exatamente como aquele menino, imberbe ainda, quase uma
criança com todo uma vida pela frente?
E Torismundo
chorou ainda mais. Que sentido tinha agora tudo em que acreditara até
então? Até
aquela noite ele acreditava odiar os hunos. E os ostrogodos. E todos os
inimigos. E fazia-o porque seguia cegamente os pensamentos de seu pai. Mas
agora um inimigo matava sua sede, os olhos amendoados olhando-o com compaixão e
simpatia. Ainda que atingidos pela dor imensa que os fazia lacrimejar.
O príncipe dos
visigodos devolveu o cantil ao menino. Tentou esboçar um sorriso de
agradecimento. O rapaz fez que sim com a cabeça, um não entendia a língua do
outro. Então Torismundo lembrou que podia fazer melhor. Tirou do anular da mão
esquerda seu anel de príncipe e o colocou na mão do garoto. O rapaz fez que não
com a cabeça, tentou devolver a jóia, de altíssimo valor. Torismundo não
concordou, com as duas mãos fechou a mão do rapaz sobre o anel. O moço então
sorriu pela primeira vez, aceitou o presente. Mas enfiou a mão dentro da
túnica, puxou com força um cordão ao redor do pescoço e saiu de lá um colar
huno típico. E, imitando o gesto do visigodo, colocou-o na mão de Torismundo e
fechou-a sobre o colar com suas duas mãos.
Os dois homens
então se despediram com um leve roçar de mãos. Provavelmente nunca mais se
veriam. Mas também nunca mais esqueceriam um do outro. Em suas mãos levavam
relíquias, mais que presentes. Não importava se tivessem ouro ou osso apenas. O
valor de cada uma delas era inestimável. Sempre que as olhassem, poderiam ver
como a guerra é estúpida e indesculpável. Naquela manhã, o guerreiro que havia
dentro de Torismundo morreu.
O homem que saiu
do campo de Catalauni, para suceder um pai que ele ainda não sabia morto, era
agora outro, completamente diferente. E, enquanto caminhava pisoteando
cadáveres sem fim, caminhando sem saber muito bem para onde, apenas tentando
manter o rumo norte, um pacifista começava a nascer do seio da morte. Em sua
mente o sorriso dos olhos amendoados pairava inesquecível. Sim, todos os
meninos visigodos ou hunos, romanos ou ostrogodos, mereciam viver. Se
dependesse dele somente, nunca mais os jovens visigodos deixariam suas casas e
famílias e marchariam para a insensatez estúpida de matar e fazer-se matar por
outros jovens inocentes.
CONTINUA
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